Paulo Schor – Cirurgião e Professor de Oftalmologia e Ciências Visuais da EPM-Unifesp, Ficsae-Hiae e Ita
Vânia Vendramini – Médica ginecologista e obstetra; MBA pela Fundação Getúlio Vargas
“De tudo ficaram três coisas…
A certeza de que estamos começando…
A certeza de que é preciso continuar…
A certeza de que podemos ser interrompidos
antes de terminar…
Façamos da interrupção um caminho novo…
Da queda, um passo de dança…
Do medo, uma escada…
Do sonho, uma ponte…
Da procura, um encontro!”
Fernando Sabino, O Encontro Marcado.
Muitos fatores sustentam a velha construção do nosso eu, da nossa engrenagem cerebral. Uma boa parte deles vêm de fora para dentro, do controle e alinhamento entre o certo e errado, no tempo e no espaço inclusive.
Organizamos de maneira disciplinada nossos “inputs”, em compartimentos internos. Cedo encontrei alguns atalhos para me rebelar e até mesmo abusar, certamente com consequências, deste contexto programado. Isso me fez crescer para fora do muro, sob um sol diferente, amadurecer e aparecer entre os tijolos do muro.
O filme Show de Truman (https://pt.wikipedia.org/wiki/The_Truman_Show) explode esse conceito de controle e artificialidade americana, com cenários montados e assépticos, proibindo o ingresso para além do limite conhecido.
Imagino Truman Burbank (o personagem vivido por Jim Carrey) no dia 6 de fevereiro de 2020, exatamente na mesma Califórnia onde foi filmado o longa-metragem. Dia da primeira morte nos USA pelo Sars-CoV-2. La começava o que Fernando Sabino chamou belamente de “interrupção”.
Os limites temporais e espaciais antes cuidadosamente preservados, que nos balizavam, conferindo certa sanidade, referenciando-nos; agora vêm -se trincados pelo novo vírus. Abalam-se, começam a implodir. Os muros caem!
Vários, como eu, se apoiaram nas cercas (agora do passado) para proteção e rumo. Outros com energia própria romperam precocemente estas barreiras e, apesar da enxurrada em direção contrária, avançaram.
De todo modo, hoje estamos juntos. Espaços agora são únicos, comuns, genéricos e ordinários para trabalho, comida, limpeza, lazer. Todas as caixas de assuntos cuidadosamente compartimentados juntam-se. O tempo já não delimita mais semanas, nem dias, nem horas. Agora tudo junto, agrupado e displicentemente misturado sem qualquer preparo ou aviso prévio. Tempo assumindo sua grandiosa dimensão.
Controle, controle do tempo, das informações, das ações. Exatamente a deficiência que sempre tivemos, as referências externas tão caras e arraigadas. Tudo ao mesmo tempo agora.
Remodelando-se. Obrigados a acelerar a adaptação e manter a produtividade, pois no modelo sócio-político nada mudou. Aliás, todos perguntam como a bolsa de valores se mantêm impávida, maior exemplo da tentativa de manutenção do “status quo”.
Alguns foram promovidos a home-teachers, outros compraram headphones. Vários incorporaram o Zoom e Google Meet na sua agenda, e eu passei a mandar vídeos pessoais a pacientes, como forma de manter comunicação e diminuir distâncias.
Não fomos preparados para nada disso. Nem para as ferramentas, nem para o modelo mental que tira as barreiras físicas e temporais, e nos cobra responsabilidade interna. Sem esses limites, estamos livres, à mercê de nossa loucura. Aguentaremos ser interrompidos (voltando a Fernando Sabino) e disso fazer caminhos novos, de novo, e de novo? Quanto queremos ser diferentes? Quanto conseguimos mudar? Quanto aceitaremos o voo, a junção, o novo esculpir?
Não vejo um “novo normal” chegando, mas sim o velho e consolidado habitat intramuros sendo exposto e contaminado. Caem as aulas com leitura de slides na classe, entram materiais pré-aula e discussão para quem tem dúvidas do que leu. A proatividade de cabeças em voo livre, mas não voo solo. Mais mentores, mais facilitadores.
Sai o relógio de ponto. Entra o que foi feito. Menos controle externo. Mais autoconhecimento, autonomia valorizada, maturidade sendo cobrada aguda, brutal e finalmente.
O poder de se concentrar numa arquibancada e estudar. O aprendizado pervasivo, via Youtube e Podcast, e rumo a realidade aumentada. Tecnologia para uma função.
No dia 16 de março de 2020, data da primeira fatalidade no Brasil, um dique foi perfurado por um pequeno prego, e tendo uma pressão enorme a montante, nem precisou esperar os milhares de novos vazamentos, rompendo completamente sobre nós.
São privilegiados os que precocemente ajustaram a mente des-compatimentalizada, e principalmente os que puderam se cercar de toda proteção financeira e social e montar rapidamente condições de isolamento a fim de não serem arrastados pela primeira torrente infecciosa. Sem dúvida o cenário é outro para quem aprendeu a nadar, nadando. Para o enorme contingente invisível que já estava na agua, gelada e tortuosa, a queda do muro só expôs ainda mais a desigualdade e contradições no nosso país e em todo o mundo liberal.
Os infográficos (estatística para leigos) que correlacionam diretamente as mortes (agora pelo Sars-CoV-2) às favelas em periferias de São Paulo já eram há muito conhecidos, mas agora ganham destaque, de forma surpreendente e com uma talvez hipócrita surpresa, nas telas, nos jornais, nas mídias, nos discursos pré-montados dos vídeo-encontros.
Discursos de solidariedade, e ações de grupos organizados contrastam com o estado (os estados) que não tem a proteção aos desassistidos como mote eleitoral ou político. Há esperança em grupos de voluntários (conheço bem os ligados a EPM – http://www.voluntariadoepm.com/ e simpatizo muito com o Transforma Brasil – http://transformabrasil.com.br/, além da já conhecida CUFA – https://www.cufa.org.br/ entre outros), e atuação forte em comunidades carentes, levando conforto e sobrevivência pontual a situações dramáticas. Pergunto se haverá alguma incorporação dessa mentalidade de modo sustentável, daqui para frente.
Torço, e muito, pela mudança de mentalidade bairrista e excludente dos que ainda clamam somente por segurança e liberdade num mundo de miséria, de fome, ao nosso lado, nosso vizinho, mas o muro caiu, lembra? Impossível haver paz enquanto houver tamanho contraste na paleta, enquanto a cor forte do pequeno mundo de alguns ofuscar a sobrevivência, o cinza da grande maioria.
Hoje descobrimos, revelamos, expusemos a desigualdade, tristeza, dor e solidão, mas nos encontramos conosco, e muitos já entenderam que “estamos sempre a continuar”, que tudo é incerto e as chances estatísticas explicam matematicamente por onde andamos e onde chegamos.
“No fim tudo dá certo, e se não deu certo é porque ainda não chegou ao fim.” Fernando Sabino continua nos inundando de grande esperança.
Em frente!
Fonte: Revista Universo Visual