No Podcast Rx – Por dentro da sua próxima receita médica! com o sócio–fundador da Ophthalmos Rohto, Acácio Alves de Souza Lima, presidente da Academia de Ciências Farmacêuticas do Brasil, refletiu-se sobre o compromisso com o cuidado e o uso inovador de substâncias de forma consciente, com estudo de mercado e produção em baixa escala, considerando-se as particularidades dos pacientes.
“Como o próprio Acácio ressaltou, farmácia é uma especialidade que está muito presente na formação do médico. Temos muita aula de farmacologia para entender como as drogas se distribuem no corpo, questões de farmacocinética, farmacodinâmica, interação medicamentosa, ou seja, é algo que faz parte do dia a dia da prescrição”, esclarece o oftalmologista Paulo Schor, salientando que certas drogas podem ser extratos vindos da natureza mais ou menos purificados. “Existem desde chá de quebra-pedra até o Acheflan (creme anti-inflamatório), que é um extrato modificado, purificado, que o laboratório Aché produziu e que é muito utilizado”, acrescenta.
Ele revela que há também moléculas que têm origem da natureza e chegam a especificidades sem efeitos colaterais. “Esse é o papel da indústria farmacêutica, e cabe aos médicos e enfermeiros do sistema de saúde identificar quais são as dores que precisam ser atacadas”, diz, afirmando que durante a entrevista com Lima foi abordado o estudo de mercado de possibilidades e oportunidades para lançar alguns produtos que não necessariamente são aqueles mais “necessários” e que são denominadas, às vezes, de drogas “órfãs”. “Essas drogas não têm nada de órfãs, principalmente quando a doença está em nós, quando somos os pacientes”, completa.
Para o especialista, nesse sistema de produção em que se aposta no que tem mais mercado, fica muita gente para trás, com doenças que são negligenciadas e que têm um investimento muito menor e que, com um investimento um pouco maior, poderiam já ter sido erradicadas ou pelo menos minimizadas. “Acho que essa é uma outra questão importante para refletirmos profundamente”, aconselha. Um outro aspecto que chama muito a atenção, segundo o médico, e que vale a pena repercutir, é o compromisso entre regulação (que é cuidado) e uso inovador. “Quando utilizamos algumas substâncias farmacológicas que existem, mas que não estão regulamentadas, isso é denominado de uso off label”, explica.
De acordo com Schor, o uso off label é quando existe uma droga empregada em certa doença e o médico acredita que uma doença correlata, que tem um princípio de aparecimento ou de manifestação parecido, poderia se beneficiar dessa mesma droga. “Isso é muito comum e o exemplo que o Acácio deu, e que é da minha área especificamente, é uma droga que era utilizada para câncer de cólon (Avastin®), e que hoje é usada na Degeneração Macular Relacionada à Idade (DMRI). E o que tem a ver as duas doenças?”, questiona, esclarecendo que nas duas patologias há uma proliferação anormal de vasos; são vasos novos (ou neovasos) que são formados e que fazem o tumor crescer e, se não tiver tantos vasos novos, o tumor cresce menos ou até morre.
“Os neovasos proliferados na DMRI sangram, vazam e acabam formando membranas que podem retrair e gerar cicatrizes que diminuem a visão”, explica o oftalmologista, informando que se também não houver esses vasos novos, não haverá as manifestações secundárias aos vasos que são mal formados. “Essa droga funciona bastante bem na retina. É um tratamento que não existia há dez anos e agora está disponível, embora ainda não seja um tratamento fantástico do ponto de vista de uso, porque os pacientes precisam tomar uma injeção na vista, uma vez por mês, que não é nem um pouco agradável”, relata.
Entretanto, ele destaca que esse tratamento exemplifica uma nova utilização de uma antiga medicação empregada em outra doença. “Um segundo uso de drogas é algo que temos visto muito atualmente. Isso passa ao largo de alguma regulamentação, porém os reguladores não são insensíveis e sabem que precisamos ser um pouco ousados para chegarmos em algum lugar diferente”, afirma Schor, ressaltando que se não houver essa ousadia, se os médicos forem completamente conservadores, continuarão tratando somente aquilo que já sabem tratar. “Portanto, existe sim um entendimento desse uso off label e dessa nova incorporação tecnológica. Claro que o ideal é que exista um protocolo de pesquisa no qual possamos testar essas drogas com todo o rigor metodológico e cuidado aos pacientes”, analisa.
Para o médico, existe um compromisso entre ser um pouco mais agressivo e ser um pouco mais regulado. “O Acácio citou a Ophthalmos Rohto, que foi a primeira farmácia de manipulação oftalmológica do Brasil e onde, muitas décadas atrás, manipulávamos colírios. Havia um bulário e o colírio que mais se manipulava, e até hoje se manipula, é um antibiótico fortificado”, comenta. Schor pontua que existem algumas úlceras infecciosas graves, porque se elas deixarem cicatrizes em algumas partes do olho, como a córnea por exemplo, que é uma parte transparente, essa cicatriz branca prejudica a visão do paciente. “Por isso, queremos curar o mais rápido possível essas úlceras, o que significa não esperar nada, nem o resultado do antibiograma para saber qual micro-organismo está causando aquela lesão, porque isso demora e não podemos perder esse tempo todo”, destaca.
O ideal, de acordo com o especialista, é assim que a úlcera de córnea com característica infecciosa for detectada em um lugar muito central da córnea, é tratar o mais rápido possível, com um antibiótico de amplo espectro. “E não temos isso disponível comercialmente. Então, na Ophthalmos pedíamos para manipular antibióticos, e ainda se pede. Essa manipulação é porque a concentração era diferente, era uma concentração maior, e existia uma combinação desses antibióticos. Dessa forma, era preciso fazer dois antibióticos com concentrações grandes e pingar os dois”, conta o médico, observando que nada disso é disponível porque não existe interesse da indústria em fazer um antibiótico para ser usado de vez em quando, enquanto para a farmácia de manipulação sim.
“E inúmeras córneas foram tratadas e, ouso dizer, salvas por conta dessas manipulações que são feitas off label. Não existe uma regulação tão estrita para que essas medicações sejam utilizadas. Na farmácia de manipulação conseguimos inventar um pouco, claro que com limites muito precisos, mas diferente das drogas que vão para as prateleiras”, aponta o especialista. Ele relata que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, que ficou bastante em evidência durante a pandemia e foi muito defendida pela comunidade científica, cuida de dar uma garantia para o usuário de que aquilo que está sendo oferecido a ele foi testado, tem um controle de qualidade e não irá fazer mal. “Está sendo exposto na bula o que realmente o medicamento faz, então há de se dar um crédito muito grande para a nossa agência, que é uma das mais respeitadas do mundo.”
Na opinião de Schor, a Anvisa faz um trabalho científico muito sério e tem atuação também em outro trabalho realizado por uma comissão que incorpora novas tecnologias ao SUS e também novos medicamentos, que é a Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias). “Medicamentos são incorporados ao sistema depois que eles apresentam uma série de características e uma delas, na minha opinião muito interessante, é a farmacoeconomia. Não sei se interessa muito para o sistema brasileiro ter um medicamento extremamente caro que irá resolver a vida de algumas pessoas ou outro que é bem mais barato e que será quase tão eficaz como esse primeiro medicamento”, reflete o oftalmologista, esclarecendo que essa questão tem um cunho social bastante meritório e também passa pelas agências de regulação.
Segundo o especialista, esse equilíbrio é fundamental: é preciso haver pessoas mais ousadas, tentando coisas diferentes dentro de protocolos de pesquisa em ambientes controlados, e do outro lado uma agência governamental que tem interesse público e seja regida pela sociedade, e que tenha a ciência por trás, para oferecer drogas em larga escala. “O Acácio comenta um estudo que fizemos sobre tratamento de córnea, para uma infecção que poderia acontecer após uma cirurgia eletiva, que é a cirurgia para correção de grau de miopia. E em alguns casos, muito raramente, pode haver uma infecção que assusta muito, porque esse é um paciente que não tem nenhum problema médico, uma vez que ele pode usar óculos ou lentes de contato para resolver a focalização, a nitidez das imagens, mas optou por operar.”
Schor comenta que em alguns casos a cirurgia pode complicar e se houver complicações, os médicos tendem a ficar muito preocupados, porque, afinal, estão lidando com um paciente saudável. “E nesse trabalho, que na época foi muito experimental e realizado com olhos de porcos em laboratório, o que fizemos foi infectar pedaços da córnea e depois tratar esses pedaços infectados em laboratório, para mostrar que conseguíamos tratar in vitro tecidos orgânicos, tecidos biológicos”, relembra, enfatizando que o estudo acabou não dando em nada, apesar de ser uma ideia muito interessante, na qual se propôs um tratamento ex vivo. “Conseguimos publicar como uma carta ao editor em uma revista que tinha interesse em novidades. Mas é aí que moram as grandes ideias, não porque era nossa, mas pelo que isso representa em termos de mudança”, acrescenta.
O médico diz que hoje se vê trabalhos sendo feitos sobre transplantes de animais para pessoas com tratamentos ex vivo. “A gente trata os tecidos antes deles serem transplantados para as pessoas. Então, nesse compromisso, nesse equilíbrio entre a ideia e a aplicação, é que mora o grande segredo da inovação”, observa, destacando que a conversa com Lima trouxe muito da perspectiva da ideação que acontece nas esquinas, nos bares, nas conversas, até o teste em laboratório e depois em uma aplicação industrial, em uma construção de uma planta, de uma fábrica, na regulação da Anvisa, no entendimento da sociedade sobre isso tudo e naquilo que nos é oferecido. “É preciso um entendimento do que está por trás disso tudo, entender profundamente o motivo da demora, o motivo, eventualmente, do custo, e se colocar ao lado, de vez em quando, das drogas e das populações órfãs que temos”, conclui Schor.
Fonte: