Tempo de leitura: 22 minutos

Escute aqui - UV podcast

O Podcast RX – Por dentro da sua próxima receita médica!, do dia 14 de outubro de 2022, teve como convidado o médico e empreendedor Gabriel Liguori, fundador e CEO da TissueLabs, startup brasileira de biotecnologia, que desenvolve e comercializa insumos, equipamentos e serviços que dão suporte a cientistas ao redor do mundo trabalhando na fabricação de órgãos e tecidos em laboratório.

Nesta entrevista ao oftalmologista Paulo Schor, ele conta o que o motivou a empreender nessa área e as suas conquistas de mercado ao redor do mundo, estando hoje em mais de 20 países com seus produtos e em mais de uma centena de laboratórios e de universidades, principalmente da Europa, além dos Estados Unidos, Ásia, Oriente Médio e América Latina. Leia, abaixo, a conversa na íntegra entre os dois.

Paulo Schor – Hoje eu vou conversar com Gabriel Liguori, uma pessoa muito especial para mim e vocês vão entender o por que durante a nossa conversa. Eu participei bastante do desenvolvimento, vamos dizer assim, do Gabriel, como um entusiasta desde o começo. Depois acabei também participando da banca de doutorado dele, que foi genial, e continuo seguindo os passos da empresa que ele fundou, com interesses e motivações próprias; hoje ela é uma empresa internacional e, por conta disso, o Gabriel também ganhou o título de pessoa mais interessante abaixo de 30 anos pela revista Forbes e pelo MIT também. Gabriel é médico pela USP, se formou em 2014, já venceu de cara um dos grandes prêmios que a USP tem e depois ingressou no PhD, que fez na Holanda, em Groningen, com o título de melhor tese dada pela CAPES. E o Gabriel se encaixa nessa veia empreendedora fora do Brasil e dentro também e acho que ele vai contar um pouquinho dessa história para nós. Gabriel, obrigado de verdade, sou teu fã.

Gabriel Liguori – Olá Paulo, é uma honra estar aqui com você hoje, é muito importante para mim, agradeço também a participação desde o início da TissueLabs, antes até, quando a gente ainda estava no doutorado, e estou aqui para a gente bater um papo e contar um pouquinho mais dessa história.

Schor – Biel, quando retornei de Boston, em 1997, eu voltei com uma palavra na minha cabeça que era bioengenharia e, na época, tinha essa história de o que é engenharia biomédica, o que é bioengenharia, e o (Rubens) Belfort que era na época o único titular do Departamento de Oftalmologia da Unifesp, me incentivou muito a montar o primeiro laboratório de bioengenharia ocular do Brasil. Nós montamos, mas estávamos muito longe do que você conseguiu; a gente conseguia fazer alguns instrumentos um pouco diferentes, modificar técnicas, dar um pouco mais de protagonismo para as pesquisas aplicadas, que em áreas médicas, ainda mais nas cirurgias, é tão óbvio como não é nas outras áreas. Mas queria que você explicasse um pouco o conceito dessa bioengenharia moderna hoje que você pratica, o que é a bioengenharia?

Liguori – A bioengenharia é uma área bastante vasta, que vai desde o que a gente faz, que eu posso falar um pouco mais, que é a parte de tissue engineering, engenharia de tecidos, até coisas não relacionadas a tecidos, mas sim prótese mecânica, ou seja, a bioengenharia é bastante vasta nesse sentido; nós, especificamente, trabalhamos com uma área de bioengenharia que é a engenharia de tecidos. Nosso objetivo é fabricar tecidos humanos em laboratório e, hoje, tecidos mais simples, mas no futuro, tecidos mais complexos, talvez até órgãos inteiros. E para você fazer isso, precisa basicamente de três coisas: das células, dos biomateriais e dos equipamentos. Todos os nossos órgãos são formados basicamente por duas coisas, que são as células e a matriz extracelular, que dá suporte a essas células. Em cada órgão, essa matriz é diferente, em cada órgão as células são diferentes, e o desafio é você conseguir colocar essas coisas juntas, num formato que mimetize o formato do órgão e que permita que isso se torne algo funcional.

Uma coisa é você juntar géis com células e outra coisa é isso vir realmente a funcionar. Acho que esse é um desafio não só nosso, mas da comunidade científica inteira nesse momento; claro que muitas coisas têm avançado em áreas mais básicas, do tipo pele, cartilagem, osso, até a parte de oftalmologia é uma área que está avançando bastante, embora não seja um campo que a gente trabalhe especificamente, mas acompanha, então basicamente a área da bioengenharia que a gente trabalha é a que tenta prover novos tecidos e órgãos para transplante no futuro. Hoje, esses tecidos podem ser utilizados para pesquisa acadêmica, então é nesse ramo, principalmente, que a gente atua, desenvolvendo tecnologias, do ponto de vista de biomateriais e equipamentos, que os pesquisadores ao redor do mundo podem utilizar para fabricar seus próprios tecidos e desenvolver pesquisas biomédicas, seja para desenvolvimento de drogas, seja para esses estudos patofisiológicos, entendimento de mecanismos, enfim, diferentes aplicações, que vai da criatividade realmente do pesquisador.

Schor – É fantástico e super entusiasmador essa possibilidade da gente começar a participar da elaboração de órgãos funcionais que antes eram disfuncionais, mas de um modo mais primitivo, no sentido de não ir atrás de consertar algumas coisas com remendos, mas que vai efetivamente fabricar alguma coisa, e no processo de fabricação, você consegue ir mais a fundo e fabricar sem o defeito, sem a falha que aquele órgão passou a expressar. O que te atraiu para isso, além, óbvia, dessa coisa fantástica que é você fabricar peças para as pessoas?

Liguori – O meu interesse nessa área evoluiu, na verdade, com o tempo. Quando eu estava fazendo faculdade de medicina, eu queria ser cirurgião cardíaco. Não pensava que ia virar empreendedor. Eu tinha uma história pessoal, nasci com uma cardiopatia congênita, e isso me fez querer ser médico e depois cirurgião cardíaco, e por muito tempo acompanhei o grupo de cirurgia cardíaca pediátrica, especificamente no InCor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da FMUSP), com o Marcelo Jatene e todo aquele grupo, tanto da parte de pesquisa, que não é mais patológico, quanto da parte cirúrgica. E por muito tempo eu não pensei em outra coisa, mas chegando no final da faculdade eu conheci essa área da tissue engineering, que eu nem sabia que existia, até acho que o quinto ano da faculdade.

Foi quando eu participei de um evento, o Congresso Mundial de Cirurgia Cardíaca Pediátrica, que estava sendo realizado no Brasil aquele ano e tive a possibilidade de ver um grupo de pesquisa holandesa mostrando um trabalho que eles tinham feito para desenvolver vasos sanguíneos para substituição em crianças. Como era uma área que eu gostava muito, cirurgia cardíaca pediátrica, eu olhei aquilo e realmente entendi que havia potencial dessa aplicação e aí comecei a estudar aquilo, informalmente, lendo trabalhos, livros etc. E cada vez que eu lia algo e acompanhava mais, eu via como aquilo era realmente o futuro da medicina, era algo muito além do que a gente estava fazendo no Brasil na época, uma coisa que tinha um potencial enorme para as próximas décadas, de realmente solucionar as questões de transplante, de falta de tecidos, com esse tipo de tecnologia.

E então eu decidi dar uma pausa na minha carreira médica, pensei “não, antes de fazer a residência, eu vou fazer doutorado para entender e trazer isso para o Brasil”. E fui e fiquei pouco mais de dois anos na Holanda, estudando tissue engineering, tecido vascular, e fui aprendendo diferentes técnicas, não somente bioimpressão, que é a nossa técnica principal de hoje, que a gente trabalha mais na TissueLabs, é o nosso carro chefe, e uma série de técnicas da engenharia de tecidos. Voltei para o Brasil no final de 2017 e tive a oportunidade de terminar a tese de doutorado junto com o professor Luiz Felipe Moreira e, nesse momento, também criando um laboratório lá no InCor mesmo, mas o objetivo era muito grande.

Então, comecei a ver um potencial muito grande na área e eu tive que tomar a decisão de abdicar da cirurgia para seguir na área de pesquisa e fiquei focado por quase dois anos na parte de pesquisa acadêmica. Mas vi que para a gente realmente trazer isso para o paciente era preciso outro tipo de ritmo e um outro tipo de financiamento, porque um financiamento tradicional de academia demanda muito capital, muito esforço e muito tempo da equipe. Então resolvi fundar a TissueLabs com o objetivo de transformar esse sonho em realidade. Isso foi em 2019, a gente fundou a empresa e o racional para chegar na sua fundação foi essa evolução; dessa forma, houve o momento de querer ser um cirurgião cardíaco para impactar na vida dessas crianças até o momento em que eu entendi que tinha outro jeito de, talvez, impactar até mais no futuro.

Schor – Eu abro um pouco o meu site falando que cuidando de um, estamos cuidando de todos, que cuidando de uma pessoa, estamos cuidando de todas as pessoas. Eu acredito que é o suficiente para explicar uma pergunta que eu vou te fazer, mas eu queria saber tua resposta. Qual é a tua atração ainda por cuidar de uma pessoa, do ponto de vista da medicina, no sentido do one to one versus one to many.

Liguori – A última vez que eu atendi um paciente, acho que foi em 2015, então faz muito tempo que eu não atuo realmente como médico. Quando eu me formei, trabalhei por seis meses, mais ou menos, dando plantão, aquela coisa de recém-formado, e depois que eu ingressei no doutorado, eu nunca mais tive a oportunidade de voltar a atender ninguém que não fosse da minha família. Eu até tenho meu CRM ativo, mas infelizmente não faz mais parte do meu dia a dia, é uma coisa que eu tive que abdicar. Quando a gente pensa, por exemplo, na cirurgia, se você faz uma cirurgia e resolve a vida de um paciente, aquilo já é gigante, não é? Portanto, abdicar de saber que eu poderia estar hoje tratando um paciente por dia, dois pacientes por dia, como cirurgião, para apostar que no futuro, talvez, eu consiga tratar muitos pacientes através das tecnologias que estou desenvolvendo foi uma decisão bastante difícil. Eu sinto um pouco de falta dessa possibilidade, mas é uma questão de fé de que lá na frente a gente vai conseguir ter um impacto ainda maior.

Schor – Acho que é exatamente isso mesmo, não acho que seja uma troca, eu fico pensando muito se a gente não está formando muitas pessoas para tratar de poucas pessoas, sabe, se não deveríamos aproveitar os jovens geniais, como você e como muitos outros que têm nos bancos de faculdade mesmo e direcioná-los mais pró-ativamente. O problema é que a gente fere com isso a liberdade individual, para as pessoas poderem fazer a diferença dentro de empresas que entregam as soluções. E o que a gente vê muito, você também citou isso, é uma ausência nas empresas em relação a ter gente da área médica trabalhando lá dentro. Tem muita empresa que é ultra especializada em administração, engenharia, logística, comercial, mas acaba faltando um pouco dessa visão, que é uma visão no teu caso pessoal, mas também profissional, e que acaba sendo impactante no resultado final, porque você erra o foco fino desde o começo e depois você precisa consertar lá no fim. E se você tiver alguém da área médica ou da área da saúde, alguém que tenha esse entendimento desde o começo, imagino que você tenha um ajuste de foco muito melhor desde o início. Você acha que é isso mesmo? Você tem alguma ideia de como envolver mais o pessoal da área da saúde em empresas integradoras de soluções desde o começo?

Liguori – Eu entendo que as melhores soluções que surgem no mundo vêm geralmente a partir da integração de duas áreas que são completamente distintas e que, provavelmente, não teriam nenhuma interação se não fossem reforçadas. Às vezes você tem uma super tecnologia que ela só existiu porque alguém que era da área médica ou de saúde interagiu com alguém que era de uma área de engenharia e criou algo que, sozinhos, eles não conseguiram endereçar. Então eu vejo muito valor nisso, de trazer pessoas de backgrounds diferentes para interagir e criar novas soluções. Eu mesmo acho que um grande fator que favoreceu o meu desenvolvimento é a curiosidade que eu tenho por diversas áreas. E não só na área médica, mas eu sempre tive curiosidade na área de empreender, de metodologia científica, de todos os tipos que tentei trazer para minha experiência pessoal e permitiu criar o que a gente criou hoje. Dessa maneira, acho que você ter realmente esse background, um background médico numa empresa que você, talvez, nem imaginaria que tendo um médico ali teria um impacto, cause, realmente, a possibilidade de se criar soluções inesperadas e que resolvam problemas que antes nem eram possíveis de entender como endereçar.

Schor – A área médica e a área da saúde têm um desafio enorme de entregar os produtos com qualidade e temos um monte de agências que chamamos de agência regulatórias nesse sentido, e que durante um tempão vimos as agências regulatórias como grandes vilãs, inimigas do desenvolvimento mais rápido, e hoje a gente enxerga exatamente o oposto. Enxergamos hoje como agências que protegem a sociedade, a população, nós seguimos as normas ISO (Organização Internacional de Normatização) que elas nos dão, tanto aqui como aí fora. E, no meu entendimento, é muito bom ter agência regulatória e cada vez a gente tem que ficar mais próximo delas.

E o que eu vejo também, e queria que você comentasse um pouco disso, que na área médica já é uma complicação termos profissionais ligados a isso nas empresas, de ter gente com o teu perfil específico, por exemplo. Como que a gente consegue que a regulação entre mais naturalmente dentro das empresas, já que esse processo é caro, lento, fundamental e que também irá direcionar os desenvolvimentos? Você vê, de algum jeito, alguma agilização responsável dentro desse pensamento que ele trafega da academia para a empresa de base tecnológica, ou quase acadêmica, para depois entrar na produção e na entrega, na qual você será cobrado em relação a essa regulação?

Liguori – Esse é um ponto interessante, porque eu venho da área médica e, como médico, vejo que geralmente não existe uma interação com as agências reguladoras. Normalmente, quem tem isso são as empresas que estão desenvolvendo os produtos e que a gente acaba usando como médico. E depois, passando para o lado da empresa, e também vendo um pouco de academia, vejo que também não tem nenhuma interação com as agências regulatórias, eu diria que nem tenho um background muito forte nesse ponto. Então, quando a gente começou na TissueLabs, foi exatamente desenvolvendo os produtos, pensando em pesquisa, e nem pensando muito como é que a gente vai resolver isso depois para ser aprovado clinicamente. E aí, conforme a gente ia conversando com investidores e pessoas que já são mais experimentadas nas áreas, fomos entendendo e aprendendo que o quanto antes você entra em contato com essas agências, melhor, porque você consegue economizar tempo, dinheiro, recursos humanos, e não fazendo coisas que lá na frente você vai jogar fora.

Isso não é algo comum de ser feito na academia ou mesmo pelos médicos, quando estão desenvolvendo alguma coisa, porque eles não têm essa experiência prévia. Portanto, a orientação que a gente sempre tem, dos investidores, das pessoas que têm feito o advisory da gente, é o quanto antes entrar em contato com o FDA (Food and Drug Administration), com o EMA (European Medicines Agency), e a Anvisa no Brasil, e perguntar “olha, a gente está desenvolvendo esse produto, o que vocês precisam que a gente faça?”, antes mesmo de começar a desenvolver o produto, porque eles vão te falar tudo o que você precisa fazer. E sabendo o que você precisa fazer, você consegue traçar o caminho e atender as expectativas dessas agências. Então, uma coisa que eu aprendi nesse caminho da TissueLabs, que hoje ainda é uma empresa que desenvolve principalmente para a pesquisa, mas que está em uma transição, pensando em desenvolver para o paciente no futuro e, talvez, num futuro não tão longe, é exatamente o quanto antes entrar em contato com essas agências regulatórias para entender o que que elas querem.

Schor – Eu acho que isso é tão importante, Gabriel, mas tão importante, tanto que agora na Fapesp, na coordenadoria adjunta de Pesquisa para Inovação, eu vejo isso o tempo todo. Eu acho que a luz a guiar a pesquisa aplicada na área da saúde tinha que ser das agências regulatórias, até por conta de que elas, de verdade, têm bom senso, né? Nós, pesquisadores, ajudamos a criar as regras até das próprias agências regulatórias, portanto, acredito que isso que você falou tinha que ficar gravado, tatuado nas pessoas. Mas voltando um pouco naquilo que você tinha dito, dos desafios, a gente tem na oftalmologia, que você conhece, aquela noção de que se o tecido anatomicamente está relativamente reestruturado ele vai funcionar. Só que não!

A gente tem isso muito claro na retina, por exemplo, a retina é um tecido super complexo, com dez camadas, cada uma se interconectando com a outra, com uma nutrição que é complexa, uma inervação que a gente não entende direito, com a transmissão de estímulo luminoso que a gente entende menos ainda. Nós sabemos partes da história, mas quando o paciente tem um descolamento de retina, a primeira coisa que a gente faz é colar a retina, o que não quer dizer em absoluto que a retina vai voltar a funcionar do mesmo jeito que funcionava antes, que é um pouco do que você está falando, de desafios de desenvolvimento de peças funcionais, e quero que você comente um pouco do que tem sido apresentado para a gente, até pela mídia. E voltando naquela impressão do rim artificial que a gente teve num dos TED Talks que ficou muito famoso e o quanto isso tem a ver com imprimir uma peça com uma forma e um jeito de órgão, que é uma coisa, e fazer com que algo que não necessariamente tenha forma de um órgão funcionar é outra coisa completamente diferente. Queria que você voltasse um pouco nisso.

Liguori – Isso tem muito a ver com a criação de expectativas que a gente tem, muitas vezes por parte da mídia, como se já tivesse sendo fabricado os órgãos por impressão para transplantes hoje, e não só aquele TED Talk, que era muito antigo, e ficou muito reconhecido, porque é um dos primeiros a falar publicamente sobre bioimpressão, o professor Anthony Atala, que fez aquele TED Talk, e ele imprimiu um formato ali de um rim, que eu até acho que era de algum polímero, enfim, e saiu com aquele rim, todo mundo levantou, bateu palma de pé, quando na realidade era só realmente um polímero impresso em 3D. Mas isso continuou acontecendo, na verdade, e depois a gente ouviu em 2018 e 2019, o primeiro coração bioartificial impresso em 3D, que foi um grupo de Israel.

E eles também fizeram uma coisa parecida, de imprimir um formato de um coração, um hidrogel contendo células de coração. Mas que não batia, não é funcional, então a primeira coisa importante é quebrar um pouco dessa expectativa, ver o que a gente consegue fazer hoje, e o que a gente realmente consegue fazer hoje são coisas extremamente simples, são tecidos com poucos milímetros, porque se você tem um tecido de mais de alguns milímetros, já não consegue ter vascularização. Você tem necroses, ele não funciona, por isso que até os tecidos mais avançados nessa parte são realmente tecidos mais finos e simples, como a própria pele. Já aconteceu muito, eu acho que agora vai começar a diminuir, mas o pessoal fica imprimindo as coisas no formato, falando que imprimiu o órgão, porque acho que estão começando já a cair na real e o desafio realmente é esse.

Não basta ter a célula e não basta ter a matriz extracelular ou o biomaterial que mimetiza a matriz, que são os dois componentes do tecido, tem um componente mágico aí, da natureza que faz isso de fato virar um tecido funcional. Eu acho que esse é o desafio de todo mundo hoje. Eu até às vezes falo que não necessariamente a bioimpressão vai ser a técnica que irá permitir da gente fabricar esses tecidos lá na frente. A gente aposta em uma técnica muito importante hoje, que é a técnica mais avançada que temos, mas nada impede que daqui a dois, três, cinco anos surja uma coisa nova que permita você fazer de um jeito melhor. Hoje a gente já consegue fabricar tecidos simples, pequenos, para estudo biomédico, pequeno tecido cardiovascular, inclusive, tecido miocárdico com batimento, microvascularizado, com funcionamento muito semelhante ao real.

Se você pegar um pedacinho de tecido cardíaco, mas não que ele represente o coração, porque no coração você tem todo o alinhamento espiralizado do órgão aos múltiplos subtipos de tecidos, certo? Não é só músculo, é músculo, é válvula, vaso, tecido nervoso, enfim, vai muito além do que a gente consegue endereçar hoje. Mas a tecnologia tem evoluído, temos visto cada vez coisas mais complexas. A gente já tem visto alguns ventrículos pequenos, alguns ventrículos que conseguem contrair e criar uma pressão para sair o volume de líquido. Por exemplo, tem coisas surgindo que realmente dão uma esperança de que vamos conseguir evoluir cada vez mais na tecnologia. Mas eu acredito que a curto prazo, entre os próximos cinco a dez anos, a gente não vai ter mais do que tecidos simples, talvez válvulas cardíacas, acho que isso sim, inclusive é o que a gente vem desenvolvendo como pipeline, que a gente enxerga na TissueLabs é tudo na área cardiovascular.

Também na parte de tecidos, como vascular mesmo, a substituição de vasos, seja em cirurgia pediátrica e até, talvez, músculo, embora eu seja um pouco cético, se você pegar um pedacinho de músculo cardíaco e tentar colocar no coração que está danificado não sei se vai resolver. O que eu vejo é que não resolve, mas tem muitas empresas tentando isso, inclusive no Japão tem uma startup fazendo clinical trials, fazendo PETs de músculo cardíaco que contrai e coloca em cima do coração, mas na minha opinião, é muito difícil de funcionar, porque você tem um músculo que tem lá seus 2 cm e aí você coloca um PET de 2 mm e espera que esse PET irá fazer uma função de um músculo que está danificado. Os desafios são grandes, mas a tecnologia vem evoluindo e já permite muita coisa do ponto de vista de pesquisa biomédica e mesmo de medicina personalizada

Schor – E você coloca de um jeito super didático as limitações e, provavelmente, é o futuro que vocês estão perseguindo, inteligentemente e sem ser megalomaníaco. Gabriel, fala um sobre isso de célula, na minha cabeça as células mesenquimais estão sendo colocadas em locais e estão aparecendo muito mais como curativos, que é como um substrato extra para que quem está em volta cresça. Talvez seja o caso dessa história cardíaca, não é? Você fecha uma ferida, mas não é que você recupera a anatomia e muito menos a fisiologia, que é o funcionamento daquele órgão. Mas tem muita gente no Brasil também trabalhando com diferenciação celular e rediferenciação celular. Você vê uma junção dessas duas coisas em algum momento? Ou você acha que as células têm um caminho um pouco diferente da bioimpressão e da engenharia tecidual?

Liguori – É, eu acho que o primeiro ponto importante é a gente diferenciar os tipos de células-tronco que são utilizadas hoje. Quando a gente fala de pesquisa de células-tronco nos dias atuais, agora está crescendo o segundo tipo, que eu vou comentar depois, mas até recentemente, quando você falava da pesquisa de células-tronco, falava de célula mesenquimal, que na verdade não é exatamente uma célula tronco, ela é uma célula estromal, que nos permite diferenciar em alguns tipos de tecido, então, por exemplo, célula-tronco derivada de tecido adiposo, célula-tronco derivada de medula óssea. São células que você consegue derivar, como por exemplo músculo liso, você consegue derivar cartilagem, consegue derivar osso, tecido adiposo, mas dificilmente, embora tenha um ou outro relato de algum paper que fala que conseguiu, dificilmente você vai conseguir criar um cardiomiócito ou um hepatócito ou uma célula mais específica, porque elas realmente são de tecidos mais conjuntivos de maneira geral.

E essas células têm um fator importante que é o fato de que elas secretam muitos fatores parácrinos, então fatores de crescimento que atuam na regeneração dos tecidos, porque, para isso, elas nasceram para regenerar os tecidos nos quais elas estão imersas. O que, inclusive, a gente também desenvolveu durante a pesquisa de doutorado do grupo, foi que a gente usou essas células-tronco de tecido adiposo, e aqui estou falando de tronco, mas o certo seria estromal, exatamente para utilizar esses fatores de crescimento secretados por ela como uma forma de regenerar o tecido cardíaco danificado, e elas têm um papel muito importante nisso e realmente funcionam. Temos uma série de trabalhos mostrando que funciona, mas a grande dificuldade é como você mantém isso ativo, porque essas células, se você injeta no coração, por exemplo, elas vão embora em 24 horas.

Uma das coisas que nós desenvolvemos foi utilizar os nossos hidrogéis, nossos biomateriais, para manter essas células ativas lá por semanas, mas essas não são as células que darão origem aos tecidos, aos órgãos que a gente enxerga lá na frente. Essas células são as mais novas, digamos assim, foram “inventadas” em 2007, foi o professor (Shinya) Yamanaka que inventou essas células, ele ganhou o prêmio Nobel de Medicina em 2012 por causa das células-tronco pluripotentes induzidas (IPS). Essas células podem ser reprogramadas a partir de qualquer célula adulta. Não só essas células mesenquimais que a gente já comentou antes, mas a própria célula adulta de pele, um queratinócito, um fibroblasto, qualquer coisa você consegue derivar essas IPS a partir de um processo de reprogramação, então você reprograma ela para o estágio embrionário e, uma vez que ela está no estágio embrionário, aí sim ela pode virar qualquer coisa, não só aqueles quatro ou cinco tecidos que eu comentei antes, mas qualquer tecido.

Acreditamos que essas células serão a base para a gente poder fabricar esses tecidos, porque vamos conseguir extrair do paciente essas células, criar e reprogramá-las para estágio embrionário. Expandir a ponto de você ter células suficientes para criar um tecido e diferenciar no tecido que você quer e aí essa célula diferenciada, você consegue juntar com a matriz extracelular e criar um objeto tridimensional. De novo, isso não resolve aquelas dificuldades que eu comentei antes, de juntar material com célula e isso virar tecido, não é isso, mas as células que a gente vai utilizar lá na frente para fazer isso, são extracélulas potentemente induzidas, que são hoje muito caras e difíceis de fazer, uma baixa porcentagem das células que você reprograma dá certo, é um desafio ainda, não é algo que está em uso. Por isso que poucos grupos de pesquisa ainda usam, mas é provavelmente o futuro dessa área de tissue engineering.

Schor – E a complexidade é enorme, quando a gente vai atrás de vasos, que foi o teu primeiro objeto de estudo, parece que é uma coisa assim “vamos fazer tecido, mas como é que tecido vai ficar vivo? bota vaso dentro, como é que faz vaso? bota um monte de células num tubinho”, mas como é que você mantém o vaso vivo? E o nervo? como é que você dá nutrição para o nervo? Isso não acaba né, mas é sensacional. E aí, queria perguntar para você uma penúltima coisa para nós irmos nos direcionando para o fim. O que é estudar para você, Gabriel?

Liguori – Eu sou muito curioso, então, eu acho que estudar para mim é matar a minha curiosidade e, na verdade, eu tenho dificuldade de estudar quando eu sou obrigado a estudar. Para mim é muito fácil estudar quando eu quero resolver uma curiosidade que eu tenho, agora, quando eu tenho que estudar algo obrigatoriamente, isso acaba comigo. Eu costumo fugir desse estudo por obrigação. Obviamente, hoje é muito diferente, mas na época que eu estava na escola, eu lembro que eu ficava estudando coisa de medicina, que era a próxima etapa, e quando eu estava na faculdade de medicina, eu ficava estudando sobre cirurgia cardíaca, porque eu não queria saber das coisas de medicina geral. Eu estou sempre fugindo para estudar uma coisa que me traz mais curiosidade, que me fascina mais. Então, estudar para mim acho que é muito isso, é matar a curiosidade, ir atrás, no dia a dia eu gosto de ler muito e procurar informações sobre coisas mais diversas possíveis e estudar para mim tem muito a ver com isso.

Schor – Eu acho que é prazer, né? Eu estou lendo um livro agora do Stanley Tucci sobre comida e ele é um super ator, fez “O Diabo Veste Prada”, um monte de filmes e ele fala no livro da paixão pela comida, de como ele vai passando pelos lugares, vai conhecendo as pessoas, aprendendo a fazer comida, e ele coloca tudo isso que você está dizendo, da curiosidade pela beleza, pelo gosto, do prazer junto, e eu acho que faz parte da nossa conversa, porque quem lê estuda, né? Quem está lendo está estudando, quem está ouvindo coisas e prestando atenção e tentando fazer conexões diferentes está estudando. E antigamente tinha essa história de “eu vou estudar, vou me formar e depois eu vou trabalhar e aí eu paro de estudar”. Meu chapa não é bem assim que acontece a vida.

Liguori – É, você não pode parar nunca. Na verdade, você só evolui se você continuar estudando, ficar para trás é muito rápido, é muito fácil.

Schor- E o que você está fazendo na Suíça? Conta um pouco para a gente finalizar a tua história de sair do Brasil e ir para a Suíça, primeiro o que você está sentindo, se sente falta daqui. Você me falou que vai voltar para cá daqui a pouquinho para passar um tempo. Me fala um pouco dessa tua fase atual e da TissueLabs e da experiência de um brasileiro fora do país.

Liguori – Bom, a gente começou a TissueLabs, como comentei, em 2019, foi somente partir de 2020 que a gente começou de fato a comercializar os produtos, a vender os produtos, e aí quando a gente chegou nesse momento, no início era tudo muito bonito, porque o mercado estava aberto, não tinha ninguém. Embora tenha sido ano de pandemia, que não foi um ano fácil para começar, mas a gente começou a crescer de maneira relativamente interessante no Brasil. E aí recebemos um investimento anjo naquele ano, o que permitiu entrarmos em outras áreas além dos biomateriais, que era a área que a gente começou.

Daí entramos na parte de equipamentos e lançamos a TissueStart, que foi a nossa bioimpressora de extrusão e isso trouxe ainda mais tração para a startup no Brasil. Então, no final do ano, tínhamos já dezenas de grupos utilizando nossas impressoras e os biomateriais no final de 2020. E a gente viu que o mercado brasileiro era um mercado muito fácil da gente endereçar, porque estávamos operando de dentro do país e para o pesquisador comprar um produto de uma empresa de dentro do Brasil é muito mais fácil do que comprar de uma empresa de fora. Mas estávamos em um mercado que hoje representa 1% ou 2% da pesquisa mundial, portanto tínhamos 98% do restante para explorar o inexplorado e a gente entendeu que o nosso produto tinha qualidade internacional, dessa forma, estávamos desenvolvendo coisas que tinham a mesma qualidade dos nossos concorrentes, que eram suecos, americanos etc.

E a gente pensou “bom, temos que estar lá fora também, vamos para a área global ou a gente não vai conseguir crescer” e decidimos que precisávamos abrir uma unidade fora do Brasil. Começou, então, a estudar os diferentes mercados e a gente entendeu que o mercado europeu estava em um crescimento importante nessa área de bioprinting. Era o mercado que mais crescia na época e a Suíça estava no momento de criar o que eles chamam de Tissue Innovation Park, voltado para a biofabricação nessa região que a gente está, que é o Ticino, que é um cantão italiano da Suíça, e a gente viu uma oportunidade legal de entrar num momento em que o próprio cantão estava desenvolvendo um projeto de transformá-lo num hub de biofabricação e, na época, não tinha nenhuma empresa que fazia isso, e a gente entendeu que era um bom lugar para começar a explorar.

E aí nós viemos meio “sem lenço sem documento”, com pouquíssimo recurso. Quando eu cheguei aqui era assim, ou a gente faturava até um determinado valor, que havíamos definido com o investidor, em três, quatro meses ou voltávamos para casa. E durante os dois primeiros meses, tivemos faturamento zero. Começou, então, a abordar os grandes potenciais clientes daqui e nada e eu pensei “nossa, a gente veio aqui para nada, vamos perder todo o dinheiro, não deu certo”. Mas o tempo passou e nesses meses as pessoas começaram a conhecer a gente, começou a pingar um pedido aqui, um pedido ali e aí, quando a gente for ver, estouramos a meta uma semana antes do prazo e vimos que o lugar realmente tinha potencial. E a partir desse momento, a gente teve um segundo trader de investimento, porque o investimento foi dividido em dois traders, era assim, se der certo, ótimo, se não der certo, acabou. E a gente veio e deu certo. E conseguimos receber o segundo trader de investimento e expandir ainda mais.

Então hoje a gente está em mais de 20 países com os nossos produtos, em mais de uma centena de laboratórios, de universidades, enfim, no mundo todo, principalmente aqui na Europa, que realmente se provou ser um mercado bom para a área que a gente está desenvolvendo, mas também estamos nos Estados Unidos, Ásia, Oriente Médio, obviamente Brasil, América Latina, e também, agora, em colaboração com o cantão para o desenvolvimento de pesquisa, não só atuamos como um hub para vender e relacionar com os clientes globais daqui, mas também desenvolvemos pesquisa junto com as instituições de pesquisa do cantão. Isso tudo foi algo que aconteceu no último ano, basicamente um ano e meio, e tem dado para nós uma atração bastante relevante, permitindo da gente crescer a ponto de se tornar uma das marcas principais na área de bioprinting no mundo. E eu acredito que ainda é só o começo, mas tem sido um sucesso. Pelo menos até agora essa estratégia arriscada se pagou.

Schor – Me vem na cabeça a frase de um empreendedor amigo nosso, que é a história do “anda que o chão aparece”, então é se jogar e é muito gostoso conversar com você sempre sobre essa fase que você não está contando da história ainda, que com certeza você vai contar de trás para frente, que vocês são a maior player de bioimpressão cardíaca do mundo. Daqui a dois, três anos você vai estar falando isso, você não vai contar a história de que uma semana antes de fechar o prazo vocês conseguiram bater a meta, a não ser que alguém te cutuque, mas acho que vai trazer muita realidade. Isso é uma das funções que eu acho que a gente tem que ter na educação. É assim, tirar a expectativa absurda, que nem a história de você falou, de que são tecidos finos, então esperem tecidos finos, funcionalizados ou não, em aplicações específicas, de preferência, acontecerem daqui cinco a dez anos.

Daqui a pouco vamos falar de outras coisas e a gente torce muito e, de novo, trazendo a Fapesp e o sistema de ciência avançado no país, para que as empresas nacionais se internacionalizem. Eu não tenho essa visão de que nós perdemos um talento, de que o Gabriel foi exportado, saiu daqui onde tinha que estar. Se tivesse aqui, você estava numa velocidade muito menor do que a velocidade que você está aí, e fazer com que o cérebro nacional tenha uma velocidade internacional obviamente vai ter um retorno, porque também você acaba ajudando muito o Brasil na velocidade que você está mais provavelmente do que estando aqui em uma velocidade muito menor. Então acho que esse termo “exportar cérebro” não é um nome adequado. A gente está, de verdade, alavancando a ciência que nasceu no Brasil e que vai voltar para cá.

Liguori – Sim, eu acho que mais do que isso até, a gente não deixou de operar no Brasil, não é? Esso é um ponto importante. A gente está aqui como um headquarter, principalmente por uma questão de reconhecimento de marca. Enfim, é claro que que você vem com uma tecnologia com branding Brasil versus branding Suíça, é diferente para o cliente europeu, mas o que eles acabam descobrindo é que, de fato, o produto é do Brasil ainda e é um produto de qualidade internacional. Então a gente faz meio que o inverso; geralmente se importa tecnologia de fora para dentro do Brasil e o que a gente está fazendo é exportando a tecnologia do Brasil para fora. As máquinas continuam sendo fabricadas no Brasil, os nossos biomateriais continuam sendo fabricados no país, eles são exportados para Europa e distribuídos globalmente. A operação toda da empresa continua aí, portanto, continuamos gerando empregos no Brasil, pagando impostos no Brasil, desenvolvendo a tecnologia no Brasil, mas exportando com essa nossa entrada no mercado suíço, eu acho que só agrega, a gente com certeza conseguiu criar muito mais postos de trabalho e conseguiu faturar muito mais como uma empresa internacional do que se a gente tivesse ficado no Brasil.

Schor – Biel, foi muito bom conversar com você, com certeza, daqui a um tempo, eu vou te chamar de novo pra gente bater outro papo. Acho que é um exemplo enorme, um modelo fantástico para as pessoas que estão em diversas fases da vida, desde o povo que está no ensino médio até quem está em pós-doutorado ou mesmo empresas que queiram fazer desenvolvimentos com um valor agregado maior, é dizer que é possível e que acaba funcionando na hora que você tem persistência. E que bom que você não falou em nenhum momento em sorte, Gabriel, porque essa é a pior palavra para ouvir. Você não deu sorte nenhuma, você foi um maluco de se jogar numa empreitada porque sabia que teu produto era ótimo e teu o time era fantástico e a coisa iria funcionar. Então acho que ter essa lucidez faz toda a diferença, portanto, de novo, parabéns e obrigado, Gabriel.

Liguori – Obrigado Paulo, é um prazer enorme estar aqui, espero que a gente converse muitas outras vezes, cada vez com mais novidades, e com o nosso objetivo final concluído de ter realmente essas coisas extremamente complexas acontecendo.

Compartilhe esse post