Foi ao ar no dia 13 de dezembro de 2021 a entrevista do Podcast RX – Por dentro da sua próxima receita médica! com o sócio fundador da Ophthalmos Rohto, Acácio Alves de Souza Lima, presidente da Academia de Ciências Farmacêuticas do Brasil. Graduado em Farmácia e Bioquímica pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP), Souza chefiou o Setor de Farmacologia Ocular do Departamento de Oftalmologia da UNIFESP-EPM no período de 1999 a 2013.
Nesta entrevista, Paulo Schor leva os ouvintes a refletirem sobre a importância dos oftalmologistas realizarem tratamentos individuais, considerando medicamentos desenvolvidos para cada paciente especificamente. “O Acácio é um farmacêutico que tem uma experiência fantástica e uma veia nata de inovador e empreendedor. Ele é hoje o presidente da Academia de Ciências Farmacêuticas do Brasil, um cargo extremamente prestigioso”, ressaltou Schor. Abaixo, publicamos o episódio completo da conversa com o fundador da Ophthalmos Rohto, que compartilhou, ainda, sua visão sobre os avanços da farmacologia no Brasil, dadas as evoluções já alcançadas pelos Estados Unidos.
Paulo Schor: Hoje eu vou ter a honra de conversar com um grande amigo de longa data. O Acácio fundou a Ophthalmos Rohto, extremamente conhecida para quem é da área oftalmológica, mas para quem não é, ele vai contar o que é a empresa. Ele passou um tempo grande na Allergan, uma grande multinacional que tinha também uma proeminência quase única no mercado oftalmológico nacional. Acácio, eu te agradeço muito pelo tempo aqui concedido e pela gentileza, que é a sua marca registrada.
Acácio Alves de Souza Lima Filho: Obrigado Paulo, é um prazer estar aqui com você, tenho certeza que será uma conversa muito interessante.
Schor: Eu acho que a gente pode começar falando um pouco do que chamou a sua atenção para a área de oftalmologia.
Souza: Paulo, eu era um jovem do interior, meu pai era dentista e eu gostava muito de ler e tinha inúmeras curiosidades. Eu olhava para o céu e ficava imaginando “por que não cai? Como pode uma coisa não ter fim? Como é que o universo pode ser infinito?”. Dessa forma, havia uma curiosidade natural pela química, pela biologia, pela vida em si. Naquela época, década 1960/1966, as opções de trabalho no interior eram muito restritas. E meu pai falava “vai fazer odontologia, fica com meu consultório , aquela conversa clássica. Eu prestei vestibular, entrei na USP, na faculdade de farmácia e odontologia. E assim que conheci o curso de farmácia, pensei “puxa, tem tudo o que eu gosto; botânica, fisiologia, química”.
Falei com meu pai e desisti do curso de odontologia. Prestei vestibular novamente e fui fazer farmácia e bioquímica. E peguei a época da revolução, invasão do CRUSP (Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo), cenas inesquecíveis da minha vida, mas enfim, gostei muito das aulas e ainda tinha a possibilidade de fazer o curso noturno, e depois fui convidado a entrar para a Allergan, que estava iniciando no Brasil. Eles tinham adquirido o laboratório oftalmológico Kerato, especializado em oftalmologia e eu fui o primeiro farmacêutico.
Eu não tinha nem começado ainda a trabalhar e estava nos Estados Unidos vendo a diferença abissal que havia entre a fabricação de medicamentos no Brasil e a nos Estados Unidos, com todos os conceitos de boas práticas. E foi lá que eu aprendi a fabricar produtos oftalmológicos e fomos introduzindo a empresa no Brasil e montando a parte industrial, controle de qualidade etc. E quando eles tiraram as pomadas oftálmicas de linha, que até hoje a Allergan não fabrica no Brasil, resolvi montar uma farmácia para manipular a pomada oftálmica. E foi assim que começou a Ophthalmos. Era uma farmácia para manipular produtos que a indústria não estava mais entregando. Acredito que eu estava no lugar certo na hora certa, e o meu contato com a universidade, com você, com o doutor Rubens, foi fantástico, uma parte da aventura da minha vida.
Daí a farmácia foi evoluindo, sempre fazendo o que o médico precisava e não o que a empresa precisava. Fomos colaborando com teses, uma aula aqui e outra ali, e ficamos no Departamento onde estamos até hoje como colaborador. Esse é o resumo de como comecei. A Ophthalmos criou alguns produtos que foram uma grande inovação naquela época; a própria farmácia era uma inovação, porque ninguém falava em prescrever produto oftalmológico. Dessa forma, a farmácia foi se estabelecendo e preparamos praticamente o primeiro viscoelástico do mundo, substituindo o ácido hialurônico por metilcelulose e experimentamos no Departamento de Oftalmologia da Escola Paulista de Medicina, que foi a origem de toda a empresa.
Foi um produto inovador, de custo mais baixo, com boa qualidade e rapidamente o mercado assimilou essa inovação, em uma época em que a vida profissional era menos controlada. Tínhamos liberdade de criação, uma coisa que hoje está muito engessada. Hoje temos muita regulamentação do que é permitido ou não, do que está proibido, o que acaba inibindo muito a nossa criatividade. Assim, criamos esse primeiro viscoelástico, experimentamos na escola e foi um sucesso, e até hoje é um produto líder de mercado nessa faixa de preço. A partir desse produto, resolvi criar uma indústria farmacêutica, a Ophthalmos, e a farmácia com o tempo trocou de nome para Eye Pharma.
Hoje somos parceiros da indústria japonesa Rohto, uma empresa fantástica, com grande laboratório de pesquisa em células. Eles têm uma linha dermatológica muito grande, além da linha oftalmológica, e adoram estudar apoptose. É uma empresa especializada também em oftalmologia, de venda livre, e essa experiência é fantástica. No Japão, podemos combinar os fármacos de síntese com os fármacos naturais, os fitoterápicos, de acordo com os manuais técnicos, no qual temos as concentrações habituais e onde, sabidamente, não existe risco, e podemos combinar como quiser. Isso é muito interessante, ter essa liberdade criativa enorme.
Schor: Acácio, você tem uma empresa que fez e faz um sucesso com foco no cliente e na necessidade dele. Você acha que teria espaço para o oftalmologista se tornar um pouquinho mais dermatologista? Para ele fazer prescrições, aprender a formular, a manipular, e daí fazer com que cada paciente seja um pouco diferente do outro. Tem necessidade e espaço para isso?
Souza: Paulo, o medicamento certo para o paciente certo na hora certa, esse é o ideal, você ter a sua disposição aquele medicamento para aquele paciente, isso daí era o que se fazia antigamente. A farmácia magistral é isso, o cliente mandou a prescrição que tem as concentrações do produto que ele deseja e a farmácia prepara para o paciente aquele produto. Isso acontecia há mais de um século, as farmácias trabalhavam assim, daí veio a indústria farmacêutica e modificou tudo; vieram as drogas de síntese e a indústria começou a preparar o que ela tinha interesse em produzir para a média da população, não para aquele paciente específico.
O mundo mudou, a síntese evoluiu, vieram os biológicos, as vacinas, os anticorpos monoclonais e, de repente, temos nos Estados Unidos uma impressora 3D em uma indústria farmacêutica, produzindo o medicamento certo para o paciente certo e na hora certa. Quer dizer, o ciclo da farmácia voltou com alta tecnologia, o que é muito interessante. Isso já está funcionando nos Estados Unidos e vai muito bem. O médico manda direto para a indústria a prescrição e a indústria manda para o paciente, é altamente inovador.
Schor: Só para pegar um gancho, a ideia até da distribuição personalizada em relação à quantidade de medicamentos, que nós não temos no Brasil, mas que tem nos Estados Unidos, fazer uma dispensação, por exemplo, o paciente precisa de três comprimidos e ele recebe três comprimidos, vai muito nesse sentido do que você está falando, da retomada da autonomia de cada paciente. É pegar o que tinha de bom antigamente e retomar agora com as práticas interessante que temos no momento, correto?
Souza: Exatamente Paulo, as indústrias vão se fundindo e formando grandes conglomerados e elas precisam estar sempre inovando para continuar tendo as suas ações na bolsa valorizando. Dessa maneira, a indústria cuida do macromercado, do mercado de populações ricas e grandes, que é onde tem condições de desenvolver, crescer e ter o reconhecimento financeiro que ela merece. A indústria faz coisas realmente muito boas, mas cada vez que ela cresce mais, aumenta também o espaço da empresa pequena, com foco mais restrito; oftalmologia é 5% do mercado farmacêutico mais ou menos e a manipulação deve ser um milésimo disso.
Mas isso é muito interessante para a satisfação profissional, nós estamos sempre aprendendo, sempre inovando, a gente não fica durante 20 anos fabricando o mesmo produto, produzindo a mesma fórmula. O Philip Rosenfeld, por exemplo, fez o exercício puro da farmacologia, ele tinha o Avastin®, que não era uma droga indicada para oftalmologia, mas sim para câncer de cólon, se não me engano, e ele, que era especialista em retina e conhecedor da fisiologia da degeneração macular, resolveu usar um produto inibidor de VEGF e foi um sucesso.
E como ele fez isso? ele simplesmente usou o conhecimento farmacológico e uma droga que classificamos como off label, que não foi desenvolvida para aquela finalidade; ela foi então testada, experimentada e obteve muito sucesso. Eu sempre brinco que o primeiro médico que tratou uma úlcera de córnea por Acanthamoeba usou Baquacil®, que era um herbicida para piscina, porque não havia nada no mercado disponível. Então, é muito prazeroso para quem gosta de farmacologia, para quem gosta de liberdade criativa, sabe? Esse é o cérebro funcionando e é fundamental para evolução e inovação.
Schor: É o nosso esporte né, Acácio, a gente gosta disso, esse é o nosso hobby. Mas conta um pouco dessa história do Japão, eu entendi que lá, se você tiver substâncias que não têm notadamente o poder de dar algum problema quando misturadas, cujas doses já estão estabelecidas, você vai e usa. É um pouco do raciocínio de que aqui não podemos fazer nada que não seja legislado. Como funciona isso do Japão versus Brasil nesse sentido de o que você pode usar lá e o que você pode usar aqui?
Souza: Lá se usam descongestionantes, anti-inflamatórios e fitoterápicos. Por exemplo, você tem os de síntese e tem os naturais, e sabidamente a gente conhece as concentrações ideais, elas estão descritas na literatura, nos livros, nas pesquisas clínicas. Qual é o risco de misturar, por exemplo, uma nafazolina, que é um descongestionante clássico, com a calêndula? A atividade da calêndula está descrita dentro dos fitoterápicos. Existem até algumas plantas que a Anvisa aceita, suas concentrações usuais, mas no Japão eles podem misturar isso e conseguir fazer um produto muito rapidamente. Aqui é mais difícil, mesmo com alguns medicamentos clássicos da oftalmologia, como por exemplo atropina 1% e fenilefrina 10%, descritos em todos os livros de farmacologia ocular.
Por que você precisa ter um registro e tentar durante anos fabricar um produto que está descrito na literatura? Se você tiver um laboratório com certificação de boas práticas, teoricamente poderia fabricar isso com um simples relatório. Não é um excesso regulatório, a regulamentação vai ficando cada vez mais fina. A Anvisa fez um trabalho muito bonito e ainda faz, e nós vamos também aprendendo a acompanhar a evolução regulatória, porque as indústrias e as empresas não conseguem acompanhar no mesmo ritmo em que a regulamentação é criada. As novidades regulatórias aparecem diariamente, a empresa tem que ir correndo atrás e tentando se adaptar. Com isso, muita empresa fecha, sai do mercado e, ao mesmo tempo, aparecem outras mais bem equipadas, mais preparadas tecnicamente e tal.
Schor: Você acha que com isso teremos ou já estamos tendo um segundo uso de drogas e um investimento em drogas órfãs maior? Uma vez que as ferramentas estão um pouco mais descentralizadas, você vê um movimento nesse sentido?
Souza: Na verdade, Paulo, nós já estamos tendo. Hoje na área magistral, por exemplo, você tem atropina 0,1% que está sendo usado na estabilização da miopia em crianças. Trata-se de um fármaco que veio da Atropa belladonna, de uma planta, e com isso a indústria começou a sintetizar mais tarde o princípio ativo. E a atropina é uma droga clássica da farmacologia ocular, de 1% a 2%, e inúmeras drogas vêm sendo utilizadas como segundo uso. O Brasil ainda não tem essa regulação do segundo uso do fármaco, nos Estados Unidos, por exemplo, consegue-se facilmente uma patente de segundo uso. Agora, a patente também é um mecanismo de proteção financeira para o país. Quanto mais patentes o país tiver, mais poder ele tem. Isso obriga quem não tem patente a comprar de quem tem, é um domínio econômico muito grande.
Eu não critico as patentes, eu critico algumas patentes que eu acredito que não mereciam ser patenteáveis. Mas a descoberta deve ser privilegiada, quem tem uma grande descoberta na área médica ainda é meio contestado, só que as empresas merecem o reconhecimento pela descoberta. O segundo uso, muitas vezes, está escondido, o laboratório testou e, na época, não teve oportunidade de usar ou não viu que o mercado era satisfatório para aquele segundo uso. O que acontece é que não tem uma infinidade de fármacos. Você tem uma molécula clássica e os laboratórios vão tentando desenvolver similares, modificando alguma coisa naquela molécula e isso tudo é patenteável. Apesar que eu acho que não são grandes descobertas, porque hoje você faz pelo computador essa simulação.
O que está acontecendo é que a tecnologia evoluiu muito. Antigamente, o medicamento tinha que chegar a um local muitas vezes distante, permanecer no local naquela concentração desejada por um tempo adequado, isso era muito difícil. Agora, por exemplo, descobriram o espaço supracoroidal, no qual se consegue administrar uma gota de fármaco em cima da coroide, em uma concentração adequada e usando um instrumento que tenha uma agulha de 0,1mm de comprimento, isso é altíssima tecnologia levando um medicamento para uma nova via de administração que não existia. Aí você tem um aplicador, um fármaco novo e uma possibilidade de chegar em um local que nunca foi sonhado que um dia um fármaco pudesse chegar. A tecnologia realmente veio pra ajudar a farmacologia.
Schor: Você trabalhou bastante em sistemas de liberação lenta, o que na oftalmologia é muito importante. Isso é um dos braços que você aposta? E em relação a modificações genéticas, duradouras e constantes, mas que sabemos que dependem muito mais de uma avaliação de longo prazo para saber se essa modificação que a gente fez não afetará qualquer outra questão, como é que você compara essas duas coisas? Se fosse para investir em um dos dois, seria liberação prolongada ou modificação genética?
Souza: Essa é uma questão fantástica. As inovações vieram para ficar, não há dúvida nenhuma. Dos dois lados – a terapia gênica e a tecnologia farmacêutica – é o mercado que puxa essa evolução. Trabalha-se pesquisando de acordo com as necessidades do mercado, porque tem que ter alguém que financie a pesquisa. Não tem mais a pesquisa livre, grátis, quem paga a conta é quem tem interesse na inovação, no produto novo. Eu acredito que irá evoluir dos dois lados. Está evoluindo muito na tecnologia mais do que na gênica, porque o nível de cientista para tecnologia é diferente do nível de cientista para terapia gênica. Na parte tecnológica, podemos observar o desenvolvimento fantástico dos equipamentos nos últimos 30/40 anos.
As crianças já aprendem na escola a lidar com mecatrônica, já sabem o que é chip, já sabem o que é um monte de coisa, ao passo que ser um cientista, ter uma formação para fazer terapia gênica, tem que ter mestrado, doutorado, laboratório, décadas de aprendizado, além de estagiar num local onde a ciência esteja disponível. Portanto, acredito que os dois estão evoluindo muito bem e acho que a tecnologia vai mais rápido. Cada dia que passa, ouvimos falar de alguma inovação tecnológica. Olha o exemplo das vacinas, a rapidez com que elas foram produzidas nessa pandemia, e o tempo que elas demoravam antigamente. Temos agora até chips para simular as experimentações em animais, chips biológicos. Eu diria até que fora da universidade a evolução é muito maior do que dentro dela. Na universidade temos os conceitos, mas o desenvolvimento tecnológico é nesses grandes centros de pesquisa multidisciplinar e onde as patentes são geradas com muita rapidez.
Schor: E me vem à cabeça uma área que alguns jovens estão interessados, que é área de biologia sintética, um lugar de produção em laboratório computacional. E tem até campeonato de biologia sintética. Eu acho fantástico isso e talvez a gente tenha mesmo um pulo grande do engenheiro para o biólogo sintético. É uma boa profissão do futuro. Para finalizar, queria que você falasse um pouco sobre isso, e gostaria de agradecer, mais uma vez, sua participação no programa.
Souza: Exatamente Paulo, e só divagando um pouquinho, a Academia de Ciências Farmacêuticas está promovendo o prêmio biodiversidade, um prêmio muito interessante, e os trabalhos foram distribuídos e eu peguei alguns para analisar. Por exemplo, existe uma valorização para o trabalho laboratorial, mas quando você faz uma pesquisa no computador, não é trabalho laboratorial. Entretanto, o conhecimento envolvido para se fazer uma pesquisa computacional, estudo molecular de compatibilidades, incompatibilidades, possibilidades, é fantástico também. Portanto, resolvemos que a valorização deveria ser igual para o sistema computacional e para o sistema laboratorial, pois os dois se equivalem.
Na realidade, estamos aprendendo com as profissões que estão sendo criadas. E elas são criadas rapidamente e também envelhecem rapidamente. É o mercado que dita isso – o mercado evolui e a ciência acompanha. O que fazemos no Departamento, na verdade, é inteligência coletiva. A universidade é isso, é um pouco do conhecimento coletivo instigando a criatividade, instigando o desenvolvimento. E é o que esses laboratórios fazem, é o café que a gente toma conversando e de repente surge uma ideia brilhante, uma possibilidade de pesquisa. Bom, foi muito prazeroso esse bate papo e com certeza ficaríamos aqui horas conversando sobre inovação, farmacologia e tecnologia avançada. Agradeço muito o convite, foi um grande prazer, Paulo.
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