O oftalmologista Paulo Schor entrevistou, no dia 22 de novembro de 2021, no Programa RX – Por dentro da sua próxima receita médica!, o pediatra, virologista e pesquisador Otávio Cintra, que na USP de Ribeirão Preto (FMRP) foi assistente, investigador principal e professor de pediatria, possuindo hoje larga experiencia na indústria farmacêutica com foco em doenças infeciosas, vacinas e saúde pública.
Na GSK (GlaxoSmithKline), Cintra começou como Medical Affairs and Safety Manager, depois foi para Director Scientific Affairs and Public Policies, posteriormente para Clinical R&D and Medical Affairs Director, depois para Head of Scientific Affairs and Public Health, e atualmente é o Diretor Médico de Vacinas da GSK Brasil. Abaixo, publicamos a entrevista completa com o pesquisador.
Paulo Schor – Hoje eu vou conversar com um amigo de longa data, que é o Otávio Cintra, meu colega de várias rotações na USP de Ribeirão Preto e que foi o primeiro aluno da classe durante muito tempo. Ele, que sempre se interessou por pesquisa, começou sua carreira em pediatria e virologia. Tavinho, muito obrigado pela sua participação no podcast, conta um pouco dessa sua paixão pela pesquisa epidemiológica.
Otávio Cintra: Olha, eu amo pesquisa, isso é a vida prática da epidemiologia. A epidemiologia se faz com uma boa teoria do que a gente precisa, mas quando temos uma nova doença é ir ao campo, é investigar, é ver o que precisa fazer. A partir disso, é que vamos criar os testes diagnósticos, isto é, saber qual é melhor, qual é pior, qual tem maior sensibilidade e especificidade, valor preditivo positivo e negativo, como aconteceu, por exemplo, durante essa pandemia da Covid-19.
Na realidade, o que nós vivenciamos agora, nessa pandemia do novo coronavírus, foi o inverso. Houve um excesso de informação e não falta de informação, que levou, muitas vezes, a certas dificuldades em ter uma colaboração maior das pessoas para questões que precisavam ser feitas. Nós, cientistas, pesquisadores, precisamos, realmente, ter um pouco mais de alinhamento de como passar essas informações na velocidade de hoje. As ferramentas que temos atualmente são sensacionais, peguemos como exemplo o próprio SARS-CoV-2; assim que ele foi identificado, em pouquíssimo tempo já tinha todo o sequenciamento genético dele, já se sabia qual era a região da proteína Spike, ou seja, isso nunca aconteceu antes. Acredito que devemos ter tudo isso a nosso favor, mas também não colocar muita bagunça na informação, senão as pessoas se confundem.
Schor: Isso é uma coisa muito legal e a gente tende a repetir que quando temos uma base boa de fisiopatologia, e no seu caso, de epidemiologia, a gente navega muito fácil pelos outros campos todos. Temos no Brasil um histórico de epidemiologia muito forte vindo do SUS (Sistema Único de Saúde). Eu queria depois comentar isso, mas queria primeiro que você falasse um pouco da sua predileção pelos vírus, porque não existia super pesquisa em vírus naquela época e você foi um desbravador na área. Qual era a limitação na época e por que a virologia te atraiu?
Cintra: Para mim era algo que você lia, via, falava de vírus respiratório sincicial, Influenza etc. O vírus está em todo lugar e é preciso demonstrar isso. E não era tão fácil, acho que tivemos muita sorte de algumas pessoas começarem a fazer pesquisa com os vírus respiratórios lá em Ribeirão Preto. Aí começamos a detectar esses vírus e realmente chegamos a um perfil epidemiológico. Foi isso que me interessou muito nos vírus, o fato de mostrar que eles existiam e que eram agentes causadores de doenças tanto quanto as infecções bacterianas, que a gente tinha tanto medo.
Também porque eu sempre fui uma pessoa que achava um absurdo ficar dando antibiótico desnecessariamente e queria ter uma ferramenta a mais. A gente pegava, por exemplo, uma criança com uma bronquiolite, precisando de oxigênio etc., e se eu falo assim “olha tem o vírus sincicial aqui e eu tenho uma avaliação clínica que me mostra que o potencial de ter uma infecção, uma coinfecção é muito baixa , então, eu vou realmente fazer o que tem que ser feito, tratar com oxigênio, hidratação, porque não temos nenhum tratamento hoje; é a mesma coisa que a gente está vivendo com a Covid-19, não temos nenhum tratamento por enquanto, talvez surja algum em breve.
Dessa forma, acredito que precisávamos abrir uma porta e de fato nós abrimos, porque hoje temos inúmeras pessoas fazendo virologia de ponta no Brasil e, com isso, abrimos a porta para começar a ter vigilância epidemiológica, como temos, por exemplo, a vigilância do vírus Influenza, que no Brasil é muito boa. Nós monitoramos, sabemos a circulação, qual é realmente os subtipos que estão circulando. Abrindo essa porta, a vigilância chega e aí se começa a documentar e, de repente, se começa a detectar novos agentes. Então, foi isso o que de fato me motivou e hoje virou rotina, qualquer hospital hoje pega uma criança e já faz teste rápido para sincicial, para Influenza etc. Não existe mais essa questão de não fazer essa pesquisa etiológica.
Schor: E aí você ficou no começo em pediatria em Ribeirão Preto fazendo pesquisa, mas alguma coisa te apaixonou para você ir para o mundo corporativo. Quer falar um pouco de como foi essa mudança e por que você foi para o corporativo? A gente sempre acha que a pessoa vai por esse caminho para poder executar, inovar, foi isso mesmo?
Cintra: Tem três questões aí. Primeiro eu comecei a trabalhar muito próximo com o corporativo, seja como pesquisador de clinical trials, como speaker e consultor, e comecei realmente a ver que tinha algo ali muito legal, voltado para inovação, para divulgação de conhecimento, já pensando em educação e em melhorar o acesso. A gente sempre fala em criar a melhor intervenção terapêutica ou preventiva do mundo, mas se ela não chegar no paciente, não vai adiantar de nada, e isso passa por uma série de questões diferentes, como educação médica, acesso etc. Essa foi a primeira coisa que me atraiu.
A segunda questão é que eu achei que eu poderia contribuir mais, principalmente pensando em vacinas e em acesso, porque estaria num lugar onde eu trabalharia com as pessoas que podem, eventualmente, participar de um processo decisório, com informações de qualidade adequadas e, de fato, eu tive muita sorte, porque, desde que entrei, várias vacinas foram incorporadas no Programa Nacional de Imunizações (PNI) e participamos muito ativamente disso.
E o terceiro aspecto é o que você falou, é a minha paixão pela inovação. Quem atua em medicina não pode ficar estagnado, sempre tem que estar questionando e verificando qual é a melhor maneira de fazer as coisas, quer dizer, até hoje eu me pergunto, por exemplo, se chegará o momento em que saberemos qual é o indivíduo que terá maior propensão para uma doença, como que poderemos intervir antes, isto é, essa história da farmacogenética, da epigenética, acho que é esse o caminho para onde vamos. São essas três coisas que me apaixonam dentro do mundo corporativo e se não fosse a faculdade de Ribeirão, se não fosse essa paixão pela pesquisa e pelas vacinas, eu não teria me movido a isso.
Schor: Parabéns, Otávio, por ter chegado aí, não é sorte, é muito trabalho e competência. Você vai muito para o lado da prevenção, vacinas, é o que você faz da vida. E fico me perguntando, e imagino que a comunidade também, quanto tem que se investir em vacina, quanto tem que se investir em antivirais? Como é o racional disso?
Cintra: Excelente pergunta. Eu acho que cada doença vai ter uma resposta, não acredito que a vacina irá resolver tudo, como estamos vendo agora com a vacina da Covid-19, da Influenza; existem falhas vacinais, pessoas que não respondem, variantes, situações diferentes. Por isso que temos que ter sempre o antiviral, não podemos investir só em um ou só em outro, é preciso investir nos dois, porque os dois são importantes. Pega por exemplo a herpes, não temos uma vacina para ela, pode ser que tenhamos no futuro, mas o aciclovir mudou completamente a história dessa doença, aprendemos até a lidar com ele de uma forma diferente, usando mais precocemente e até, em determinados momentos, utilizando em longo prazo como terapia de remissão em pacientes imunossuprimidos.
Portanto, não dá para dizer que só uma coisa é suficiente, precisamos ter a vacina, precisamos ter o antiviral e, talvez, pensar mais para frente em imunomoduladores, que, na verdade, será uma associação um pouco dos dois. Pega, por exemplo, doenças crônicas, como a hepatite B. Temos uma vacina excelente contra hepatite B só que às vezes ela falha, há inúmeras pessoas infectadas com essa doença crônica, sofrendo com um tratamento que realmente não é 100%, mas melhora muito a qualidade de vida delas.
E aí, de repente, temos uma intervenção adicional, que seria uma vacina terapêutica, por assim dizer, que pode ser uma solução. Dessa maneira, acredito que isso é hoje o que precisamos, ter a prevenção da doença ou evitar que ela reapareça ou reative, como é o caso da herpes zoster, e mais para frente podemos pensar em intervenções imunoterapêuticas, que possam associar ao tratamento uma imunomodulação e uma outra intervenção, que seria uma vacina terapêutica.
Schor: Otávio, em relação às vacinas, estamos sendo bombardeados por plataformas de RNA, plataformas que o Butantan já fazia, vacinas de vírus inativado. Existe um caminho mais promissor para que isso aconteça? Porque se a plataforma de RNA funciona, muitas pessoas falam que se conseguiria fazer várias outras coisas em cima dessa plataforma. Quanto de verdade existe nisso?
Cintra: Na verdade, essas plataformas não são novas, a tecnologia anda muito rápido, mas essas coisas já começaram faz tempo. O que eu acho que foi realmente o grande salto, e nós vimos isso, foi a biologia molecular. E daí para frente, começamos a evoluir numa velocidade muito grande, mas esse ponto foi um divisor de águas. No entanto, não dá para dizer que uma plataforma tecnológica é a melhor de todas, é que cada uma vai endereçar uma coisa específica.
Pode ser que as plataformas de RNA mensageiro sejam uma boa solução para infecções virais, mas talvez não sejam para infecções bacterianas, por exemplo. Pode ser que seja boa para termos realmente uma plataforma para criar vacinas rapidamente, como aconteceu agora com o SARS-CoV-2, porque pegamos o código genético, fazemos a sequência que queremos, colocamos no envelope e isso daí já vira a vacina, e a gente vê que realmente ela funciona bem. Assim, para doenças emergentes talvez seja uma solução sensacional, não vamos precisar sofrer tanto quanto sofremos nas pandemias anteriores, mas ainda tem a imunossenescência, que é o envelhecimento do sistema imunológico.
Dessa forma, acredito que vamos precisar de tudo um pouco, até das velhas tecnologias, como o nosso querido toxoide/ tetânico, que é um sucesso até hoje e que foi criado nos anos 1930. O que temos hoje é muito mais capacidade de criar coisas novas com uma qualidade química muito boa, de pureza, e temos realmente condições de enxergar mais horizontes, com novas tecnologias disponíveis, mas não significa que iremos abandonar as antigas, porque elas estão aí e funcionam muito bem.
Schor: Perfeito. Agora conta um pouco da Bélgica, existe um movimento, do qual você faz parte, de trazer para cá interações acadêmicas com as empresas, inovação e alguma facilitação, por exemplo, através do marco legal de ciência, tecnologia e inovação. Há agências investindo bastante em grupos que estão mais organizados, empresas que fazem aportes para fazer centros de pesquisa para o desenvolvimento, mas é um movimento bastante incipiente. Mas o que a gente vê na Bélgica, e é uma coisa que me deixa angustiado, é que como eles não têm esse agribusiness que nós temos, eles precisam investir em valor agregado. Como é essa história da Biotec na Bélgica, que é tida como berço interplanetário da biotecnologia?
Cintra: Olha, é você ficar 100% do seu dia focado em inovação, é comer, dormir, respirar pensando em inovação, não tem outro meio. E aí você vai gerando um contingente de pessoas que estão a fim de fazer isso, essa é a primeira questão. O segundo aspecto importante é a parceria; se você tem uma ideia que seja realmente boa, vai precisar de investimento. Então, tem feiras gigantes, onde todo mundo vai lá com sua ideia e vai vender a ideia e, claro, tem os que vendem e tem os que não vendem. É aquela história que todo mundo fala, que o fracasso é uma tentativa que não deu certo, mas é isso que a pessoa precisa fazer, tem que tentar. E quando atingimos um patamar, vamos buscar melhores parceiros e é aí que entra a biotecnologia, a indústria farmacêutica e também as agências de fomento. Dessa maneira, temos que estar respirando isso todo dia.
Tem um curso de mestrado lá em vacinologia, que é feito pela União Europeia, e eles passam dentro de empresas também. É impressionante esse pessoal do curso, eles estão voando o tempo inteiro e é isso o que nós precisamos, estimular cada vez mais e mudar esse mindset. E depois criar todos os marcos legais e fazer acontecer, não é sentar em cima da sua inovação e dizer: “Ah, eu descobri uma coisa, eu tenho uma patente , não é assim que funciona. Você tem a patente, ótimo, isso é superimportante, mas depois precisa fazer isso virar alguma coisa, porque senão você fica só como o dono de uma patente. Para mim esse é o resumo, temos que mudar tudo, mudar o jeito que a gente ensina, fazer as pessoas pensarem mais. O pensamento inovador tem que fazer parte da nossa vida.
Schor: Sensacional. Acho que para fechar a gente podia talvez falar um pouco de como é que você vê o corporativo no Brasil trabalhando no desenvolvimento de drogas e de vacinas e alavancando essa parte de educação e de desenvolvimento. A gente, em geral, reclama muito e fala assim, “ah, se você quiser fazer alguma coisa com o corporativo, vai para Nova York, vai para algum lugar onde as pessoas tenham mais autonomia . E você vem aqui com uma posição super importante, como você vê o papel do corporativo?
Cintra: Bom, eu acho que o corporativo tem que realmente trazer a inovação para mais perto. A gente precisa de parcerias desde a fase pré-clínica, na parte de descoberta e também na parte clínica. Precisamos realmente ter uma boa abertura, bons mecanismos, e acredito que presaríamos ter marcos regulatórios mais claros, para que pudéssemos ter mais oportunidades de parcerias. Falando especificamente do Brasil, eu acho que o Brasil é de fato um país que tem essa veia, essa vertente.
Apesar de muitas coisas demorarem um pouco mais, eu colocaria o Brasil numa posição de certo destaque em relação a isso, e acho que o corporativo traz muitas transferências de tecnologia, por exemplo, que existem não só pra vacinas, mas para medicamentos, com inovações chegando cada vez mais rápido ao país e a pesquisa clínica avançando. Acredito, portanto, que o ambiente vem sendo favorecido cada vez mais, mas ainda dá para melhorar e, melhorando, vai vir mais coisa ainda. Parceria é o caminho, ninguém vai conseguir trazer nenhuma inovação se não trabalhar junto.
Schor: Otávio, muito obrigado, eu acho que a conversa foi bastante suave e muito informativa. Você falou coisas que certamente irão ajudar muita gente que está navegando nesse universo da inovação e de biotecnologia. Acredito que a gente tem muitas décadas de investimento em pesquisa básica no Brasil e formou inúmeros cientistas de ponta, muito competentes.
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