Por José Vital Monteiro
A recente publicação da resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre telemedicina provocou um pequeno terremoto nas redes sociais frequentadas por médicos oftalmologistas. Os debates sobre a resolução, posteriormente revogada, acabaram resvalando para outros pontos tais como inteligência artificial, deep learning e machine learning, impressão 3D e utilização de simuladores, transmissão de dados, fotos e diagnósticos pela internet e o futuro da Especialidade diante deste turbilhão de tecnologias de vanguarda que, de acordo com muitos dos participantes desses debates, ameaçam a existência da Oftalmologia tal como conhecemos e a relação entre os médicos e pacientes.
Sem entrar no mérito da resolução ou dos debates que provocou, a situação tornou evidente que tais tecnologias denominadas “de vanguarda” fazem parte da realidade e do horizonte da Oftalmologia do Brasil e que precisam ser foco de atenção de debates. E, dentro desses debates, posição de destaque deve ser ocupado pelas instituições de ensino, já que representam o primeiro local de eventuais conflitos sociais e éticos provocados pelo avassalador e inevitável mundo digital.
“Na realidade, acho que nós que lidamos com a Oftalmologia somos muito lentos na absorção das tecnologias disponíveis e acanhados em abandonar os paradigmas consagrados. E isto ressalta ainda mais a importância do ensino da Especialidade, principalmente naquelas instituições em que não estão amarradas aos métodos consolidados em seus programas que, no Brasil, geralmente são as instituições públicas”, afirma Paulo Schor, professor adjunto do Departamento de Oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Schor faz questão de explicitar sua avaliação. Para ele, quando se aborda a questão da assistência oftalmológica, fica evidente que a adoção de microscópios de maior resolução, ou de equipamentos dotados de lâmpadas led, ou marcadores de eixo de três dimensões ligados a aparelhos de OCT e outros constantes aprimoramentos que o mercado apresenta contribuem para melhorar o resultado que é entregue ao paciente: “nossos inúmeros congressos abordam muito bem esta faceta da questão”, constata.
Mas, segundo ele, o acanhamento na adoção de novas tecnologias aparece em outro nível: na utilização de tecnologias e paradigmas existentes em outras áreas do conhecimento, que demoram a ser absorvidas pela Oftalmologia. Cita como exemplo o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNEPEM), que está inaugurando em Campinas (SP), um acelerador linear de partículas Sirius para a realização de pesquisas que poderiam ser direcionadas à área biológica, à Medicina e à Oftalmologia em particular. De acordo com Schor, o uso de microscópios de altíssima resolução, muito comum nas instituições de pesquisa de física, poderiam abrir panoramas promissores para estudos das alterações gênicas da retina, entre outros tantos exemplos de caminhos para pesquisa multidisciplinar com foco direcionado para Oftalmologia.
E o ensino?
“Dentro do ambiente acadêmico, temos contato muito rápido com todas as novidades, mudanças e inovações e tecnológicas. Muitas vezes não na forma de produtos específicos, mas na forma de conceitos, de grandes grupos de princípios, artefatos e aparelhos que acabam modificando a forma que transmitimos o conhecimento e percebemos a Oftalmologia e a assistência oftalmológica. Os alunos são os grandes catalisadores deste movimento, que acabam envolvendo os professores e mentores e, todos juntos, vamos buscar informações e superar eventuais obstáculos provocados por limitações econômicas”.
É o que declara Mauro Silveira de Queiroz Campos, colega de Schor no Departamento de Oftalmologia da UNIFESP, para quem a demanda por informações sobre inovações geralmente parte dos alunos, que provocam os professores e mentores a realizarem pesquisas e estudos e compartilharem o conhecimento adquirido entre todos procurando desenvolver o espírito crítico dos próprios alunos.
Mauro Campos também afirma que a as chamadas inovações de vanguarda da Oftalmologia já fazem parte do dia a dia da especialidade, pelo menos as instituições de ensino. Cita como exemplos os conceitos de inteligência artificial, de machine learning, de impressão 3D e da própria telemedicina, que tanta discussão provocou nas redes sociais.
Explicou que o próprio prontuário eletrônico do Hospital São Paulo, ligado à UNIFESP, foi montado dentro do conceito de inteligência artificial e learning machine, pois todos os dados diagnósticos são acumulados e vão fazer parte de um grande arquivo (big data) que alimenta os computadores na orientação do diagnóstico dos novos casos, baseados nos dados e fotos dos milhares de casos atendidos anteriormente. “Temos também o caso da impressão em 3D, que é um conceito genérico que pode ser utilizado de várias formas”, afirmou.
Impressão 3D
A impressão 3D, conhecida também como prototipagem rápida, é a fabricação de um objeto a partir de modelos tridimensionais que podem ser criados através de software de modelagem em 3D ou através de uma digitalização também em 3D. O computador envia as instruções para a impressora e, por processos variados, o objeto em questão é fabricado.
Campos explica que essa impressão também pode ser feita com diferentes materiais biológicos. Cita como exemplo a impressão de uma córnea impressa em 3D a partir de culturas de células: N a primeira camada são dispostas as células que correspondem ao endotélio da córnea, em outra o estroma e na última o epitélio e, a partir de então, a máquina é programada para imprimir a córnea.
“Um dos principais usos que fazemos é a impressão de fios ou fibras para cirurgias oculares que já contém antibióticos, programando a máquina para produzir estes fios. Também estamos pesquisando a produção de curativos biológicos oculares, como se fosse um band-aid de células, do tamanho e no formato desejado, para cicatrização de queimaduras e lesões corneanas”, declarou Campos.
Por outro lado, voltando sua atenção especificamente para o ensino da Oftalmologia, Paulo Schor considera que a participação do aluno na operação de impressão em 3D é bastante importante enquanto processo educativo, pois o aluno deve ver de onde vem a imagem, como transformar aquela imagem em arquivo compatível com a impressora, administrar a impressão e verificar a qualidade da peça que imprimiu.
“Desta forma, a experiência é muito mais rica e aprende muito mais. A impressão 3D tem grande potencial no ensino da Oftalmologia, já que, entre outras coisas, as peças impressas podem contribuir para o entendimento das doenças. Pelas informações que tenho, este potencial não está sendo plenamente utilizado nas instituições de ensino, numa prova a mais do que disse anteriormente que ainda somos muito tímidos na adoção de tecnologias”, afirmou Schor.
Materiais de cirurgia
Na Universidade de São Paulo (USP), a inovação em Oftalmologia inspirou a criação de um grupo de estudos e atividades aberto a todos interessados, mas com predominância dos integrantes do Departamento de Oftalmologia: o Grupo Geek Vision, criado por Pedro Carlos Carricondo, diretor do Pronto Socorro Oftalmológico do Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
O grupo, de acordo com seu fundador e principal inspirador, busca novas formas de pensar e de ensinar a Oftalmologia e de refletir sobre novas formas de garantir o atendimento aos pacientes.
“Tentamos enfrentar os problemas dentro de nossa realidade com custos compatíveis. No momento nossa intenção é criar novas formas de wet lab (treinamento de cirurgias com olhos de animais) e de dry labs (simuladores). Descobrimos que existem peixes que têm tamanho de olhos bastante interessantes para simulação de cirurgias, além de outros animais. Estamos estudando agora formas de fazer estes olhos desenvolver catarata”, afirmou Carricondo.
Com relação à impressão em 3D, o grupo Geek tem pessoas trabalhando na fabricação de instrumental para cirurgia de catarata com plástico descartável esterilizado de custo acessível. Carricondo também informou que existem outros integrantes do grupo trabalhando na impressão de modelos de cabeças para encaixar olhos para treinamento cirúrgico.
“A existência dos simuladores de cirurgia, que exercem essa função muito bem, tornaram o trabalho desse grupo redundante, com perspectivas limitadas, mesmo assim, os modelos impressos são bastante eficientes já que simulam os ossos da fronte que exigem certos posicionamentos por parte do cirurgião que, num wet lab com utilização de olho de porco, por exemplo, tem maior liberdade de movimento”, disse.
O médico da USP informa que integrantes do Geek também estão trabalhando com inteligência artificial criando aplicativos para pacientes cegos identificarem e serem avisados dos horários de ingerir medicamentos. Outro campo de atividade está sendo a criação de um banco de imagens grande o suficiente de determinadas moléstias oculares para que o computador possa gerar uma imagem artificial, a ser usada futuramente em aulas e apresentações.
“Essa imagem artificial criada a partir do banco de dados tem o objetivo de cumprir a nova legislação que o Brasil está adotando que permite ao paciente a opção de não querer ser identificado”, explica Carricondo.
Simulador cirúrgico
Diminuição significativa do número de complicações nas cirurgias realizadas pelos alunos e residentes, aumento da autoconfiança dos jovens cirurgiões, economia de material e redução do tempo da curva de aprendizagem da cirurgia de facoemulsificação (e em alguns casos de procedimentos cirúrgicos na retina): estes são alguns dos benefícios registrados com a adoção dos simuladores de cirurgia oculares.
O primeiro simulador cirúrgico deste tipo do Brasil começou a ser utilizado em abril de 2012 em curso coordenado por Flávio Rezende, Titular de Pós-Graduação em Oftalmologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Aproximadamente três anos depois foi instalado outro aparelho destes no Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Botucatu UNESP e no final de 2016, a Latinofarma, divisão do Grupo Cristália dedicada à Oftalmologia, instalou em São Paulo outro simulador. Atualmente existem seis desses aparelhos no Brasil.
O simulador cirúrgico é um aparelho de realidade virtual. Permite que o operador realize a cirurgia de forma bastante semelhante ao que ocorreria na operação de um olho humano. O operador “sente” a resistência dos tecidos, precisa se adaptar à posição dos ossos e cavidades cranianas e deve realizar todas as etapas da cirurgia com o cuidado e destreza que utilizaria com um paciente real. Os resultados são computados e servem para avaliar a habilidade do médico.
Levantamento realizado por docentes da Faculdade de Medicina de Botucatu (Universidade Estadual Paulista – UNESP) mostrou o número de complicações ocorrido nas dez primeiras cirurgias de facoemulsificação em pacientes humanos de um grupo de 70 alunos que haviam passado por treinamento no simulador foi 12,86%, significativamente menor do que os 27,14% apresentados por outro grupo também de 70 alunos que não havia passado pelo treinamento.
“Antes só podíamos treinar a cirurgia em olho de bicho ou no próprio paciente. Com o advento dos simuladores computacionais realistas, podemos dar ao jovem a sensação realista de estar fazendo capsulorrexe, cortando a membrana sobre a retina e assim por diante. Os resultados para o ensino são evidentes”, declara Paulo Schor.
De acordo com Antônio Carlos Lottelli Rodrigues, Professor Associado da Faculdade de Medicina de Botucatu, desde que o simulador foi instalado na faculdade, mais de uma centena de alunos já passaram pelo curso de 20 horas. A partir de 2017, a instituição disponibilizou a aparelhagem para a realização de cursos individuais a alunos de outras escolas e mesmo a médicos oftalmologistas interessados no aprimoramento de suas competências cirúrgicas.
“Como orientador, é muito fácil perceber que após passar pelo treinamento os alunos adquirem habilidades de movimento compatíveis com as dimensões oculares, além de habilidades específicas para realizar todas as etapas da facoemulsificação, inclusive coordenando os movimentos manuais com a utilização do pedal. Tudo isso “economiza adrenalina e beneficia diretamente os pacientes”, afirma Lottelli Rodrigues.
Já o simulador instalado pela Latinofarma beneficiou, de acordo com dados da empresa, mais de mil alunos de instituições de todo o Brasil com a realização de mais de duas mil sessões. Os alunos dos cursos de São Paulo representam a maioria dos favorecidos e foram firmados convênios para a realização regular de treinamentos com a utilização deste equipamento.
O simulador da Latinofarma também participou de dry labs em vários congressos de oftalmologia. No Congresso Brasileiro de Oftalmologia de 2018 (Maceió), o aparelho foi inclusive protagonista de uma competição de destreza cirúrgica entre dezenas de equipes formadas por médicos e alunos.
“O ensino da Oftalmologia está mudando por que o mundo está mudando e os grandes artífices desta mudança são os alunos, já que eles nasceram e cresceram no mundo digital ao qual nós, os professores, temos que nos adaptar de uma forma ou de outra. Ainda temos muito o que caminhar para utilizar todas as portas abertas pela tecnologia para adicionar valor ao conhecimento. E este é um desafio diário”, concluiu Mauro Silveira de Queiroz Campos, da UNIFESP.
Fonte: Universo Visual