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Por Flávia Lo Bello

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), os erros de refração não corrigidos (42%) e a catarata (33%) são, respectivamente, a primeira e a segunda maiores causas de cegueira no mundo, sendo ambas reversíveis. Sendo assim, a refração permanece como a principal porta de entrada do oftalmologista para identificar erros refracionais, avaliar queixas visuais e iniciar o raciocínio clínico. Embora exames avançados — como topografia, tomografia e aberrometria — tenham elevado a precisão diagnóstica, especialistas reforçam que a anamnese detalhada e a refração bem-executada continuam sendo o eixo central da prática diária.

Renato Ambrósio Júnior, professor adjunto do Departamento de Cirurgia Especializada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Neste contexto, o mindset refrativo se apresenta como uma oportunidade para diferenciar o serviço ao oferecer qualidade, segurança e eficiência no tratamento dos pacientes. Os avanços tecnológicos também impactam na qualidade do exame de refração, com destaque para a propedêutica multimodal. Conforme explica o professor adjunto do Departamento de Cirurgia Especializada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Renato Ambrósio Júnior, também professor afiliado da Pós-Graduação em Oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e coordenador de Cirurgia Refrativa da Pós-Graduação da Sociedade Brasileira de Oftalmologia (SBO), a diagnose multimodal começa na própria anamnese, com uma avaliação detalhada da condição visual e refracional do paciente.

Para ele, conhecer o status refracional do paciente é fundamental para embasar o raciocínio clínico. “Entretanto, enquanto a diagnose multimodal requer tecnologia de ponta com Inteligência Artificial (IA) para interpretação clínica de exames avançados, como o estudo biomecânico e a tomografia de córnea, não podemos esquecer o básico que funciona”, observa o oftalmologista, enfatizando que a diagnose multimodal se inicia na anamnese e passa pela refração e o exame clínico básico. “Entender o status refracional do paciente é realmente a base da oftalmologia, consistindo na acuidade visual sem correção, com correção atual, as queixas do paciente, o histórico de correções que ele já teve, sejam clínicas – por óculos ou lentes de contato – ou cirúrgicas”, esclarece o médico.

Ambrósio diz que o raciocínio clínico é essencial para embasar a aplicabilidade dos exames complementares, como a topografia de Plácido, a tomografia de Scheimpflug, Tomografia de Coerência Óptica (OCT) de córnea e segmento anterior, biometria, aberrometria ocular (exame Wavefront) e outras análises. “Por exemplo, podemos notar o impacto do Wavefront para otimizar a refração em pacientes com córneas irregulares, como é o caso de indivíduos portadores de ceratocone”, declara o professor, salientando que a refração é a oportunidade mais eficiente dos oftalmologistas realizarem a reabilitação visual de seus pacientes. De fato, a refratometria deve ter sua relevância reconhecida em todas as áreas da oftalmologia.

O cirurgião explica que o conceito do mindset refrativo, que se refere a uma mentalidade voltada para a evolução e excelência, especialmente no contexto de cirurgias eletivas, deve ser aplicado no intuito de oferecer o melhor possível para qualquer paciente. Para ele, o cerne é aplicar conhecimento para usar tecnologia de ponta com zelo para ajudar o paciente de forma humanizada.  “A cirurgia refrativa é sempre planejada com base na refração, seja a correção visual a laser, implante de lente fácica ou cirurgia refrativa da catarata”, diz, comentando que entre os procedimentos de CVL, há o PRK, LASIK ou extração de lentícula (KLEX), que tem no SMILE o procedimento mais empregado e conhecido mundialmente. “Porém há outras tecnologias mais novas de extração de lentícula, como o CLEAR e o SmartSight. No entanto, o SMILE ainda é a cirurgia mais predominante, com mais de 10 milhões de casos no mundo todo”, informa o cirurgião refrativo-cientista.

José Carlos Tomio Honda, mais conhecido como professor Honda, palestrante e autor de livros sobre óptica, atualmente gerente de Produtos da Optview

Para o técnico em óptica José Carlos Tomio Honda, mais conhecido como professor Honda, palestrante e autor de livros sobre óptica, atualmente gerente de Produtos da Optview, empresa no setor de confecção de lentes de óculos, a refração é a mais antiga arte para auxiliar as pessoas a enxergar. As cirurgias, como a da catarata por exemplo, surgiram logo em seguida, mas em pontos muito localizados, enquanto os óculos foram ganhando o mundo rapidamente. “Até em uma pesquisa, os óculos foram citados como uma das invenções mais importantes da humanidade, pois ‘dobrou’ a vida útil das pessoas”, conta ele, lembrando que, naquela época, quando se chegava à presbiopia, muitas das atividades do artesão não poderiam mais ser executadas e, com isso, havia uma “aposentadoria” precoce – e por falta de um simples óculos de perto! “Hoje o domínio da refração pelos oftalmologistas supera em muito o fato de prescrever e corrigir as ametropias”, diz o especialista.

 

Refração na oftalmopediatria

Milton Ruiz Alves, professor sênior da FMUSP e do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da FMUSP

De acordo com  Milton Ruiz Alves, professor sênior da FMUSP e do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da FMUSP, a visão é parte importante do processo de aprendizagem, uma vez que 80% do aprendizado é adquirido por meio do processamento visual de informações. “Uma visão clara e confortável é fundamental para garantir a capacidade dos alunos de aprender”, aponta o especialista, ressaltando que o acesso ao exame oftalmológico e a prescrição de lentes para a correção dos erros de refração é considerado pela OMS como sendo o melhor tratamento custo-efetivo e de proteção individual e social, uma vez que permite também preservar a visão e prevenir maiores perdas.

Importante ressaltar que 85% das doenças oculares podem ser diagnosticadas e tratadas apenas com a realização de uma consulta oftalmológica completa incorporada na atenção primária e que, além de prevenir a cegueira irreversível pela detecção precoce de alterações oculares, ainda corrige os erros de refração”, afirma o médico, mencionando que a principal causa de baixa visão nas crianças e nos adultos é o erro de refração não corrigido (hipermetropia, miopia e/ou astigmatismo). “A baixa visão é diagnosticada aferindo-se a acuidade visual e o diagnóstico do erro de refração que necessita de correção óptica é realizado pelo exame de refração, que nas crianças, jovens e adultos jovens deve ser feito sob cicloplegia”, revela o cirurgião, que também é professor responsável pelo Programa de Residência Médica em Oftalmologia da FMUSP.

Uma forma adequada de avaliar a necessidade de correção óptica de um erro de refração hipermetrópico aferido sob cicloplegia, segundo o especialista, é estimar a tolerância acomodativa do examinado (calculada pela fórmula: tolerância acomodativa = +4,50D – 0,10D x idade em anos). “Por exemplo, para um escolar de sete anos de idade que sob cicloplegia tem hipermetropia de +3,00D, sem sintomas astenópicos e com tolerância acomodativa de +3,80D, não se deve prescrever correção óptica. Caso a hipermetropia fosse +5,00D (valor superior à sua tolerância acomodativa de +3,80D), então seria prescrita correção óptica de pelo menos +1,50D”, informa. Quanto à miopia, ele diz que a criança ou o jovem que apresentar -1,00D terá o seu alcance visual para longe sem correção limitado em 1 metro; se -2,00D em 50 cm e se -4,00D em 25 cm. “Portanto, para estes indivíduos, deve-se prescrever a correção total da miopia”, destaca.

Alves aponta que atualmente o uso excessivo de telas digitais pelas crianças (smartphones, tablets etc.) está favorecendo o aparecimento e a progressão da miopia já no início da idade escolar.Ele revela que a colocação da criança pré-escolar em atividades ao ar livre (pelo menos 120 minutos diários), a redução do uso de telas (não mais do que 60 minutos diários), a realização de tarefas visuais não muito próximas e nem por tempo prolongado e pelo menos 8h de sono, representam as principais medidas biocomportamentais que retardam o aparecimento e a progressão da miopia. “Os astigmatismos iguais ou superiores a 0,75DC devem ser corrigidos, pois a desfocagem refrativa dos astigmatismos aumenta com valores maiores e interferem no desempenho visual do astigmata não corrigido ou parcialmente corrigido”, acrescenta.

 

Indicação correta das lentes dos óculos

Mariane Paperini, gerente da Área Médica do Laboratório Optview

Segundo Mariane Paperini, gerente da Área Médica do Laboratório Optview, atualmente há uma grande variedade de opções de lentes oftálmicas, que a princípio podem ser divididas, basicamente, em três grupos: lentes convencionais, digitais e free form. “As lentes convencionais são aquelas confeccionadas em geradores convencionais a partir de um bloco específico, que pode ser de visão simples, multifocal, ocupacional ou bifocal, cuja dioptria é produzida a partir da surfaçagem na face interna desses blocos, em conformidade com a curva externa dos blocos (curva base)”, explica a profissional. Ela também esclarece que, no caso das multifocais e ocupacionais, esses blocos já vêm com o desenho pré-determinado na face externa da lente. “Ou seja, já existe um desenho pronto na face externa e o que muda são apenas as curvas base e as adições para as lentes multifocais e ocupacionais”, completa.

Já as lentes digitais, são aquelas produzidas também a partir de um bloco convencional, com desenho pré-determinado na face externa, cuja dioptria também é obtida em conformidade com a curva base do bloco, porém a partir de um gerador free form. “O resultado final é praticamente o mesmo, proporcionando maior qualidade, devido à melhor precisão no processo”, explica Mariane, enfatizando que as lentes com tecnologia free form são fabricadas a partir de um bloco de visão simples, onde todo desenho é construído na face interna da lente, baseado em um software, que pode ser de uma lente multifocal, ocupacional, bifocal ou de visão simples. “As possibilidades de desenhos e de personalização são imensas e o que irá diferenciar uma lente da outra são os desenhos escolhidos, em conformidade com a informação da óptica na hora de fazer o pedido, como a Distância Naso-Pupilar (DNP) de longe e de perto, altura, ângulo pantoscópico, distância ao vértice, curva do aro, prismas, tempo de leitura, distância de leitura, atividade que exerce ao usar a lente etc.”, acrescenta.

 

Habilidades para uma boa refração e novas tecnologias de refração digital

No que diz respeito às habilidades práticas que devem ser dominadas na residência para que o oftalmologista realize uma boa refração, Alves esclarece que os médicos residentes têm hoje a sua disposição nos ambulatórios gerais de oftalmologia vários autorrefratores de mesa e, talvez, não disponham de um só esquiascópio. “A esquiascopia com luz em faixa é, sem dúvida, o melhor método objetivo da refratometria ocular. A realização  do exame de refração apoiada em esquiascopia com luz em faixa e aprimorada com o emprego de testes subjetivos realizados no refrator de Greens não vem sendo adequadamente valorizada pelos médicos residentes”, analisa o oftalmologista.

De acordo com ele, nos dias atuais há uma  tendência de os médicos residentes valorizarem mais os procedimentos que supostamente lhes trarão no futuro um retorno financeiro maior, como por exemplo cirurgia de catarata, cirurgia ceratorrefrativa a laser e/ou procedimentos estéticos no campo da plástica ocular. Na opinião do especialista, o fato de os residentes não investirem mais nos seus próprios consultórios ao final dos três anos de residência deve ter um papel relevante nestas escolhas. “Parece cada vez mais claro para os médicos residentes que os lugares reservados para eles no mercado de trabalho, após o término da residência, estão em clínicas de convênio operadas por investidores. Uma conduta que obrigaria o residente a realizar uma boa refração estaria na proibição do uso do autorrefrator enquanto ele não dominasse a técnica da refração clínica subjetiva apoiada em esquiascopia com luz em faixa”, avalia o oftalmologista.

Ambrósio destaca que, cada vez mais, surgem no mercado autorrefratores e analisadores da frente de onda ocular (aberrômetros) de excelente qualidade. “A aberrometria oferece um plus, porque permite que a gente entenda a qualidade da visão e que tenhamos, quando bem-feita, maior quantidade de dados, mais oportunidade de interpretação e decisões clínicas mais assertivas”, opina.

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WaveLight® Plus, da Alcon, é o primeiro tratamento refrativo personalizado que integra o sistema óptico de cada paciente de forma individualizada.

Cirurgia refrativa personalizada e preditiva

O WaveLight® Plus, da Alcon, é o primeiro tratamento refrativo personalizado que integra o sistema óptico de cada paciente de forma individualizada. A tecnologia utiliza o equipamento de diagnóstico Sightmap, que cria um modelo digital 3D do olho com base na mensuração de centenas de milhares de pontos de dados. A tecnologia ray tracing (rastreamento de raios de luz) simula, testa e otimiza um plano de tratamento personalizado, que é individualizado para cada olho de cada paciente.

Dados globais mostram que essa tecnologia proporciona excelentes resultados em estudos clínicos: mais de 98% dos pacientes míopes ficaram com a visão 20/20 e 89% alcançaram uma visão ainda melhor, classificada como 20/16. “O WaveLight® Plus, na verdade, é uma plataforma integrada de aquisição e análise das medidas multimodais. A base é o Pentacam AXL Wave (Oculus), que integra tomografia de Scheimpflug, biometria por interferometria de coerência parcial e sensor de Hartmann-Schack.

“Com isso, temos um tratamento calculado com base em uma modelagem óptica geométrica. Ao otimizar as interações, podemos realizar o melhor tratamento possível para a visão do paciente, proporcionando mais qualidade e segurança para a cirurgia”, relata o professor da UNIRIO Renato Ambrósio Júnior. Na opinião do especialista, o WaveLight® Plus representa um avanço significativo na cirurgia refrativa personalizada, ampliando a capacidade de personalizar o cuidado para cada olho de cada paciente.

Refração é pouco valorizada no Brasil

Os erros de refração e as perturbações da acomodação (dificuldade de visão de perto após os 40 anos de idade – presbiopia) são as duas condições que mais levam as pessoas a procurar o oftalmologista, sendo que a refratometria ocular é o procedimento de maior demanda, dentre todos, nas consultas oftalmológicas.

Milton Ruiz Alves, professor da FMUSP, afirma que é durante o exame de refração que o oftalmologista tem a oportunidade de prevenir, diagnosticar e tratar enfermidades que poderão colocar em risco a saúde ocular do paciente. “Não há sequer uma única pessoa  que, cedo ou tarde, deixe de requerer algum tipo de correção óptica para melhorar a sua visão e/ou seu conforto visual e tudo começa e termina com a refração, sendo o coroamento final do mais refinado e complexo procedimento terapêutico, quer clínico, quer cirúrgico”, destaca.

Na opinião do médico, os governos não valorizam a refração o suficiente. “Os governantes poderiam poupar milhões de dólares simplesmente investindo em exames oftalmológicos e fornecendo óculos para milhões de pessoas que precisam deles”, revela o especialista, esclarecendo que, em 2008, havia no Brasil cerca de 2.667.023 pessoas com perda visual devido a erro de refração não corrigido. “E a perda estimada que o PIB do Brasil sofre devido aos erros de refração não corrigidos é de 0,18% (cerca de 8,7 bilhões de reais), um cenário que poderia ser revertido se houvesse mais investimento na refração”, conclui.

Lentes de contato – suas indicações e cuidados essenciais

Marcelo Sobrinho, chefe do Departamento de Oftalmologia da PUC Campinas e oftalmologista do Setor de Lentes de Contato e Refração da UNIFESP/EPM

Antes de iniciar qualquer processo de adaptação de lentes de contato (LCs), é importante que o oftalmologista separe o uso das LCs conforme a finalidade da sua utilização, como por exemplo para correção de vícios de refração (miopia, hipermetropia etc.) e por indicações médicas (para doenças como ceratocone etc.).

Marcelo Sobrinho, chefe do Departamento de Oftalmologia da PUC Campinas e oftalmologista do Setor de Lentes de Contato e Refração da UNIFESP/EPM, explica que, durante a etapa da anamnese, o médico deverá perguntar ao paciente sobre as suas expectativas em relação à utilização das lentes: se ele deseja usá-las todos os dias ou se elas serão utilizadas apenas esporadicamente (para atividades esportivas, por exemplo). “Importante pesquisar se o paciente é portador de alguma doença sistêmica e quais as medicações em uso, visto que diversas doenças e medicamentos podem alterar o filme lacrimal e interferir no uso das LCs”, alerta o especialista.

Ele comenta que existem algumas situações que configuram contraindicação ao uso de LCs: doenças ativas da superfície ocular (úlcera de córnea etc.), alterações severas do filme lacrimal, alergias de difícil controle e inflamações oculares recorrentes. Após todos esses passos, o cirurgião informa que é realizado um exame oftalmológico completo, para saber se o paciente está apto à utilização das LCs. “Caso ele esteja apto, passamos ao teste de adaptação das lentes de contato”, pontua. Em relação a quais são as lentes consideradas top de linha hoje no mercado das LCs, o oftalmologista declara que existem muitos produtos excelentes. “Na prática, o médico deverá fazer a escolha de qual a melhor lente para cada caso individualmente, utilizando produtos que respeitem a saúde ocular e proporcionem a melhor acuidade visual possível”, relata o professor.

Quanto às orientações e cuidados essenciais que os oftalmologistas devem passar aos seus pacientes a respeito das lentes de contato, o especialista diz que o médico deve orientar o paciente em relação à higiene e manuseio das LCs, ao período de uso durante o dia e ao tempo correto de substituição das lentes. “Deve-se evitar o contato das LCs com qualquer tipo de água – não nadar, mergulhar, tomar banho ou entrar em banheira usando lentes”, orienta, salientando que também é importante que o paciente seja instruído sobre os cuidados com ambientes muito secos ou com ar-condicionado e locais com poeira. E quando necessário, prescrever colírios lubrificantes que sejam compatíveis com o uso de LCs. “Constituem sinais de alerta: dor ou ardência persistente, vermelhidão ocular, queda súbita de acuidade visual, fotofobia e secreção. Em quaisquer dessas situações, deve-se retirar a lente imediatamente e procurar atendimento médico”, finaliza Sobrinho.

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