Por Sandra Franco – consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde, ex-presidente da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico-Hospitalar da OAB de São José dos Campos (SP), membro do Comitê de Ética da UNESP para pesquisa em seres humanos e Doutoranda em Saúde Pública.
Uma nova lei, que entrou em vigor no final do ano passado, busca ampliar a segurança jurídica no que se refere à utilização do prontuário eletrônico no setor de saúde no Brasil.
Até a publicação da Lei Federal nº 13.787, de 27 de dezembro de 2018, o arquivamento de prontuário estava regulamentado por resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) e do Ministério da Saúde, além de algumas leis que disciplinam o tema. A lei traz como inovação a possibilidade de digitalizar e descartar os prontuários, que muitas vezes são perdidos, extraviados ou mesmo deteriorados pelo tempo em razão do armazenamento inadequado.
Importante destacar que, no âmbito federal, já existe regulamentação para o arquivamento de documentos em meios eletromagnéticos, a Lei 12.682/2012. Porém, não se trata nesta lei especificamente de documentos da área de saúde e não existe qualquer menção sobre o tempo de armazenamento dos documentos arquivados digitalmente. Consta, porém, da mesma forma que na nova lei, a obrigatoriedade de se manter a integridade, a autenticidade e a confidencialidade do documento digital, com o emprego de certificado digital emitido no âmbito da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP – Brasil.
Se, por um lado, a recente lei traz como novidade a possibilidade de se descartarem os prontuários digitalizados, também é fato que o texto repete, em partes, dispositivos já presentes em uma lei anterior, com mais de 50 anos – Lei n.º 5.433/1968 que regula a microfilmagem de documentos oficiais.
Outra regulamentação, que apresenta previsões na nova lei, é a Resolução CFM 1.821/2007, que apresenta normas técnicas concernentes à digitalização e uso dos sistemas informatizados para a guarda e manuseio dos documentos dos prontuários dos pacientes, autorizando a eliminação do papel e a troca de informação identificada em saúde. No texto, há previsão do Manual de Certificação para Sistemas de Registro Eletrônico em Saúde pelo qual somente poderia ser dispensado o prontuário físico quando o prontuário eletrônico apresentasse o Nível de Garantia de Segurança 2 de Certificação Digital. Tal certificação era, até o ano passado, responsabilidade do CFM, em parceria com o SBIS parceria essa não mais vigente, conforme se verifica pela recente Resolução CFM nº 2.218, de 2018, mas que possivelmente será renovada.
Vale destacar que muitos médicos sequer tinham conhecimento se o sistema por ele contratado apresenta a referida certificação e, por desconhecimento da norma, a recomendação de guarda do prontuário físico (quando ausente o NGS2) é negligenciada.
Juridicamente, portanto, o sistema eletrônico de guarda de informações sem a garantia de alguns requisitos como a integridade de informações, a garantia do sigilo, a inviolabilidade, pode ser questionado. Evidente que uma perícia técnica poderá ser realizada na eventualidade de suspeita de adulteração de dados do paciente. Mas fica a questão: e a garantia de sigilo dessas informações, como saber se fora preservada sem o uso de um sistema certificado?
A se considerar o texto da nova lei, não se exigiria o nível de certificação indicado na resolução do CFM, para a dispensa do prontuário físico bastando que o processo de digitalização utilize certificado digital emitido no âmbito da ICP-Brasil.
Outra realidade observada pela nova lei: a dispensa de documentos já existentes, após a digitalização fiel, observando o ICP-Brasil e a orientação para criação de novos documentos, uma vez que estes poderão se realizar em sistema eletrônico sem o backup físico, antes exigido pelo Manual de Certificação Digital do CFM, quando utilizado sistema eletrônico nível 1 (NGS1).
Sem dúvida, a alteração quanto à possibilidade de dispensa de arquivo físico permitirá que muitos estabelecimentos até utilizem melhor certos espaços unicamente destinados ao arquivamento de prontuários, uma vez que, pela resolução do CFM, a guarda do prontuário físico também se fazia necessária.
Quanto à documentação física já existente, a recomendação era a de se guardassem os documentos do paciente por no mínimo 20 anos. A partir da vigência da nova lei, os documentos físicos armazenados poderão ser substituídos pelos digitalizados, guardados por 20 anos e destruídos após esse prazo ou entregues ao paciente.
Na Resolução 1821 do CFM, está indicada a guarda permanente para prontuários dos pacientes arquivados eletronicamente em meio óptico, microfilmado ou digitalizado.
O Ministério da Saúde tem criado diretrizes para tornar efetiva a implantação do prontuário eletrônico a fim de que se possa, eletronicamente, realizar o registro das ações de saúde e compartilhar as informações de saúde do paciente do SUS. Além do Decreto nº 8.789, de 29 de junho de 2016, há Portarias criadas com o objetivo de promover a interoperabilidade das informações no sistema.
Ocorre que, para que se possa informatizar o sistema de dados, deverá ser criada uma infraestrutura em todos os locais de atendimento do país. Há lugares em que sequer há computadores disponíveis, tampouco internet. A intenção é positiva, entretanto em um país com dimensão continental e verbas sempre faltando, a prioridade deveria estar na integração de dados, uma vez que dados extraídos do sítio eletrônico do Ministério da Saúde apresentam um estudo do Banco Mundial estimando economia na Saúde de R$ 22 bilhões por ano.
Havia uma previsão, ainda não cumprida, de que até dezembro de 2018 46 mil unidades básicas de saúde estivessem informatizadas. No final de 2017, o antigo governo anunciou um projeto que previa um investimento inicial do Ministério da Saúde de R$ 1,5 bilhão por ano chegando a R$ 3,4 bilhões por ano em 2019. A previsão seria de que fossem fornecidos até 311 mil computadores, 293 mil tablets, 138 mil impressoras e 42 mil multifuncionais.
De outro lado, a recente lei precisa ser regulamentada em vários aspectos. Um deles está na obrigatoriedade de que a Comissão de Revisão de Prontuário analise os prontuários antes do descarte definitivo. Quais as regras de descarte a serem observadas? E quem fiscalizará o trabalho das Comissões?
Não há notícia de que se tenha feito um levantamento junto às Comissões de Revisão de Prontuário existentes, mas seria interessante saber como tem sido na prática a análise de documentos digitalizados nas instituições de saúde. Se houvesse dados reais sobre o trabalho dessas comissões, seria possível afirmar se tal medida está servindo a seu propósito de garantir a integridade dos documentos digitalizados. Nesse momento, a efetividade dessa análise é uma incógnita.
Já estão sendo dados os primeiros passos regulatórios para que o prontuário eletrônico seja uma realidade no sistema público e no privado. Agora, precisamos ver se, na prática, a nova lei será cumprida e se os profissionais de saúde vão se adequar de forma ética às inovações necessárias para a evolução do setor no país.
Fonte: Sandra Franco