Por Izabela Godinho – Oftalmologista especialista em Córnea e Lentes de Contato
Certa vez, por indicação de um colega, recebi uma paciente para adaptação de lentes de contato. Era portadora de ceratocone, transplantada em OE e presença de anel intra-estromal em OD. Ao chama-lá para o atendimento notei que estava tensa, ansiosa e cheia de esperanças. Após o meu abraço de boas-vindas começamos a nossa consulta. Com as mãos trêmulas e suadas ela, aos poucos, me relatava sua saga em busca da melhor qualidade de visão. Havia passado por 5 médicos especialistas em Lentes de Contato antes de estar ali, ou seja, foram 5 tentativas de lentes de contato sendo 4 delas as “infalíveis” esclerais.
Como de costume a tratei com muito carinho e naquele dia começamos uma história (é assim que eu me refiro à relação médico/paciente que estabeleço com os meus). Pacientemente fizemos algumas trocas de lentes corneanas até que, finalmente, chegamos a uma lente fisiológica, confortável e que lhe garantiu a melhor acuidade visual! Emocionada ela me abraçou forte em sinal de profundo agradecimento, como se ali acabasse o meu papel. Eu, ponderadamente, expliquei que o sucesso da adaptação não pode ser resumido apenas por um único dia de uso da lente. Esse sucesso está na continuidade do uso, no conforto da lente e na melhor visão, e que para mim, tudo isso significava, no sentido mais amplo, o verdadeiro Ato Médico.
“Adaptar lentes de contato exige enxergar o seu paciente como um todo”, sempre me dizia meu pai, o saudoso e sábio mestre Cleber Godinho! Hoje bem percebo o quão perspicaz foi o seu comentário. Abrir o coração e sentir as expectativas dos pacientes, ter sabedoria para indicar a melhor lente e entregar o melhor resultado visual é o resumo da grande satisfação imediata, porém o verdadeiro sucesso está na continuidade da adaptação, ou seja, o uso tolerável! Portanto, para tal sucesso devemos carinhosamente ouvir o nosso paciente, atentamente escutar suas queixas e cuidadosamente investigar de onde elas vêm.
A intolerância à lente de contato pode ser gerada por um passado de alergia ocular, às vezes pelas noites mal dormidas, tantas vezes pelo uso indiscriminado de ansiolíticos, em alguns casos pelas questões hormonais, em tantos outros casos pelo uso excessivo de computador, ar condicionado e ventiladores. Intolerância à lente de contato pode ser atribuída ao motociclista que gosta de andar sem viseira, ao fazendeiro que gosta de cavalgar na poeira, à infelicidade que alguns trazem pela vida pessoal, aos traumas antigos, à eterna insatisfação e não aceitação da doença, às angústias e várias outras causas. Essas situações pessoais e, por vezes, pontuais podem conferir uma infindável infelicidade e não podem ser sufocadas pelo uso de lentes esclerais, elas lentes, por vezes, não abordam a verdadeira queixa e em detrimento à solução estamos proporcionando um remédio.
Façamos, meus colegas, da arte de adaptar lentes de contato um verdadeiro ato médico! Não devemos nos basear apenas no poder das leis e resoluções, mas sim no seu sentido mais romântico e profundo. Vamos dar, portanto, assistência aos nossos pacientes, vamos nos responsabilizar pelo ato de adaptar um corpo estranho nos olhos pacientes, vamos ouvir e, principalmente, valorizar as queixas e, assim, tentar resolvê-las entrando um pouco na vida de cada paciente, entendendo a rotina e os anseios de cada indivíduo que nos procura com coração cheio de dúvidas e a certeza de que busca a melhor qualidade de visão. Busquem, meus caros, sempre aquela lente que dê respeito a fisiologia e orientem o paciente aos bons hábitos. Senão, num futuro muito próximo, se já não estamos vivendo isso, teremos oftalmologistas que usam indiscriminadamente e excessivamente as lentes confortáveis lentes esclerais, e teremos os oftalmologistas como prescritos compulsórios de colírios lubrificantes porque são incapazes de orientar o paciente que a lágrima dele é melhor e mais efetiva do que qualquer lubrificante do mercado e que para tanto deveria piscar mais.
Fonte: Universo Visual