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“A ultrassonografia é como o leão na selva”, escreveu o saudoso Prof. Carani no primeiro volume do seu Caderno de Ultrassonografia Ocular, único publicado antes de nos deixar órfãos do seu apaixonado modo de ensinar. Ele se referia à ideia de que, no interior do globo ocular, o ultrassom é soberano, um “rei quase imbatível e poderoso”.

Exagero ou não, o fato é que estamos falando de um método que atravessou as últimas décadas imune à chegada de novas tecnologias e equipamentos de altíssimo refinamento, no sentido de que ainda não temos um substituto para aquilo que o ultrassom faz de melhor: avaliar estruturas intraoculares na impossibilidade da visualização do fundo de olho; analisar o mecanismo das doenças do vítreo e sua interação com a retina; diagnóstico, seguimento e auxílio terapêutico dos tumores intraoculares. Com o mínimo desconforto, praticamente isento de efeitos colaterais e sem necessidade de preparo.

O contexto do nosso país, com aumento da expectativa de vida e a crescente incidência de comorbidades como diabetes e hipertensão arterial, unidos a uma ainda deficiente assistência clínica e cirúrgica, desenha um cenário em que milhares de pacientes com catarata total e hemorragia vítrea (líderes em indicação de ultrassom) ainda surgem em nossos serviços todos os meses. Sem contar as outras importantes condições que demandam avaliação ecográfica, que citarei posteriormente.

Minha subespecialização e principal área de atuação é Retina e Vítreo. Foi durante o fellow que iniciei minha jornada com a ultrassonografia. Via ali uma importante ferramenta para a compreensão dos mecanismos relacionados às principais doenças que encontrava em minha rotina clínica e cirúrgica.

 

Alguns exemplos:

– O ultrassom define com precisão a relação entre a hialoide posterior e uma rotura da retina. Além de esclarecer os mecanismos que levam ao seu surgimento, permite determinar sua localização e extensão, essencial para planejar o tratamento. Na impossibilidade de outras abordagens, pode-se até mesmo realizar o exame para guiar uma crioterapia, em tempo real.

– Avaliação da retina de um paciente diabético com visualização insuficiente do fundo do olho: uma das aplicações mais valiosas – e complexas – do exame. Intensidade e extensão da hemorragia vítrea; presença e classificação de adesões vítreo-retinianas; envolvimento ou ameaça à área macular pelas trações da retina; distribuição espacial destes achados – análise que, quando feita de maneira minuciosa, pode contribuir significativamente com o planejamento e a performance do cirurgião.

– Pesquisa do descolamento do vítreo posterior em um paciente candidato a vitrectomia em que a fundoscopia não permite identificá-lo – mais um dado que pode ser útil para o planejamento do procedimento.

– Auxílio no diagnóstico e seguimento das endoftalmites.

– Identificação e mensuração de descolamentos hemorrágicos extensos da coroide, bem como a análise do seu conteúdo, para definição do local de drenagem, quando indicada.

– Definição do tipo e extensão dos explantes de silicone (faixa e/ou buckle) em pacientes que tem indicação de remoção por exposição ou infecção.

 

Perceba que, para exercer bem a ultrassonografia, o oftalmologista deve dominar não só os aspectos técnicos do método, como também ter um amplo conhecimento sobre as doenças que competem às várias áreas da especialidade. Não à toa, a resolução CFM número 1.361/1992 determina que “a execução e interpretação de exames de ultrassom são de competência exclusiva de médico”.

Logo, quando você precisar solicitar uma ultrassonografia, vai querer que um especialista de confiança examine seu paciente. Ou talvez você queira ser esta pessoa de confiança, referência para outros médicos. Sim, o “ecografista” depende mais de outros médicos do que dos próprios pacientes para atuar. Entenda que nenhum paciente procura ultrassom porque quer, mas sim porque precisa. E o médico solicitante é quem tem o poder de definir se seu paciente vai ser atendido por alguém que realmente entende e se dedica ao método.

É por isso que iniciativas voltadas para o compartilhamento de conhecimento de qualidade, com curadoria científica, respaldada por especialistas atuantes no mercado, tem ganhado espaço na comunidade oftalmológica, principalmente através da internet e das redes sociais, em diversas áreas. Por meio do perfil US.ocular (@us.ocular), que mantenho no Instagram desde 2019, pude não só difundir o fruto do meu aprendizado ao longo dos últimos 6 anos, como também ouvir dezenas de oftalmologistas que vivem a situação de fazer ultrassom de seus pacientes sem terem passado por um treinamento aprofundado e com embasamento teórico. A insegurança traduz não só a sensação de despreparo por parte dos médicos, como também o risco em que se encontram os pacientes, tendo condutas baseadas em exames feitos de maneira incorreta ou incompleta. Ou até bem feitos, mas interpretados de maneira adequada.

A sensação que tenho, no fim das contas, é de que muitos oftalmologistas gostariam de ter despertado a importância de compreender melhor a ultrassonografia – assim como fazemos com diversos outros exames complementares – durante o período de formação. Reconhecendo que se trata de uma versátil ferramenta diagnóstica na prática oftalmológica. O que expus aqui é minha visão de retinólogo, mas há outros mundos permeados pela ultrassonografia, como a oncologia ocular e o estudo de estruturas anteriores através da ultrassonografia biomicroscópica (UBM). Um universo que pode, inclusive, trazer boas perspectivas de mercado para o oftalmologista que se identifica com o método e se dedica ao seu aprendizado. Caso aprender ultrassonografia não te interesse, pelo menos saiba a quem recorrer quando algum paciente seu precisar do exame.

 

Roger Simões Miranda

Oftalmologista e especialista em Retina e Vítreo pela USP; Membro da Sociedade Brasileira de Retina e Vítreo; Médico do Setor de Ecografia Ocular do HCFMUSP; Criador e mentor do Projeto US.ocular

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