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A semelhança do enigma da esfinge “Qual o animal que tem quatro patas pela manhã, duas patas a tarde e três patas a noite?” para a qual a resposta errada condenava à morte por devoramento; o enigma do glaucoma, “porque as pessoas continuam ficando cegas pelo glaucoma?”, a resposta errada leva milhões de pessoas em todo o mundo à cegueira.

O glaucoma afeta quase 70 milhões de pessoas em todo o mundo e é a segunda causa de cegueira irreversível. Sendo uma doença de evolução lenta e dada a enormidade de recursos disponíveis, muitos pesquisadores consideram um enigma como tantos pacientes ficam cegos.

No congresso mundial de glaucoma em 2021 o Prof. Louis R Pasquale, MD, do School of Medicine at Mount Sinai NY, concluiu a sua palestra presidencial afirmando que infelizmente na maioria das vezes não sabemos o que está causando a progressão da doença. O Hospital Johns Hopkins em 2018 refere que cerca de 15% dos pacientes tratados com glaucoma ficarão cegos de pelo menos um olho. Isto é confirmado por vários estudos, inclusive um realizado na clínica Mayo em 2014 no qual 15% dos pacientes tratados de glaucoma ficaram cegos em média em sete anos de seguimento. Provavelmente esta taxa é maior no Brasil, mas não dispomos de dados. Para se ter melhor ideia da magnitude deste risco, as chances de um paciente ficar cego de glaucoma é a mesma de uma pessoa morrer praticando a “roleta russa” com uma arma com uma única bala cujo tambor tem sete lugares. A Glaucoma Foundation, em um comunicado (2017) refere que infelizmente, não é possível estimar as chances de manter a visão de uma pessoa depois de ter sido diagnosticada com glaucoma. Robert Fechner Professor e Chairman da Glaucoma University Syracuse, em Nova Iorque, escreve: “uma das maiores lacunas na compreensão do glaucoma é que realmente não sabemos o que está acontecendo em termos de pressão intraocular durante o dia.” Em outras palavras, desconhece-se as características da mais importante causa do aparecimento e progressão da doença, e a única que pode ser modificada com tratamento.

Provavelmente por estes motivos desde 2001, aproximadamente 15% dos pacientes com glaucoma tratados continuam evoluindo para a cegueira em um período de 7 a 15 anos1-3 a despeito de terem sido disponibilizado uma enorme quantidade de recursos e tempo para as pesquisas. Lamentavelmente, a política de incentivar as pesquisas como forma de ascensão na carreira universitária ou mesmo para diferenciar médicos pesquisadores de não pesquisadores, criando a percepção errada que os primeiros são melhores que os segundos, levou a uma proliferação de artigos que não beneficiam os pacientes. Paul Glasziou and Lain Chalmers em editorial na revista British Medical Journal em 2018 afirmam que “A maioria dos estudos clínicos não ajudam os pacientes, mais de 80% são um desperdício”. Estes estudos tiram o foco do que é importante o médico saber sobre o glaucoma e desperdiçam recursos e o tempo do leitor.

Recentemente (abril 2023) fiz a seguinte pergunta para alguns dos maiores especialistas em glaucoma: quais foram os maiores avanços que impactaram favoravelmente a evolução do glaucoma nestes últimos 20 anos (2000-2020)?

Respostas

Pradeep Ramulu – Johns Hopkins Hospital

  1. OCT na detecção e seguimento do glaucoma.
  2. Técnicas cirúrgicas mais seguras – incluindo alguns MIGS.
  3. Detecção remota (incluindo algoritmos de IA para identificar doenças).

Kuldev Sing – Universidade de Stanford

Os avanços na cirurgia de catarata levaram à extração precoce do cristalino em olhos com glaucoma, com ou sem cirurgia adjuvante de glaucoma.

David Friedmann – Universidade de Harvard

  1. A cirurgia de catarata é um bom tratamento de primeira linha para glaucoma de ângulo fechado e diminuirá a cegueira nesta modalidade de glaucoma.
  2. A evolução da OCT permite a detecção precoce e o monitoramento de suspeitos e pacientes com glaucoma.

Jeffrey Liebmann – Universidade Columbia Nova York

  1. Software para gestão e interpretação de dados (PIO, avaliação estrutural e funcional).
  2. Interesse renovado na inovação cirúrgica (“MIGS”, e cirurgias fistulizantes).

Ivan Goldberg – Universidade de Sydney-Austrália

  1. Refinamento de análises estruturais de parâmetros RNFL/disco com OCT.
  2. Avanços com aumento de opções de intervenção cirúrgica. Com isso, não me refiro à miscelânea de procedimentos MIGS, mas especificamente aos refinamentos sofisticados das técnicas de trabeculectomia e dos dispositivos de drenagem de glaucoma, tornando esses dois grupos de intervenções cirúrgicas mais seguros e eficazes.

Com o intuito de otimizar o diagnóstico do glaucoma, implantamos em 2004 o programa conhecido como os Cinco Rs, que foi uma forma de padronizar a sequência propedêutica de análise do nervo óptico e especificar os sinais típicos da neuropatia óptica glaucomatosa. Este programa é considerado até hoje um dos melhores programas de diagnóstico do glaucoma. Também a introdução do OCT foi um grande marco no auxílio ao diagnóstico e detecção de progressão no glaucoma. As alterações evolutivas no OCT têm relevância clínica direta, muitas vezes precedendo a perda funcional, o que oferece a possibilidade de iniciar ou intensificar o tratamento em uma fase mais precoce da doença. Porém, estes avanços não resultaram em redução significativa da taxa de cegueira, talvez em parte pelo treino insuficiente de oftalmologistas, cujo número aumenta anualmente.4,5

Remo Susanna Jr.Professor da Faculdade de Medicina da USPEx. presidente da Associação Mundial de Glaucoma, Panamericana de Glaucoma, Brasileira de Glaucoma e presidente e fundador da sociedade Latino Americana de Glaucoma Fernanda N. SusannaMédica residente do segundo ano do departamento de Oftalmologia da Faculdade de Medicina da USP, médica visitante dos serviços de oftalmologia do John Hopkins Hospital, Baltimore; Hospital Moorfieds e Imperial College de Londres; University Havard Boston e Columbia University, Nova York (dois meses em cada instituição)

Remo Susanna Jr.

Também, as cirurgias tradicionais estão sendo constantemente aperfeiçoadas, com técnicas mais seguras para a trabeculectomia e implantes de tubos longos mais flexíveis menos espessos e com tubos mais finos, diminuindo a possibilidade de extrusão, toque endotelial e cristaliniano como o de Susanna UF, o primeiro a ser lançado com estas características, e, posteriormente, o de Paul. Entretanto, estudos mais robustos são necessários para demonstrar a importância dos MIGS no controle da perda de visão pelo glaucoma.

A melhor compreensão dos fatores de risco e sua importância para progressão permitem que o médico atue preventivamente. O pico pressórico é o parâmetro mais importante na progressão da doença, porém ele ocorre fora do horário do consultório em 70% das vezes. Desta forma, muitos pacientes progridem com pressões oculares aparentemente bem controladas (nas medidas de consultório), levando ao desconhecimento da causa da progressão nestes pacientes como mencionado pelo Prof. Louis R Pasquale. Um dos melhores métodos para estimar o pico é a prova de sobrecarga hídrica: “Entre todos os métodos, a prova de sobrecarga hídrica é o teste mais barato, viável e fácil comparado a outros para estimar o pico da PIO na prática clínica.” (M.Reza Razeghinejad, Wills Eye Institute Filadélfia, EUA.) Este teste, já aprovado para uso na Inglaterra pelo National Health Service (NHS), consiste em o paciente ingerir 800 ml de água em 5 minutos e a pressão ocular é medida em 15, 30 e 45 minutos após a ingestão, sendo o pico o valor mais alto destas medidas, correlacionando-se fortemente com o pico que ocorre durante o dia. Existem inúmeros estudos e vários editoriais em revistas internacionais importantes, que estão de acordo com esta afirmação. Outra opção seria a curva tensional diária, porém ela detecta com menos frequência os picos pressóricos e consome 8 horas para sua realização.Assim, a estimativa do pico pressórico e da pressão alvo do paciente para estabelecer o risco de progressão do glaucoma, permite modificar o tratamento antes que a progressão ocorra, e não depois. O custo de se esperar a progressão da doença para se ajustar o tratamento é muito alto pois a progressão no campo visual é consequência da perda de centenas de milhares de células nervosas e quanto mais danificado estiver o nervo, menor será a PIO necessária para reduzir a progressão e maior será o risco de cegueira. É importante notar que um campo visual estável não indica necessariamente doença estável ou garante a eficácia do tratamento atual. Para se afirmar isso, é crucial manter se o pico de pressão intraocular inalterado em relação ao valor do mesmo durante a fase de estabilidade da doença e não somente as pressões medidas no consultório.

FERNANDA N. SUSANNA

Enquanto a solução do enigma da esfinge é simples, cuja resposta é o homem que engatinha quando bebê (nascer do dia), usa duas pernas na vida adulta, e bengala na velhice (final do dia), o enigma do glaucoma é mais complexo. Fazem parte desta resposta:A falta do diagnóstico, do tratamento precoce, do melhor controle da pressão ocular, estimando-se o pico pressórico e modificando o tratamento antes que a progressão ocorra. A necessidade do aumento da adesão ao tratamento através de processos educativos, utilização de drogas mais eficientes e de baixo custo, a utilização de tratamentos que não dependam do paciente para sua aplicação e a indicação da cirurgia apropriada no tempo certo.As palavras do Prof. Ivan Goldberg da Universidade de Sydney, continuam válidas em 2024: “É trágico que o glaucoma seja a maior causa de cegueira irreversível no mundo, sabendo-se que grande parte desta tragédia poderia ser evitada com o diagnóstico e tratamento correto.”                                                                                                     

Referências bibliográficas

  1. Kwon YH, Kim CS, Zimmerman MB, Alward WL, Hayreh SS. Rate of visual field loss and long-term visual outcome in primary open-angle glaucoma. Am J Ophthalmol. 2001;132(1):47-56.
  2. Chen PP. Blindness in patients with treated open-angle glaucoma. Ophthalmology. 2003;110(4):726-33.
  3. Malihi M, Moura Filho ER, Hodge DO, Sit AJ. Long-term trends in glaucoma-related blindness in Olmsted County, Minnesota. Ophthalmology. 2014;121(1):134-41.

4.Vessani RM, Moritz R, Batiz L, Susanna R Jr. J. Glaucoma 2009;18:253-261.

  1. Reus J. et al. Ophthalmology. 2010;117:717-23.

Este conteúdo é oferecido pela Sociedade Brasileira de Glaucoma.

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