A miopia em crianças está se tornando uma questão de saúde pública em todo o mundo. Com o número crescente de casos, é importante que os oftalmologistas gerais estejam cientes de como diagnosticar, acompanhar e tratar essa condição que afeta cada vez mais crianças e jovens1,2. Vamos explorar os principais pontos que você precisa saber sobre a prevalência, progressão e manejo da miopia em crianças.
Prevalência de miopia: um crescimento acelerado
Você já deve ter notado que a miopia está cada vez mais comum, e os números não deixam dúvidas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que, até 2050, metade da população mundial será míope. Esse aumento pode ser atribuído a mudanças no estilo de vida, como o uso excessivo de dispositivos eletrônicos e a falta de atividades ao ar livre, além de fatores genéticos1,2.
Crianças que passam muito tempo em atividades de perto (como lendo ou usando tablets e smartphones) e que têm pouca exposição à luz natural são as mais propensas a desenvolver miopia. Estudos mostram que as taxas de miopia em países asiáticos, como China e Coreia do Sul, são impressionantes, com até 90% dos adolescentes afetados. Em países ocidentais, a situação não é tão extrema, mas o crescimento dos casos também é preocupante1,2.
Para o manejo da miopia, a infância é uma janela de tempo com oportunidade única. Somente neste momento da vida, às luzes do conhecimento atual, é possível reduzir a progressão do grau, com impactos futuros que passam por menores dioptrias na vida adulta, menos complicações relacionadas à alta miopia e até redução de custo ao longo da vida do pacientes3.
A progressão da miopia: um desafio na infância
A miopia geralmente começa na infância e tende a piorar até a adolescência. Quanto mais cedo ela se manifesta, maior a chance de progredir para níveis mais elevados, o que conhecemos como miopia alta (acima de -6,00D). E isso traz riscos adicionais, como descolamento de retina, degeneração macular miópica e até glaucoma1,4.
Existem alguns fatores que indicam uma maior probabilidade de progressão:
- Histórico familiar: Crianças cujos pais são míopes têm uma chance significativamente maior de desenvolver miopia. Quando um dos pais é míope, a chance aumenta em três vezes e quando ambos são míopes, já o aumento chega a seis vezes5.
- Idade de início precoce: Crianças nas quais a miopia iniciou mais cedo (antes dos 9 anos) tendem a ter uma progressão mais rápida6.
- Pré-miopia: Refração entre +0,50 e -0,5 na idade de 6-7 anos6.
- Etnia: Crianças de ascendência asiática apresentam maior tendência à progressão da miopia5.
- Tempo de atividades de perto: Sabe-se que o tempo excessivo em atividades de perto, em especial de forma contínua e a uma distância curta podem aumentar o risco de progressão da miopia5,7.
- Tempo de uso de eletrônicos: O tempo de uso de telas também está relacionado à miopia em crianças8.
- Tempo gasto em atividades ao ar livre: Sabe-se que as crianças que gastam pouco tempo de atividades ao ar livre estão predispostas a terem miopia e à sua progressão5.
Portanto, é fundamental acompanhar de perto os pequenos pacientes míopes para detectar sinais de progressão e intervir de maneira adequada e no momento certo.
Acompanhando a miopia no consultório
A chave para controlar a miopia em crianças é o acompanhamento regular e sistemático. No consultório, isso significa realizar exames de refração de maneira correta, ou seja, através da cicloplegia para uma refração precisa. Recomenda-se que crianças com miopia sejam examinadas a cada seis meses.
Outra ferramenta útil e necessária é a biometria, que permite medir o comprimento axial do olho. Isso ajuda a monitorar o crescimento do globo ocular, um indicativo direto da progressão da miopia. A medida do comprimento axial deve ser realizada através de biometria óptica pelo menos uma vez ao ano.
Além disso, é importante orientar as famílias sobre a importância de equilibrar o tempo dedicado às atividades de perto e momentos ao ar livre. Estudos mostram que as crianças que passam mais tempo expostas à luz natural tendem a ter uma progressão menor da miopia5,7,9.
Tratamentos eficazes para a progressão da miopia
Nos últimos anos, temos visto avanços significativos no controle da progressão da miopia. Existem várias opções disponíveis para os oftalmologistas, e é importante conhecer as mais eficazes:
- Atropina de baixa dose: Usar colírios de atropina em concentrações baixas (como 0,01%, 0,025% ou 0,05%) tem se mostrado eficaz para retardar a progressão da miopia. O grande benefício é que, nessas doses, os efeitos colaterais são mínimos, mas dose dependentes. A eficácia também varia conforme a concentração, no entanto a longo prazo tem se mostrado um importante aliado no controle da progressão da miopia9.
- Lentes de óculos com defocus periférico: Mais recentemente, surgiram lentes de óculos que ajudam a controlar a progressão da miopia ao alterar o foco periférico. É um tratamento não invasivo que reduz a progressão da miopia entre 50-65% e muito bem tolerado pelos pacientes9.
- Ortoceratologia (Ortho-K): Essa técnica utiliza lentes de contato rígidas que remodelam temporariamente a córnea durante o sono. A ortoceratologia também ajuda a frear o crescimento axial, oferecendo uma opção eficaz para retardar a progressão9.
Intervenções comportamentais
Além dos tratamentos clínicos, há mudanças no estilo de vida que podem ajudar a lentificar o avanço da miopia. Incentivar as crianças a passarem mais tempo ao ar livre – pelo menos duas horas diárias – é uma das maneiras simples e fundamentais para reduzir o risco de progressão. E reduzir o tempo de uso de telas e garantir pausas regulares durante atividades de perto também são recomendações importantes1,2,5.
Para facilitar o entendimento do manejo da miopia em crianças no consultório, acompanhe abaixo o passo a passo de como proceder em cada caso, de acordo com a Diretrizes brasileira para o controle da Miopia em crianças realizado pela Sociedade Brasileira de Oftalmopediatria (SBOP) e pela Sociedade Brasileira de Lentes de Contato, Córnea e Refratometria (SOBLEC)9.
Início do tratamento
- Crianças com miopia diagnosticada:
Avaliar idade, progressão da miopia (MPR), refração e diâmetro axial (AXL).
Uso de atropina no controle da miopia
- Idade 5 a 8 anos
Iniciar com atropina 0,025% ou 0,05%.
- Idade 9 a 15 anos
MPR < 0,50 D/ano, refração ≤ -4 D, AXL < 24,5 mm
Iniciar com Atropina 0,01%.
MPR > 0,50 D/ano, refração > -4 D, AXL > 24,5 mm
Iniciar com atropina 0,025%.
- Idade > 15 anos
Iniciar com atropina 0,01%.
Avaliação de Eficácia
- Monitoramento semestral: status refrativo.
- Monitoramento anual: biometria ocular.
Aumentar ou manter a dose
- Após 1 ano
- Se controle insuficiente com Atropina 0,01%, aumentar para 0,025%.
- Após mais 1 ano, se ainda insuficiente, aumentar para 0,05%.
Redução gradual de atropina
- Após o tratamento (2 anos ou mais)
Reduzir a dose gradualmente por pelo menos 2 meses.
Alternar a aplicação da atropina 0,01% em dias alternados antes de descontinuar.
Lentes para controle de miopia (com desfocus hipermetrópico)
- DIMS (Hoya)
Redução de 59% na progressão da miopia.
- HALT (Essilor)
Redução de 67% na progressão da miopia.
- MiSight (CooperVision)
Redução de 59% na progressão da miopia.
Ortoceratologia (Ortho-K)
- Considerar para crianças com corneas regulares.
Reduz a progressão da miopia em 35%- 60%.
Contraindicações: astigmatismo elevado, córneas com curvatura elevada.
Combinação de Tratamentos
- Atropina + Ortho-Kou Atropina + Lentes com defocus
Efeito potencializado em miopia de baixa/moderada.
Contraindicações do Uso de Atropina
- Astigmatismo > 1,50 D ou 2,50 D, ectasia corneal, doenças neurológicas, alergia à atropina.
Considerar Discussão com a Família
- Esclarecer sobre potenciais efeitos colaterais: fotofobia, diminuição da acomodação, cefaleia.
Conclusão
Como oftalmologista, você desempenha um papel fundamental no diagnóstico precoce e na intervenção adequada da miopia em crianças. Com a prevalência crescente dessa condição, é essencial estar bem-informado sobre as opções de tratamento disponíveis e os métodos de acompanhamento. Seja usando atropina de baixa dose, lentes com defocus periférico ou promovendo mudanças no estilo de vida, a intervenção precoce pode fazer uma grande diferença na saúde ocular a longo prazo.
Ficar atento aos avanços nas pesquisas e às melhores práticas de manejo da miopia permitirá que você ofereça aos seus pacientes o cuidado mais eficaz possível. Afinal, cuidar da visão das futuras gerações é uma das nossas maiores responsabilidades!
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