Inteligência Artificial? É utilizada já há algum tempo! Aparelhos sempre de última geração para obter resultados cada vez mais confiáveis? Sem dúvida! Cirurgiões cientes dos limites dos procedimentos, mas prontos para examinar com cuidado e ética para casos desafiadores? Sim! Todas essas e muitas outras perguntas e respostas cabem para as cirurgias de correção visual a laser ou cirurgias refrativas da córnea, procedimentos que estão entre os mais elegantes e sofisticados da atual prática oftalmológica e que se inserem na constante e infinita procura por melhores soluções para manter, devolver ou melhorar a visão do paciente que procura o médico oftalmologista.
Em 2018, de acordo com dados da empresa Market Scope, foram realizadas no Brasil aproximadamente 158 mil cirurgias de correção visual a laser, número bastante distante dos 775 mil procedimentos realizados no mesmo período nos EUA ou dos 945 mil na China, mas superior aos feitos na França (81,5 mil), Reino Unido (83 mil) ou Japão (87 mil).
Quando os dados são examinados com mais cuidado e relacionados com a população, verifica-se que foram realizadas 0,8 cirurgias deste tipo para cada grupo de mil brasileiros, enquanto essa relação é 2,4 nos EUA; 1,7 na Alemanha; 1,2 na França; 0,7 na China e 0,5 na América Latina.
Além dos números e estatísticas, sempre discutíveis, deve-se levar em conta que, por razões históricas e sociais, o País acumulou invejável massa crítica nessa subespecialidade, personificada, entre tantos outros, pelo atual presidente do Comitê Executivo da International Society of Refractive Surgery (ISCS), Renato Ambrósio Júnior.
As aulas ou, mais recentemente, as lives sobre cirurgia refrativa a laser mostram grande quantidade de técnicas e ferramentas, cada qual utilizada para resolver determinado caso que chega aos consultórios. Um dos pontos mais apresentados e debatidos são as ferramentas de inteligência artificial, as chamadas “calculadoras”: programas e aplicativos que, baseados em dados obtidos na anamnese e nos exames pré-operatórios, conseguem indicar caminhos para resolver aquele caso particular, numa customização que resulta, quase sempre, na obtenção dos melhores resultados visuais e no afastamento de danos iatrogênicos.
Para o professor da Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas (UNCISAL) e presidente da Sociedade Norte-Nordeste de Oftalmologia (SNNO), João Marcelo de Almeida Gusmão Lyra, os casos desafiadores das cirurgias refrativas são aqueles representados, principalmente, pelos pacientes que apresentam córneas finas ou irregulares ou que já sofreram agressões ou exibem cicatrizes. Se até pouco tempo tais casos eram descartados e encaminhados para outros procedimentos, hoje são estudados com mais cuidado e podem, dentro de limites, submeterem-se a variáveis dos procedimentos a laser na córnea.
João Marcelo é um dos executivos do Brazilian Study Group of Artificial Intelligence and Corneal Analysis (BrAIn), grupo que desenvolveu uma das calculadoras de parâmetros para auxílio de decisões médicas para realização de cirurgias refrativas que está em uso em mais de 800 centros cirúrgicos, em aproximadamente 50 países.
De acordo com ele, o uso de calculadoras, que ele chama de apoios à decisão médica, permite verificar se o paciente é um bom candidato à cirurgia refrativa, passo fundamental para o sucesso do procedimento.
“O programa recolhe dados dos mais variados exames, bem como os dados do paciente e compara os resultados com o cadastro de casos que foi acumulado ao longo dos anos e com isso vai poder apontar se aquele olho está com maiores tendências a se estabilizar ou se é arriscado realizar a cirurgia. Além disso, o programa tem condições de auxiliar o médico na escolha do tipo de cirurgia realizar e quanto retirar de tecido para ter melhores resultados”, declarou.
Lembretes importantes
Já o docente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e ex-presidente do Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO), Marco Antônio Rey de Faria, acredita que embora as chamadas calculadoras sejam extremamente uteis, os segredos do sucesso da cirurgia refrativa a laser são a seleção do paciente e a realização cuidadosa dos exames pré-operatórios.
Considera que o médico deve levar em conta três perigos que rondam a cirurgia refrativa a laser: o glare, o ceratocone iatrogênico e o olho seco.
Considera que a ocorrência de glare, que nas antigas cirurgias refrativas era relativamente comum, atualmente pode ser facilmente evitado com a realização do planejamento cuidadoso da cirurgia que leve em consideração a curvatura e a estrutura da córnea, bem como o tamanho da área central onde haverá a ablação, no caso da miopia, ou da área periférica, que será afetada para correção da hipermetropia.
Os mesmos cuidados devem ser tomados para evitar a chamada ectasia, isto é, o surgimento do ceratocone iatrogênico, que estava latente e foi provocado pela remoção do tecido da córnea.
“Neste ponto, as calculadoras auxiliam demais a decisão médica sobre o tipo de cirurgia a ser feito, a quantidade de tecido a ser removido ou se o risco é muito alto e o paciente precisa ser acompanhado por mais algum tempo e pensar em outra alternativa de tratamento”, explica.
Marco Rey também chama atenção para o problema do olho seco que a cirurgia refrativa a laser provoca. Como parte tecido da córnea é removido, as enervações que estimulam as glândulas lacrimais a produzirem a secreção também são destruídas e, por algum tempo, o filme lacrimal fica prejudicado. O cirurgião deve discutir isso com seu paciente e considerar a questão durante a anamnese e a realização dos exames pré-operatórios. Existem casos em que o olho seco já está presente e a situação só tende a piorar com a cirurgia.
“A grande maioria dos pacientes volta a produzir lágrimas em quantidade adequada no prazo de seis meses a um ano e existem até casos de hiperprodução de lágrimas. Mas a estrutura da córnea nunca mais será a mesma e isto deve entrar nos cálculos pré-operatórios”, afirmou.
Por fim, Marco Rey chama a atenção para outro aspecto que muitas vezes é esquecido pelos médicos e pacientes: a cirurgia refrativa geralmente é feita no jovem que, mais tarde, pode vir a precisar fazer a cirurgia de catarata.
Embora assegure que são procedimentos que fazem abordagens diferentes na córnea, Marco Rey lembra que muitas vezes o cálculo da lente intraocular é afetado pela cirurgia refrativa feita anos antes.
De acordo com ele, o filme lacrimal operado pode interferir no desempenho das LIOs multifocais atuais, da mesma forma que a curvatura modificada da córnea (aplainada no caso da cirurgia para correção da miopia ou “abaulada” no caso da cirurgia de hipermetropia). Desta forma, o cirurgião de catarata tem que fazer cálculos mais sofisticados para jogar o foco mais para trás ou mais para frente ou usar lentes diferentes.
“Muitas vezes, o paciente que passou por cirurgia de correção da hipermetropia se dá muito bem com LIO de foco estendido, o que nem sempre acontece com aqueles que corrigiram a miopia, que muitas vezes têm melhor visão com uma lente difrativa normal ou bifocal. Entre os pontos que precisam ser analisados estão o diâmetro pupilar, a existência de alguma aberração e a centralidade da ablação. Recomendo sempre que aqueles que se submeteram à cirurgia refrativa guardem os resultados dos exames pré-operatórios realizados, pois serão de grande valia décadas depois, se precisar operar a catarata”, concluiu Marco Antônio Rey de Faria.
Ceratocone frustro
“Um dos grandes problemas na cirurgia refrativa é a existência do que chamamos ceratocone frustro, isto é, uma disfunção da córnea que dificilmente é percebida e que, depois da cirurgia, manifesta-se como ectasia. Esta possibilidade ressalta a importância dos aparelhos, topógrafos e tonômetros para que o médico tenha parâmetros para evitar essa situação. São necessários exames sofisticados para diagnosticar o mais precocemente possível pacientes que se enquadram nesse caso, que pode até se converter em contraindicação para a cirurgia”
Esta é a avaliação de José Augusto Alves Ottaiano, docente da Faculdade de Medicina de Marília e ex-presidente do CBO, que concorda que o grande segredo para o sucesso da cirurgia é a escolha do paciente adequado e a correta indicação do método, da técnica, dos parâmetros e protocolos.
Afirma que a grande demanda deste tipo de procedimento é para correção da miopia, muitas vezes combinada com astigmatismo. No míope, a ablação é maior no centro, para aplainar a córnea, enquanto no hipermétrope, grosso modo, a área periférica é mais atingida, para esculpir a córnea para torna-la mais abaulada, o que exige maior precisão e mais atenção nos cálculos e planejamento pré-operatórios.
Limites redução do número de operações
Os limites representam a grande preocupação do presidente da Associação Brasileira de Catarata e Cirurgia Refrativa (ABCCR), Bruno Machado Fontes, para quem é fundamental verificar cuidadosamente o quanto de tecido pode ser removido para que a córnea mantenha sua anatomia e que seja possível proporcionar boa visão ao paciente. Assim, em casos de córneas finas ou irregulares, ele prefere contraindicar o procedimento.
“Até conseguimos fazer a cirurgia com laser em córneas que são finas, mas que tenham uma topografia regular. Existem trabalhos do Marcony Santhiago que mostram que podemos remover até 35 ou 40% da espessura da córnea na cirurgia, desde que ela tenha topografia regular. Porém, frequentemente vermos córneas com topografia irregular e o médico precisa saber identificá-las, interpretar corretamente a tomografia para garantir o sucesso da operação”, disse.
As altas ametropias representam grande desafio para o cirurgião, na avaliação de Bruno Fontes. A correção da miopia exige o aplanamento da córnea, aplanamento este que tem limites a partir dos quais a visão é prejudicada.
“Grosseiramente, tendemos a aplainar 0,7 dioptrias na córnea para corrigir 1 grau de miopia. A tendência é que o cirurgião não deixe a a córnea mais plana do que 36 ou 37 dioptrias. É um número discutível, mas é o limite com o qual a maioria dos colegas trabalha”, explicou.
Ao abordar o caso da hipermetropia, Bruno Fontes também afirma que devem ser observados os limites de quanto se pode encurvar a córnea para dar uma boa visão, num número que ele situa entre 47 a 48 dioptrias.
Ao falar das calculadoras, o presidente da ABCCR lembra que elas são extremamente úteis para os casos de córneas topograficamente normais. No caso de córneas com topografia irregular, os dados que alimentam o programa precisam ser manuseados com mais cuidado para que os resultados não sejam distorcidos e levem a resultados indesejáveis.
“É importante que o médico saiba fazer a análise dos mapas de elevação, do mapa tangencial, da topografia e da tomografia. Isto é o básico, que dá segurança ao paciente. A partir disso, o uso de calculadoras ajudar muito a decisão do cirurgião”.
Bruno Fontes afirma que a cirurgia refrativa a laser nunca foi tão segura e tão previsível, mas que se registra em quase todo mundo a redução do número de procedimentos deste tipo realizados. Afirma que o tema tem sido debatido em congressos e são vários os fatores que contribuem para esta redução.
Entre esses fatores, cita a melhoria constante das lentes de contato, o que leva os jovens a se adaptarem satisfatoriamente a seu uso e, quando a miopia se estabiliza e surge a oportunidade para a realização da cirurgia refrativa, ela não desperta o interesse do paciente. Bruno Fontes também cita trabalhos que estabelecem que a chamada geração “milenium” é mais conservadora com relação ao seu corpo e procura preservá-lo mais do que as gerações anteriores.
O presidente da ABCCR também ressalta que a cirurgia refrativa nunca foi tão segura, mas também nunca foi tão cara, o que provavelmente seja outro fator para a redução da procura por esse tipo de tratamento.
“Embora existam trabalhos que mostrem que a longo prazo a cirurgia refrativa a laser gera mais economia do que o uso de lentes de contato ou de óculos, seu preço representa uma barreira para muitas pessoas”, concluiu Bruno Machado Fontes.
Fonte: Revista Universo Visual