Desde o início do ano, quando veio à tona a situação emergencial pela qual passa a população do território Yanomami, vários atores, como governo e organizações não-governamentais, intensificaram a atuação na região para mapear o problema e prestar atendimento àquele povo. Insegurança alimentar, desnutrição infantil, falta de água limpa, de saneamento e de acesso à saúde são alguns dos problemas enfrentados pelos habitantes do maior território indígena do Brasil.
Celso Takashi Nakano, fundador da Associação Médicos da Floresta (AMDAF), entidade civil sem fins lucrativos que reúne médicos, gestores e criativos para prestar serviços de saúde em comunidades indígenas localizadas em áreas de difícil acesso da Floresta Amazônica, já esteve no local e contou à Universo Visual o que encontrou na terra indígena Yanomami.
Revista Universo Visual: De forma geral, como é o trabalho da AMDAF?
Celso Takashi Nakano: A Associação Médicos da Floresta é uma organização sem fins lucrativos que tem trabalhado em várias regiões pelo Brasil. Percorremos, por exemplo, 70% do território do Xingu, atuamos no sul da Bahia, com os pataxós, e no ano passado fomos para o Vale do Javari, uma das regiões mais isoladas do planeta. Esses trabalhos sempre acontecem em paralelo com o pessoal da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI). Nós tentamos colaborar em algumas questões que eles não conseguem alcançar e oftalmologia é uma delas, pois carece de especialista. E o braço de oftalmologia sempre foi muito importante no nosso trabalho só que, uma vez que estamos nessas regiões, percebemos outras necessidades, como pediatria, odontologia, ginecologia, infectologia. Então fomos agregando outras especialidades.
UV: Como a AMDAF chegou ao território Yanomami?
Nakano: Em novembro de 2021 começaram a surgir as primeiras notícias do estado de saúde precário do povo Yanomami. Foi quando a equipe do SESAI pediu nosso auxílio e de outras organizações para ir até lá e tentar atuar para melhorar a situação. No ano passado, fomos quatro vezes à região, entre março e dezembro. Fomos com uma equipe enxuta porque o acesso é muito difícil.
UV: E chegando lá, qual foi a sua impressão como médico? O que encontrou era o que esperava?
CNakano: Esta região é um dos epicentros dessa crise atual, no extremo noroeste do estado de Roraima. Estive lá dez anos atrás e já tinha presenciado esse estado muito precário, com condições de saúde muito ruins. Mesmo assim foi muito impactante chegar lá desta vez, principalmente pela alarmante questão da desnutrição.
A situação que encontramos entre os Yanomami é catastrófica. A desnutrição infantil chega a 80% nas tribos isoladas. Faltam remédios para malária. O índice de contaminação por parasitas chega a 70% da população. Um índice que está entre os piores do mundo.
Mesmo como médico nunca tinha visto uma situação dessas, de carência total de alimentos e também de falta de condições básicas de higiene, saneamento, água. Água limpa, filtrada, não existe. Uma coisa interessante é que todas as outras regiões que visitamos também são carentes, mas percebíamos que havia o mínimo de condições de água, principalmente no Xingu. Logo na primeira entrada da nossa equipe começamos a fazer interlocuções com várias agências nacionais e internacionais em relação à água, para criar uma infraestrutura de poço, filtragem, para que tenham água limpa para beber e cozinhar. Isso é muito desafiador, é muito mais do que tratar doenças.
UV: Teve alguma outra peculiaridade em relação à experiência que já tinham?
Nakano: Quando vamos para outras regiões, vamos mais para atender, tratar doenças, distribuir óculos, fazer cirurgias. E chegamos lá com essa mentalidade de tratar doença. Mas lá tem uma infinidade de patologias para serem tratadas, doenças de pele, muitos casos de malária, além das doenças oculares. E pensávamos que tratando as doenças naquele momento, daqui a duas semanas, quando tivéssemos ido embora, elas voltariam porque o contexto ambiental é totalmente inapropriado.
UV: Imagino que essa desnutrição e essas outras doenças correlatas acabam influenciando na saúde ocular do povo Yanomami. O que vocês identificaram em relação à saúde ocular?
Nakano: Tem uma coisa muito peculiar na região e que é fundamental para ajudar a melhorar essa situação em que eles vivem que é a existência de tracoma. Eu não tinha tido a experiência de ver essa doença de forma ativa no meu dia a dia porque é uma patologia que foi praticamente extinta no Brasil em zonas urbanas, e mesmo nas áreas rurais, por causa do desenvolvimento do país na questão de saneamento básico.
UV: E lá a precariedade local cria um ambiente propício para essa doença…
Nakano: Sim, o tracoma é uma doença provocada pela clamídia, que causa conjuntivite. O que acontece é que há uma mosca, que é mais frequente em lugares com poucas condições de saúde e higiene, que transmite a doença de uma pessoa para outra. Existe uma condição de reinfecção ao longo da vida e em fase mais avançada a patologia leva à cegueira e é irreversível. Um dos médicos do grupo é capacitado oficialmente para diagnosticar o tracoma e vimos prevalências absurdas no território indígena Yanomami, mais de metade das crianças ou da população inteira dentro das aldeias contaminadas. E isso é importantíssimo não só para tratar, mas no contexto geral. Se existisse um investimento em higiene pessoal – e isso envolve água e saneamento, vai não só combater a doença como melhorar a saúde global dessa população. Porque todas as doenças são associadas, verminoses, desnutrição, diarreia, tudo envolve água e saneamento básico. Faz parte da nossa responsabilidade como oftalmologia brasileira combater esse cenário.
UV: Para finalizarmos, gostaria que você contasse sobre a reação deles ao receberem o auxílio da AMDAF.
Nakano: Varia bastante dependendo do nível de contato que as pessoas têm com o mundo externo. Os idosos costumam ficar mais resguardados e as crianças menores também. Geralmente os adolescentes e os adultos acabam tendo mais contato com a gente, entendem um pouco mais nossa atuação. E também tem comunidades que estão mais perto dos postinhos de saúde, de uma base do exército, então estão mais acostumados. De uma maneira geral existe um bom relacionamento. Nós respeitamos muito a cultura local. Há comunidades em que a população procura a medicina tradicional deles, muita pajelança, e os deixamos à vontade para eles nos procurarem quando quiserem. Isso é muito cuidadoso, não só por parte do nosso grupo, mas da equipe de saúde do governo. Talvez o conjunto da medicina deles com a nossa, seja o melhor caminho. Aqui sabemos que tanto a deles muitas vezes não é tão eficiente ou, às vezes, as nossas condições para exercer a medicina lá são muito precárias, ficando longe do ideal para oferecer a melhor assistência possível.
UV: E a questão cultural também é desafiadora…
Nakano: Vou dar um exemplo cultural. Imagina que uma criancinha ianomâmi está desnutrida e tem de ser removida para um hospital porque está correndo risco de vida. Culturalmente ela não vai só com a mãe, vai a família toda. Isso em uma logística difícil, mas a família toda, com seis, sete pessoas, embarca em um avião pequeno para Boa Vista. Chegando lá ficam todos na casa de apoio. No total, ficam mais de 300 pessoas de várias regiões, com familiares doentes, e que podem ficar transmitindo doenças para quem está ali. Aí vem a reflexão de: será que estamos fazendo o melhor para a família como um todo. Sempre existiu questionamento, mas hoje está muito mais em evidência.
UV: E também são pessoas vindas de aldeias diferentes, certo?
Nakano: Tem comunidades que são inimigas entre eles aí você junta todo mundo num lugar só em Boa Vista. É muito complexo, desafiador, por isso existem pessoas competentes, criando soluções. Mas é difícil sim, sem contar a questão da limitação de recursos. Tenho convicção de que a situação vai melhorar e de que as pessoas encontrarão soluções, isso em médio e longo prazos.
UV: E você, como encara esse desafio?
Nakano: Pessoalmente é empolgante porque é uma responsabilidade lidar com a questão mais social. É a responsabilidade social de ser médico, de poder ajudar mais pessoas. Hoje eu amo o que eu faço, por mais que seja difícil e trabalhoso bater de porta em porta para pedir ajuda das empresas, das pessoas físicas, de organizações, mas com certeza é por uma causa que vale a pena.
Sobre a AMDAF
A Associação Médicos da Floresta é uma entidade civil sem fins lucrativos, fundada em abril de 2016, que reúne médicos, gestores e criativos para prestar serviços de saúde em comunidades indígenas localizadas em áreas de difícil acesso da Floresta Amazônica.
Em 2022, foi uma das ONG’s que mais fizeram ações no território Yanomami, que ainda sofre os efeitos e consequências de diversas doenças infecciosas. Foram mais de 2.000 atendimentos, em 38 aldeias da região, muitas delas de difícil acesso.