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Os simuladores de realidade virtual começaram a fazer parte da rotina dos médicos e residentes brasileiros em meados de 2017. Naquele ano a Latinofarma, divisão oftalmológica do Grupo Cristália, em parceria com o Instituto da Visão (IPEPO – entidade sem fins lucrativos ligada à Universidade Federal de São Paulo) desenvolveu um modelo inédito de treinamento para cirurgias de catarata, retina e vítreo por meio da realidade virtual. 
Hoje, no Dry Lab Latinofarma, localizado em São Paulo, já estão disponíveis cinco simuladores do modelo EyeSi, sendo esse serviço o único a oferecer tal capacitação de forma gratuita para residentes e médicos de todo o país. No Brasil são nove equipamentos desse tipo no total; os outros quatro estão alocados em clínicas e instituições privadas, como na Fundação Altino Ventura, ou até mesmo em universidade pública, como é o caso da Universidade Estadual Paulista (UNESP). 
O simulador EyeSi é produzido pela empresa alemã VRMagic e é distribuído no Brasil pela CIVIAM. Ele permite aos usuários acumular experiência cirúrgica e refinar habilidades específicas essenciais, como a destreza manual e a tomada de decisão. Essas competências podem ser aperfeiçoadas pela prática de uma ampla gama de tarefas cirúrgicas oferecidas pelo simulador.
“O simulador é muito completo, tanto para o treinamento dos movimentos finos, as distâncias entre câmaras, enfim, o simulador é capaz de reproduzir todos esses movimentos de verdade”, diz Daniel Caldeira, um dos Consultores Técnicos do DryLab Latinofarma responsáveis por acompanhar e orientar a prática nos simuladores. Essa equipe de consultores também recebe um treinamento especial para poder auxiliar os alunos e residentes no DryLab Latinofarma. Afinal, lá são realizados de 180 a 200 atendimentos por mês aproximadamente. Desde o início de suas atividades até junho desse ano recebeu cerca de 5800 médicos, advindos de mais de 70 residências espalhadas pelo país. 
 
“Atualmente estamos atuando com a capacidade reduzida por conta da pandemia, mas, a partir do ano que vem queremos oferecer o serviço de forma itinerante, levando o simulador para outras regiões”, informa Fernando Chadi, Coordenador de Produtos do Grupo Cristália. 
Por conseguir reproduzir fielmente todos os aparelhos utilizados na cirurgia de catarata, além de outros procedimentos cirúrgicos de retina, o EyeSi representa inclusive os sons e parâmetros dos aparelhos de um centro cirúrgico real: estão presentes microscópio, pedais, caneta de faco e telas para acompanhamento da cirurgia. Fazendo as vezes do paciente, um modelo de cabeça, que pode ser operado a partir de uma posição temporal ou superior, com olho repleto de sensores dá o toque final. Os estudantes veem o campo cirúrgico intraocular através das lentes do microscópio de operação, com visão em estéreo e profundidade de campo realista. O foco e o zoom podem ser alterados utilizando o pedal do microscópio e os instrumentos manuais são inseridos nas incisões no olho modelo.
É um ambiente de simulação totalmente imersivo para o treinamento de etapas cirúrgicas críticas, sejam interações complexas entre instrumentos, tecidos discretos e estruturas intraoculares, tudo em tempo real. Os módulos de treinamento cirúrgico incluem ainda capsulorrexe, hidrodissecção, irrigação/aspiração e inserção LIO (lente intraocular). O Eyesi permite, claro, o treino de habilidades básicas como manipulação de microscópio, giro adequado na incisão e compreensão dos limites espaciais.
Ao final de cada tarefa de treinamento, o simulador apresenta ao usuário um relatório detalhado de desempenho. Vários parâmetros relacionados com instrumentos e manipulação de microscópios, eficiência cirúrgica e tratamento de tecidos são registrados no sistema. Seu software apresenta diferentes graus de dificuldade, o que permite aos residentes praticar cirurgias de catarata e de retina em níveis adequados ao ano de residência correspondente: das técnicas cirúrgicas mais básicas às mais avançadas.
Na prática, o treinamento tem como objetivo, basicamente, promover o aperfeiçoamento das cirurgias oftalmológicas. Em médio prazo, também visa contribuir com a redução do número de complicações em cirurgias de catarata, retina e vítreo. Além disso, permite a capacitação de médicos já formados e experientes, garantindo uma educação médica continuada com tecnologia de ponta. 
Antigamente os alunos treinavam somente nos chamados “Wet Lab”, utilizando olhos de porco que são os que mais se aproximam do olho humano, no entanto, ainda não são tão realistas. “E no simulador você não tem limite de recursos”, lembra Chadi. A tecnologia já é tão presente na rotina médica – e faz parte da geração que já nasceu e cresceu em ambientes digitais e está acostumada com videogames – que atualmente é praticamente impossível imaginar que um residente opere pela primeira vez direto em um paciente (e não via simulação). 
Da teoria a prática 
De acordo com Luciene Barbosa de Sousa, Coordenadora de Ensino do Hospital Oftalmológico de Brasília do Grupo OPTY, “O ideal é que o uso do simulador fosse uma prática contínua, mas não temos simuladores à disposição de cada um dos serviços do país para que os residentes possam treinar quando sentem necessidade. Os aparelhos ainda são caros, mas é uma coisa que não temos como voltar atrás”.
 
Um estudo realizado pelo Royal College of Ophthalmologists publicado pelo British Journal of Ophthalmology em 2019 demonstra o impacto do treinamento de realidade virtual (usando o EyeSi) nas taxas de complicações da cirurgia de catarata quando realizada por residentes do primeiro e do segundo ano. O estudo contou com a participação de 265 residentes e que realizaram 17.831 operações de catarata. 38,8% destas operações foram realizadas antes do treinamento com o simulador, 48,5% após o acesso a um EyeSi e 12,7% por cirurgiões sem nenhum contato com a realidade virtual. A conclusão é que houve uma redução de 38% nas taxas de complicações devido a introdução do treinamento com o simulador EyeSi desde 2009, um benefício significativo e ainda maior para os pacientes submetidos à cirurgia de catarata.
No DryLab Latinofarma o treinamento completo possui 16 horas, divididas em dias diferentes e que podem ser personalizadas para cada aluno. O espaço conta ainda com acomodações, como num hotel, para receber os visitantes de outros estados. 
Para Juliane Rodrigues, natural de Rondônia e atualmente residente médica de Oftalmologia (R2) no Complexo Hospital Padre Bento de Guarulhos, estar treinando há 4 meses no DryLab Latinofarma “faz toda a diferença”. Sua turma de residência, composta por seis alunos, se reveza semanalmente para completar o curso. Atualmente Juliane está no último módulo (C), que consiste em realizar quebra e colocação de lente. “Todos os passos a gente faz aqui no simulador; começamos com coisas mais simples para aprender o manuseio dos materiais dentro do olho. Depois avançamos em cada passo da cirurgia de catarata: quebra do núcleo, aspiração e assim por diante, até conseguir fazer todos os passos”. 
“Você aprende a manusear, você tem a estereopsia e, principalmente, aprende a usar sua mão esquerda , completa Juliane. “Então, quando você entra em um olho de verdade você já sabe exatamente o que vai fazer com aquela mão. O movimento é o mesmo e, apesar de textura ser diferente, os movimentos são iguais, então você tem a memória do movimento e já sabe o que fazer”, diz. 
Segundo Juliane, sem o simulador ela e sua turma teriam que seguir aprendendo apenas usando o microscópio, fazendo ponto, ou no “Wet Lab” com os olhos de porco. “Ter o simulador para repetir inúmeras vezes permite que sejamos capazes de treinar incansavelmente até conseguir fazer o movimento”. “Nas primeiras vezes em que viemos todos voltaram com os olhos brilhando. Hoje mesmo, o aluno que entraria depois de mim não pode vir. Não tive dúvidas: acabei ficando direto, das 8h às 12h treinando. Foi muito bom”.  
Bruna Ventura, Coordenadora do Curso de Especialização da Fundação Altino Ventura, também uma entusiasta do uso dos simuladores no ensino. “Nosso simulador chegou em junho de 2019 já com a intenção de incluir essa prática ao ensino dos nossos R1. Temos os módulos de retina e catarata e hoje cada residente passa pelo simulador pelo menos uma vez por mês. Atualmente somos cerca de 60 alunos (residentes) e 20 fellows que também têm o simulador à disposição para treinamento. De lá até aqui, 91 alunos se formaram usando o nosso simulador”. 
“Quanto mais você opera, mais destreza você tem. Aqui em Recife ficamos dois meses e meio sem eletivas no ano passado, por conta da pandemia. O que notamos é que em 2020 apesar de termos diminuído pela metade o número de cirurgias comparado ao ano anterior, o número de complicações não aumentou, mesmo com esse gap no ensino. A gente entende que o papel do simulador foi determinante para isso”, comenta Bruna. Ela lembra ainda que os preceptores da instituição até comentam quanto a diferença de iniciar uma cirurgia com um residente que já usou o simulador em comparação com aqueles que ainda não usam.  
“Aqui temos muitas cirurgias de emergência, mas quando isso acontece, os residentes perdem a cirurgia. A gente aprende muito observando, mas quando fazemos existe uma grande diferença. O uso do simulador antecipa esse aprendizado, digamos, e já capacita esse cirurgião”, conclui Marcelo Ventura Filho, Fellow do primeiro ano de retina cirúrgica e Vice-Presidente da Diretoria Executiva da Fundação Altino Ventura.
Para Ana Luisa Höfling-Lima, Professora Titular de Oftalmologia da Escola Paulista de Medicina (UNIFESP), o simulador cirúrgico é o maior avanço em treinamento cirúrgico para a oftalmologia na história: “Ele é muito importante, principalmente para as cirurgias de catarata e retina e vítreo, porque, quando utilizado de forma correta, é a melhor forma de diminuir os riscos de complicações nos passos de uma cirurgia que já é altamente delicada. Quando o médico começa a ser treinado, ele precisa desenvolver a habilidade manual juntamente com a habilidade de uso do microscópio. O stress em fazer isso num paciente real é completamente diferente, portanto, o que o simulador faz é padronizar a utilização dos instrumentais cirúrgicos junto com o microscópio para que, numa cirurgia in vivo, o médico já tenha todas essas habilidades desenvolvidas e passe a ter apenas um fator a mais de stress que é o fato de ter realmente ali um olho e uma pessoa para ele executar a cirurgia”, explica Ana Luisa. 
Complementarmente, Ventura comenta sobre o simulador ser uma ponte muito importante entre os passos do treinamento, respeitando as curvas de aprendizado e de capacidade técnica de cada uma das fases. “Com o simulador você é capaz de expandir os seus limites, entender se é possível aperfeiçoar um movimento, saber se você ir com instrumento um pouco mais para a periferia para rodar a catarata melhor, por exemplo”, diz. “Se você tem dificuldade na capsulorrexis, você pode treinar diversas vezes no simulador. Eu tive uma cirurgia em que a rexis iniciou com o flap em sentido anti-horário. Acabou complicando, então depois fui para o simulador para treinar esse passo em específico”, destaca Ventura. 
“Às vezes o Wet Lab depende muito da qualidade dos materiais e dos olhos (de boi, porco) recebidos. Essa variabilidade não se aplica ao Dry Lab, que é algo virtual e permite criar cenários diferentes, treinar etapas específicas. Mas são treinamentos complementares, porque também há coisas que são melhores de serem treinadas no Wet Lab”, adiciona Guilherme Havir Bufarah, Representante dos Residentes de Oftalmologia da Escola Paulista de Medicina (UNIFESP) e atualmente aluno do terceiro ano da residência (R3) da Instituição. Lá a carga completa é de cerca de 10 horas e é priorizado para os alunos do primeiro ano (R1), que, em rodízio, se valem do Dry Lab Latinofarma. “Usei em 2019, quando era R1, mas, com certeza, se tiver oportunidade, mesmo que por menos tempo, eu gostaria de seguir treinando. Até mesmo porque depois que você começa a operar, você passa a ver as coisas com outros olhos. As posições, como as mãos flutuando, por exemplo, (o uso do simulador) é importante para refinar alguns passos sim”, diz Bufarah. 
Literatura médica
Um estudo realizado por Marina Roizenblatt, médica oftalmologista especialista em retina cirúrgica, com doutorado pela Universidade Federal de São Paulo e fellow pela Johns Hopkins University – e que acaba de ser publicado pela Retina, The Journal of Retinal and Vitreous Diseases, avaliou, com o auxílio do EyeSi em cirugia simulada de retina, diferentes intervenções com fellows e cirurgiões seniores avaliando cinco fatores: intervenção de cafeína; propranolol (betabloqueador usado para tratar tremores); privação do sono; ingestão de bebida alcóolica controlada por bafômetro e exercício físico de membros superiores. Nesse estudo, uma das conclusões é que, dentre esses cinco fatores, o que mais interfere na performance cirúrgica é a ingestão de álcool, que, como os demais, teve dose ajustada por peso do cirurgião. “É importante dizer que nada disso poderia ser feito e avaliado num centro cirúrgico real, daí a relevância do simulador também para a pesquisa científica”, destaca Roizenblatt. “Depois que publicamos o estudo, várias outras instituições internacionais nos procuraram, até para avaliar até a questão da ergonomia com o uso do simulador”.
Para o futuro, Ana Luisa reforça que tudo depende do desenvolvimento de simuladores para as outras especialidades, mas que um dos avanços é que o reconhecimento quanto a importância do simulador já existe. “O simulador também pode fornecer dados de qualidade dos treinamentos. Então o futuro também pode estar aí, nessa oportunidade de avaliação. Além disso, claro, é importante que tenhamos tantos simuladores quanto possível, uma vez que, felizmente já conseguimos também sensibilizar a indústria para oferecer esses serviços em parceria com a academia”, completa. 

Fonte: Revista Universo Visual

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