Um marco histórico na oftalmologia e na medicina regenerativa acaba de ser registrado: pela primeira vez, uma córnea bioimpressa em 3D com células humanas devolveu a visão a uma paciente legalmente cega. O procedimento foi realizado no Rambam Medical Center, em Haifa (Israel), em parceria com a Precise Bio, empresa que desenvolveu o implante PB-001, uma córnea funcional produzida em laboratório a partir de bioimpressão.
Diferentemente do transplante convencional, que depende de tecido de doadores, o implante é resultado de uma plataforma de biofabricação capaz de expandir células corneanas em larga escala. A partir de uma única córnea doadora é possível gerar centenas de enxertos, o que pode alterar profundamente o cenário de escassez global de tecido corneano.
Cegueira corneana e escassez de tecido: por que a inovação é urgente
A cegueira por opacidade corneana permanece uma causa importante de deficiência visual no mundo, com estimativas que apontam para mais de 1 milhão de novos casos de cegueira corneana por ano, concentrados principalmente em países de baixa e média renda.
Apesar do avanço das técnicas de ceratoplastia lamelar e penetrante, a oferta de córneas doadoras está muito aquém da demanda. Relatórios recentes sugerem que, em alguns cenários, há apenas uma córnea disponível para cada 70 pacientes que necessitam de transplante, e mais da metade da população mundial não tem acesso efetivo à cirurgia por falta de infraestrutura de bancos de olhos e de políticas de doação estruturadas.
Além disso, parte das córneas captadas é descartada por contraindicações médicas ou critérios rigorosos de triagem, o que agrava o descompasso entre necessidade e disponibilidade de tecido. Nesse contexto, soluções que independam totalmente – ou reduzam drasticamente – a dependência de doadores tornam-se especialmente relevantes.
Da bancada ao paciente: como funciona a córnea bioimpressa PB-001
A tecnologia utilizada pela Precise Bio é baseada em bioimpressão 3D camada a camada, combinando:
- Células humanas da córnea, expandidas em cultura a partir de uma córnea doadora saudável;
- Biotintas (bio-inks) especializadas, que fornecem suporte mecânico e bioquímico para a construção de um tecido transparente e funcional;
- Plataforma de bioimpressão de alta resolução, capaz de organizar células em estruturas tridimensionais que mimetizam a arquitetura corneana.
O conceito se apoia em avanços iniciados ainda em 2018, quando pesquisadores da Universidade de Newcastle (Reino Unido) demonstraram pela primeira vez uma estrutura de córnea humanizada impressa em 3D, utilizando um gel de alginato e colágeno capaz de manter células-tronco viáveis durante o processo de impressão.
No caso do PB-001, o resultado é um implante totalmente celular, transparente e em formato de “botão corneano”, desenhado para substituir o tecido opacificado de maneira semelhante a uma ceratoplastia penetrante ou lamelar profunda, mas utilizando um tecido biofabricado em vez de uma córnea íntegra de banco de olhos.
Um dos pontos mais chamativos relatados pela empresa e pelos cirurgiões é a capacidade de expandir uma única córnea doadora em cerca de 300 implantes bioimpressos, multiplicando de forma exponencial o impacto de cada doação.
Primeiro transplante em humano: caso do Rambam Eye Institute
O primeiro procedimento clínico com o PB-001 foi realizado em uma paciente na faixa dos 70 anos, legalmente cega em decorrência de doença corneana avançada. A cirurgia integrou um estudo de fase 1, com foco em segurança, clareza do implante e recuperação funcional inicial.
De acordo com os comunicados oficiais da empresa e do hospital:
- O implante foi posicionado como um enxerto corneano, em procedimento conduzido por cirurgiões de córnea experientes, utilizando princípios já consolidados nas ceratoplastias;
- A paciente apresentou melhora funcional da visão nas semanas subsequentes, recuperando a capacidade de perceber detalhes e contornos antes ausentes;
- O procedimento é o primeiro de uma série planejada de 10 a 15 pacientes em um estudo de fase 1, com resultados mais robustos previstos para 2026.
Ainda que os dados publicados até o momento sejam preliminares e baseados em um único caso, a combinação de transparência do tecido, integração ao hospedeiro e ganho funcional de visão posiciona o PB-001 como um candidato promissor em um cenário de severa escassez de córneas.
Impressão 3D e ampliação de acesso em países com poucos doadores
A possibilidade de produção padronizada, escalável e previsível é um dos maiores diferenciais dessa tecnologia em comparação ao modelo tradicional de bancos de olhos.
Córnea impressa em 3D devolve v…
Em vez de depender da logística de captação, transporte e armazenamento de córneas inteiras, a bioimpressão permite:
- Expandir o tecido de um único doador em centenas de implantes, potencialmente reduzindo listas de espera;
- Produzir enxertos sob condições controladas de laboratório, com menor variabilidade entre lotes;
- Deslocar parte do desafio do “doador ideal” para o desenvolvimento de protocolos de cultura celular e bioengenharia.
Em regiões sem infraestrutura de bancos de olhos – como diversos países da Ásia, África e América Latina, onde a cegueira corneana é mais prevalente – modelos de produção local ou regional de córneas bioimpressas podem, no futuro, diminuir a dependência de importação de tecido e ampliar o acesso à cirurgia para populações hoje desassistidas.
Além da córnea: plataforma para outros tecidos biofabricados
A plataforma de biofabricação utilizada para o PB-001 não é restrita à córnea. De acordo com a Precise Bio, a mesma tecnologia está sendo adaptada para, no futuro, gerar outros tecidos e enxertos, incluindo estruturas cardíacas, células hepáticas e renais, entre outros.
Embora esses projetos ainda estejam em estágios pré-clínicos ou iniciais, o conceito de tecidos fabricados sob demanda a partir de células humanas tem potencial para impactar não apenas a oftalmologia, mas também áreas como cardiologia, nefrologia e hepatologia, especialmente em cenários de escassez de órgãos e contraindicações para transplantes convencionais.
O que muda na prática para o oftalmologista?
Para o especialista em córnea e segmento anterior, a bioimpressão de córnea abre uma nova frente de possibilidades, mas também levanta questões práticas e éticas que precisarão ser discutidas à medida que os resultados clínicos amadurecerem:
- Indicações e seleção de pacientes
Inicialmente, o foco provável serão casos de opacidade corneana grave com baixa perspectiva de sucesso em transplantes convencionais ou em regiões com forte limitação de doadores. - Integração com técnicas atuais
A cirurgia tende a seguir princípios já conhecidos da ceratoplastia penetrante ou lamelar, o que facilita a curva de adoção. No entanto, será fundamental avaliar como o tecido bioimpresso se comporta em termos de cicatrização, astigmatismo induzido, estabilidade refrativa e risco de rejeição em comparação às córneas doadoras tradicionais. - Imunogenicidade e rejeição
A natureza celular do implante sugere um perfil imunológico potencialmente diferente dos enxertos convencionais, o que poderá demandar esquemas específicos de imunossupressão ou monitorização. Estudos de fase 2 e 3 serão essenciais para esclarecer esse ponto. - Custos, regulação e incorporação tecnológica
Questões de custo-efetividade, regulamentação sanitária e modelos de reembolso (público e privado) serão determinantes para que a tecnologia deixe de ser uma prova de conceito e se torne uma opção disponível na rotina. Avaliações econômicas precisarão comparar o custo da bioimpressão com o custo de programas de captação e manutenção de bancos de olhos.
Para a comunidade de oftalmologistas, acompanhar os desdobramentos do estudo de fase 1 e dos trials subsequentes com o PB-001 significa antecipar tendências e se preparar para orientar pacientes que certamente chegarão ao consultório com expectativas em relação à “córnea impressa em 3D”.
Referências
- Burton MJ, et al. The Lancet Global Health Commission on Global Eye Health: vision beyond 2020. Lancet Glob Health. 2021.
- Rafat M, et al. Bioengineered corneal tissue for minimally invasive vision restoration in advanced keratoconus. Nat Biotechnol. 2023.
- Anitha V; Kate A, et al. Corneal blindness and eye banking: current status and challenges. Ann Natl Acad Med Sci. 2024;60(4):215–223.
- Dorado-Cortez O, et al. The burden of medical contraindications to corneal donation: Time for review. PLOS Glob Public Health. 2024;4(12):e0003537.
- Newcastle University. First 3D printing of corneas. Press release, 2018.
- Precise Bio, Inc. World’s first 3D-bio-printed corneal implant successfully implanted in phase 1 patient (PB-001). Releases em 2025.
- Rambam Health Care Campus / JPost. Israeli woman’s vision restored in world’s first 3D-printed cornea implant, 2025.
- Reuters Health; New Atlas. Reports on first 3D-printed cornea restoring sight and scalability de 300 implantes por doador, 2025.



