Quais são os tratamentos indicados e orientações dos médicos para evitar complicações e progressões
“Uma potencial crise de saúde pública como resultado da COVID-19”. Essa é uma das conclusões do estudo realizado pela The Chinese University of Hong Kong e publicado em agosto no British Journal of Ophtalmology. O trabalho mostrou um aumento na incidência de miopia em crianças em Hong Kong durante a pandemia. Segundo os autores, “os resultados servem para alertar os profissionais da saúde, educadores e pais que esforços coletivos são necessários para prevenir a miopia infantil”.
Realizado com 1973 crianças em Hong Kong, o trabalho apontou que a incidência de miopia nesse grupo mais que duplicou, passando de 11,6% a 29,6%. Crianças de 6 a 8 anos foram divididas em dois grupos: o primeiro deles foi recrutado no início do surto de COVID-19 (709 crianças), enquanto o segundo grupo (1.084) foi recrutado antes da pandemia. Todas as crianças realizaram exames oftalmológicos e responderam a um questionário padronizado relacionado ao seu estilo de vida, incluindo o tempo gasto em atividades ao ar livre, tanto no início quanto nas visitas de acompanhamento.
No Brasil, a percepção dos especialistas é a mesma. Segundo pesquisa realizada pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO), 72% dos oftalmologistas relataram ter diagnosticado o problema com maior frequência, ao longo do último ano, na faixa etária de 0 até 19 anos. Sete em cada dez médicos entrevistados pelo levantamento identificaram progressão de miopia em crianças durante a pandemia. Outros três em cada dez não constataram esse problema entre pacientes.
A pesquisa entrevistou 295 médicos oftalmologistas com diversas subespecialidades, como pediatria, córnea, catarata, glaucoma e retina. O estudo foi realizado em abril e junho desse ano. Entre os que verificaram aumento dos graus de miopia, 6% apontaram o problema em 75% dos pacientes, 27% relataram a situação em 50% dos pacientes e 67% registraram o quadro em cerca de 25%. Dos profissionais ouvidos, 75,6% avaliaram que o uso de diversos dispositivos eletrônicos pode agravar o quadro de miopia. Outros 22% entenderam que esse fator pode influenciar, mas apenas com uso de tablets e celulares. Apenas um pequeno percentual não viu relação entre os dois fenômenos.
A revista científica Jama Ophthalmology corrobora com esses resultados em artigo publicado em janeiro desse ano. O estudo foi realizado com cerca de 120 mil crianças e demonstrou que o número de casos de miopia em crianças entre 6 e 8 anos cresceu até três vezes mais no ano passado se comparado com os últimos cinco anos. Para os pesquisadores, o confinamento domiciliar e o isolamento social ocasionado pela pandemia parecem estar associados a uma mudança substancial da miopia em crianças. Eles reforçam ainda que, devido a plasticidade, as crianças menores podem estar mais sensíveis às mudanças ambientais do que em crianças mais velhas, considerando seu estágio de desenvolvimento.
A oftalmologista pediátrica Márcia Keiko Uyeno Tabuse, presidente do Departamento de Oftalmologia da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP), alerta que nos últimos anos houve um aumento de 38% nos casos de crianças com até 10 anos com diagnóstico de miopia. Mas segundo a oftalmologista, esse não é o único problema decorrente especialmente do uso descontrolado de celulares, computadores e tablets.
“Da mesma forma que observamos um aumento da miopia, percebemos que crianças que permanecem muito tempo no computador em aulas online têm apresentado torcicolo ou posição de cabeça viciosa. O diagnóstico diferencial inclui alterações como ametropias (astigmatismo), desvio ocular intermitente, torção ocular, redução de campo visual ou até mesmo nistagmo (movimentos involuntários dos olhos)”, explica. Para a especialista, alguns cuidados são imprescindíveis para amenizar o problema da exposição das crianças às telas. “É fundamental que os responsáveis monitorem o uso, controlem o tempo de exposição e a distância que estas crianças estão das telas, pois quanto mais perto os olhos estiverem da tela maior será o prejuízo. O ideal é que as crianças tenham também um período de 2 horas em ambiente aberto e com luz natural do sol, que ajuda a evitar a miopia”, aponta Márcia.
Kelly Cristina Lopes do Prado é mãe de Maria Luisa Lopes do Prado, de 12 anos, e de Carolina Lopes do Prado, de 9. “Acompanhamos a miopia da Malu há alguns anos, a cada seis meses, e ela vinha sem muita progressão. Já a Carol, apresentava hipermetropia, mas também controlada. Quando começou a pandemia e, com ela, as aulas online, a Malu começou a relatar muita dor de cabeça. Quando fomos ver, a miopia dela tinha aumentado mais de um grau numa questão de seis meses. E a Carol, que não tinha, também passou a ter. Elas começaram a ter um aumento de mais de um grau a cada seis meses, de forma muito rápida e agressiva. Mudamos as aulas do computador para a TV para tentar amenizar. Porém, na consulta nesse ano a Malu já estava com 4 e meio de miopia! Fiquei bastante preocupada. Foi quando as duas passaram a usar a lente gelatinosa de troca diária (MiSight) e colírio, e eu sempre insistindo para a diminuição do uso de telas. Depois do início do uso das lentes, que tem o uso mínimo de 10 horas durante o dia, a Malu melhorou bastante, sem queixar mais de dores de cabeça.
A Carol precisa mais da minha ajuda para colocar a lente e teve um aumento leve no grau, por isso agora estamos reduzindo bem o uso das telas. Estamos bem animadas e seguiremos acompanhando a evolução das duas”, relata.
Segundo o coordenador da pesquisa realizada pelo CBO, Fábio Ejzenbaum, “é comprovado que se você ficar em média pelo menos duas horas em ambiente externo sua chance de ser míope pode ser reduzida em 40%. Como o sol libera neurotransmissores que fazem o olho crescer menos, essa exposição diária é bastante importante”. Ainda segundo o CBO, aproximadamente 6,8 milhões de crianças já sofrem com a miopia.
Alterações oculares
A miopia é o distúrbio visual refrativo mais comum do mundo e acarreta uma focalização da imagem antes que esta chegue à retina. Uma pessoa míope consegue ver objetos próximos com nitidez, mas os distantes são visualizados como se estivessem embaçados. “A miopia é aquele globo ocular que não parou de crescer e alongou demais. Quando ocorre esse alongamento, a imagem de longe não consegue alcançar o fundo da retina e ela fica desfocada para longe”, explica Márcia.
Frequentemente relacionada a fatores hereditário e genéticos, a miopia também pode ser agravada a partir do uso excessivo de telas e outras atividades que forcem a visão. “Esse olho alongado acontece, principalmente, por duas razões: pela falta de estímulo de luz natural e atividades de perto”, conclui Márcia. Além disso, a fadiga ocular ocasionada pelo esforço para manter o foco, seja lendo um livro, seja assistindo a uma aula online, também aumenta o risco da condição.
Para Célia Nakanami, Coordenadora Do Núcleo de Oftalmopediatria da Escola Paulista de Medicina (UNIFESP), “precisamos identificar essas crianças e levar em consideração toda a história familiar, principalmente se há casos de alta miopia entre os pais. Quanto mais cedo uma criança fica míope (menos de seis anos), maiores são as chances de que ela tenha uma taxa de progressão maior, com um risco mais alto de desenvolver alta miopia numa fase mais tardia. Com essa identificação conseguimos retardar a progressão. É inevitável que aconteça, mas a gente precisa desacelerar esse processo e evitar o início precoce da miopia”.
No caso das crianças, a identificação normalmente é notada na escola, quando os estudantes não conseguem ver o quadro, mas enxergam bem o caderno, por exemplo. Em casa, é possível notar quando as crianças se aproximam muito da televisão ou não conseguem identificar formas e objetos distantes. Outros sinais são fadiga ocular, dores de cabeça e o cerrar dos olhos para conseguir enxergar melhor. É importante também que a visita a um médico oftalmologista faça parte do calendário da saúde dessas crianças.
Luciana Pereira Simões de Almeida acompanha a saúde ocular da filha Camila Pereira Simões de Almeida, de 11 anos, desde que ela tinha 6 meses de vida. Camila, assim como a mãe, tem alta miopia. Com 4 anos e meio Camila já apresentava 4 graus; hoje ela tem cerca de 7 graus. “A pandemia em si nos preocupou por conta das aulas online, eram cerca de 4 horas e meia no computador, depois da TV seguia para o celular. É uma situação de difícil controle , comenta Luciana. “Há alguns anos ela usa o colírio de atropina para evitar a progressão, mas no último ano houve a indicação da lente Ortho-k, que trabalha a curvatura do olho. Desde março ela vem fazendo esse tratamento combinado e tem tido bastante progresso no tratamento, inclusive auxiliando como incentivo para dormir melhor , conta Luciana. Isso porque essa lente de contato rígida, sem grau, é utilizada para dormir e é retirada pela manhã. “Agora as aulas voltaram a ser presenciais, então o cenário já está melhor, mas diante de tudo resolvemos até mudar de casa, para tentar estimular o uso de espaços externos do condomínio, para que ela brinque mais ao ar livre , comemora Luciana.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), há 59 milhões de pessoas com essa condição no Brasil. Em todo o mundo, o número de pessoas com miopia chega a 2,6 bilhões. A previsão da OMS é de que até 2050 o número de míopes pode chegar a 50% da população mundial.
Fonte: Revista Universo Visual