Um ano de ajustes, adaptações, reinvenções, autoconhecimento… 2020 está sendo um ano atípico em todos os sentidos. Na área médica, alguns profissionais passaram a dar consulta online e laboratórios intensificaram os atendimentos na casa dos pacientes, professores e alunos trocaram a convivência diária na sala de aula por vídeo-aulas, e o colo aconchegante dos avós precisou ser substituído por beijos e abraços à distância. Tudo isso tem em comum um aliado, o mundo digital.
No mercado de trabalho, a pandemia do coronavírus acelerou a implantação de tendências previstas para acontecer daqui a cinco ou dez anos. E a digitalização foi a principal delas, conforme apontam os entrevistados para esta matéria. E não poderia ser diferente. As empresas tiveram poucos dias para se adaptar à nova realidade e promover um ambiente de trabalho virtual para seus profissionais. Da mesma forma, ganhou força o marketing digital. Quem ainda não investia nisso precisou correr para entrar no mundo digital e falar com seu público por meio dele.
Segundo Fernando Barra, autor do livro “Meu Emprego Sumiu!”, o mercado de trabalho já vinha em grande transformação mesmo antes da pandemia. “Passamos por duas grandes revoluções durante a história da humanidade que impactaram a forma como trabalhamos. A primeira foi a agrícola, quando o homem sofreu uma crise pela tecnologia da época (o fogo) e precisou aprender a plantar já que não era mais possível caçar e colher. O mesmo ocorreu na revolução industrial, quando as grandes máquinas forçaram a humanidade a trocar seu trabalho de artesão para operador fabril e surgiram aí os empregos. Agora chegamos à revolução digital e novamente a tecnologia provoca o homem a repensar sua forma de trabalho”, aponta.
Em tempos de coronavírus, o trabalho remoto, visto até então com ressalvas por boa parte das companhias, se tornou essencial para atravessar este momento e deve permanecer pós-pandemia, até porquê traz redução de custos. Um levantamento feito com 705 profissionais no Brasil pela Fundação Dom Cabral (FDC) em parceria com a Grant Thornton mostra que 54% deles irão pedir à chefia para continuar trabalhando remotamente após a pandemia. Cerca de 40% dos entrevistados apontam que a produtividade em casa é similar àquela que apresentavam no escritório.
“Com o trabalho remoto, poderemos ter colaboradores do interior do país, morando em suas cidades natais e atuando remotamente numa multinacional como a Stefanini, atendendo clientes de qualquer parte do Brasil e do mundo. Com isso, cresce a habilidade de autogestão dos colaboradores, que também já era uma tendência e se potencializa mais”, diz Rodrigo Pádua, vice-presidente global de gente e cultura do Grupo Stefanini.
Ele ressalta que o digital first deixa de ser tendência para ser o único caminho possível. “Muitas ações permaneciam presenciais e físicas como treinamentos e reuniões, pois havia uma incerteza sobre a efetividade do digital. Há dois meses estamos experimentando ações que nos surpreendem e nos impulsionam em termos de aprendizado e resultados”, comenta. Outro ponto abordado por Pádua é o das viagens corporativas, que serão reduzidas já que a pandemia mostrou que se pode viajar menos e continuar fazendo bons negócios.
A intensificação de compras virtuais e de serviços online é outra tendência que foi antecipada. “A tomada de decisão com base em dados e na informação, como o analytics, por exemplo, tem sido essencial no cenário atual para entender toda essa dinâmica. O consumidor está se conectando com a marca além da experiência, ele se conecta também com o propósito, e as empresas que estão colocando isso em prática vão gerar mais engajamento através do acolhimento e da comunicação que se torna ainda mais importante para o relacionamento com o consumidor”, ressalta Marcelo Biasoli, diretor de estratégia de negócios e marketing da Seguros Sura no Brasil.
Octavio Alves Jr., executivo, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e podcaster (LideraCast), lembra que o contato com clientes e fornecedores, que antes era olho no olho, também foi para o virtual, mudando a maneira das empresas se relacionarem com as partes interessadas. Outro ponto é o de acordos de reuniões de acionistas. “Empresas que têm ações listadas na Bolsa têm de fazer, a cada trimestre, acordo de acionistas. Foi preciso alterar a lei para permitir reuniões virtuais de acionistas”, explica.
De acordo com ele, outra questão que foi explicitada se refere à fraqueza de muitas cadeias de fornecimento. “Nos últimos anos, a globalização fez com que muitas empresas buscassem cadeias de fornecimento globais e o motor de manufatura acabou indo para a Ásia, para a China. Com a pandemia, em questão de dias companhias de muitos segmentos tiveram de parar por falta de componentes e materiais semiacabados que vinham da China. Isso mostrou a fragilidade das cadeias de valor e terá de ser repensado”, comenta.
Gestão remota
Nos últimos meses, as salas de treinamento físicas deram lugar às salas virtuais, os intervalos para o café ainda existem, mas agora, em vez de acontecer nos corredores do hotel ou na sala ao lado da de reunião, acontecem na cozinha de casa. Além disso, as reuniões com a equipe muitas vezes são interrompidas pelo filho dizendo que quer lanchar ou o cachorro que pede atenção. Ou seja, é uma nova realidade. Hoje, cursos e treinamentos são ministrados online e os líderes têm de lidar com a gestão remota e a comunicação virtual. E as empresas tiveram de se adaptar a este momento.
Na Stefanini, por exemplo, o Microsoft Teams é parte do cotidiano e está sendo utilizada pelos 25 mil colaboradores em 41 países. “A ferramenta contribuiu para nos aproximar ainda mais dos nossos colaboradores, por meio de reuniões constantes de comunicação, comemoração e celebração , comenta Pádua. “Entramos, literalmente, nas casas de todos os nossos colaboradores, o que trouxe um enorme calor humano, pois a maioria gosta de apresentar suas casas, filhos, animais de estimação. Quebrou a imagem de líderes e liderados, e criou a conexão de que todos estão juntos numa mesma jornada”, diz o executivo.
Uma questão que foi enfatizada na pandemia, e sobre a qual já se falava, é a importância da questão emocional no trabalho. O futurologista britânico Ian Pearson, por exemplo, já há algum tempo declara em entrevistas que a crescente automação levará as empresas a priorizarem a inteligência emocional e a capacidade de relacionamento.
De fato, o aumento da digitalização levará os empregadores a focarem nas habilidades emocionais, as chamadas soft skills, processo acelerado com a pandemia. “Os líderes estão tendo de lidar com questões emocionais muito mais fortes neste momento. Uma combinação de preocupação com a saúde física e emocional das suas equipes e, ao mesmo tempo, manter o foco nas entregas de resultados do presente e trabalhar na construção do futuro”, comenta o vice-presidente do Grupo Stefanini. O executivo afirma que a empresa lançou, recentemente, o projeto Farol, em que o time de recursos humanos está aberto e treinado para dar apoio e suporte individual aos colaboradores neste momento de isolamento social e aumento da ansiedade.
Biasoli, da Seguros Sura, afirma que é fundamental que as pessoas estejam abertas à mudança e para isso precisam olhar para dentro e investir no autoconhecimento. “Elas têm de ser ágeis emocionalmente também para se conectar com o novo mundo que veio para ficar”.
Alves Jr. ressalta que, quando este momento passar, o principal desafio para os líderes é que precisarão manter o nível do rendimento presencial também no virtual. “O digital é muito mais desafiador porque não permite, por exemplo, ler a linguagem corporal da pessoa que está falando e há uma maior dificuldade para se construir empatia e estabelecer laços de confiança. O líder terá de se reinventar e desenvolver essa competência para manter o índice de performance”, acredita.
O que vem por aí?
Como ficará a economia pós-pandemia? Como ficarão as relações de consumo quando tudo isso acabar? Como serão as relações de trabalho? E as consultas e interações entre médicos e pacientes? São algumas das perguntas que nos fazemos.
Um ponto é a crise econômica. Os governos sairão altamente endividados desta pandemia porque neste momento as decisões de despesa estão desconsiderando endividamento. “Todos estão voltados para o drama da saúde pública. As empresas também sairão profundamente arranhadas com a desvalorização do real. Todo mundo, de alguma maneira, sairá empobrecido. Governos, empresas e pessoas precisarão buscar desesperadamente competitividade”, diz Alves Jr..
Além disso, ele comenta que dificilmente as pessoas irão se recolocar no mercado de trabalho com carteira assinada. “Não sei se para o bem ou para o mal, mas cada um será o CEO da sua empresa. E nesse sentido os profissionais precisarão desenvolver competências que eles não têm”, completa.
A forma de consumir também será alterada. “A consciência em relação ao padrão de consumo será muito diferenciada e essa mudança irá gerar um desafio adicional para as empresas. Talvez o que se vendia muito antes, no pós já não gere tanto interesse”, comenta o professor da FGV. Alves Jr. diz também que o turismo, de agora em diante, deve ser mais local e as pessoas priorizarão ir para o campo, para lugares sem muita gente. “A tendência é das pessoas ficarem mais entocadas”, diz.
Para Biasoli, agora, mais do que nunca, comunicação, inovação e criatividade devem ganhar a atenção das companhias. “Além disso, as empresas tendem a utilizar mais o conceito effectuation, uma filosofia e método para o empreendedorismo e a inovação, que é fazer o que precisa ser feito com os recursos disponíveis, sem meta e visão de médio e longo prazo, mas sim a implantação das ações e a correção das rotas numa visão de curto prazo apenas com os recursos disponíveis”, revela.
Uma coisa é certa, o mundo será muito mais digital. E a conexão não será só externa. “Essa pandemia está oferecendo a oportunidade de nos conectarmos com o que é realmente importante. Vivíamos uma abundância de consumo antes da pandemia e, de repente, tivemos uma restrição grande de acesso a produtos e serviços. Ficando em casa fomos obrigados a entrar em contato com a gente mesmo”, conclui Alves Jr..
Dicas para o futuro
Fernando Barra, autor do livro “Meu Emprego Sumiu!”, dá dicas para o profissional de destacar no mercado futuro:
– Identifique quais são suas habilidades e atividades que gosta de fazer, estude e as aperfeiçoe cada vez mais;
– Mesmo não sendo da área de tecnologia, estude quais ferramentas tecnológicas podem te auxiliar a exercer sua profissão e a quais formatos precisa se adaptar;
– Entenda que trabalho significa ajudar pessoas. Por isso analise quais grupos podem se beneficiar das suas habilidades, quais problemas consegue resolver e para quem. A partir dessa descoberta, utilize a tecnologia encontrada no passo anterior para divulgar seu trabalho e exercê-lo da melhor forma possível.
“Seguindo esses três passos talvez você não tenha emprego por muito tempo, mas certamente terá trabalho para o resto da vida , finaliza Barra.
Fonte: Revista Universo Visual