Em uma conversa muito agradável, o oftalmologista Paulo Schor recebeu, no dia 5 de setembro de 2022, no Programa RX – Por dentro da sua próxima receita médica!, o médico infectologista Hugo Morales, que explicou como manter o foco no paciente e no profissional de saúde com o auxílio da tecnologia. Morales conta, neste bate-papo com Schor, a história da “Laura”, primeiro robô cognitivo gerenciador de risco de que temos notícia. Atualmente, Laura atua em toda a jornada do paciente de ponta a ponta, facilitando desde o acesso ao cuidado na atenção primária da saúde até a prevenção de gravidade nos hospitais. Confira a história completa na entrevista abaixo.
Paulo Schor – O podcast RX Off Label foi muito prazeroso de gravar, mas hoje eu retomo a série do Programa RX – Por dentro da sua próxima receita médica!, após pausa de um mês em Londres. Vou conversar hoje com o Hugo Morales, que é um amigo de longa data, cuja conversa eu esperei por algum tempo, porque sou fã do Hugo, que é médico. Ele se formou na Faculdade Evangélica do Paraná, depois fez residência de Infectologia na USP e cada vez eu o respeito mais, porque ele tem uma visão muito mais ampla da medicina e da saúde. Posteriormente, ele passou um tempo em San Antonio, no Texas (EUA), trabalhando com fungo; depois, fez mestrado na Universidade Federal do Paraná e, há pouco tempo, passou por Harvard (EUA), fazendo um programa de liderança, informática e qualidade.
E o Hugo é um dos fundadores da “Laura”, que talvez você já tenha ouvido falar. É uma iniciativa, que eu vou sumarizar para simplificar, porque recebemos o Hugo aqui hoje para conversar com a gente sobre isso, de digitalizar e de dar valor aos dados organizados de sistemas de saúde. São várias as aplicações que a Laura tem e que acabam melhorando efetivamente a vida da população. E diferentemente de ideia, a Laura está no mercado há bastante tempo, então tem coisas para o Hugo falar para nós sobre resultados, e eu sei que ele está envolvido, e as startups sempre ficam envolvidas com rodadas de investimento, no interesse dos investidores. Hugo, muito obrigado por estar aqui, é um prazer falar com você.
Hugo Morales – Oi, Paulo. Primeiro, muito obrigado por me convidar. Eu fico muito honrado e, lembrando agora, eu acho que faz quase uns 15 anos que a gente se conhece e eu sempre admirei a tua carreira, principalmente o modo como você olha para a medicina, que agora está muito tangibilizada nesse design médico e todo esse novo conceito, que você vem trazendo, transmitindo e conseguindo disseminar. Portanto, eu estou muito feliz de estar aqui para poder compartilhar e trocar experiências, bater um papo com você e com todo mundo aí no podcast.
Schor – Obrigado. Começando a falar da Laura, eu acho que talvez vale a pena a gente voltar no tempo e te perguntar, por que você se envolveu nisso? Qual foi a faísca inicial dessa história?
Morales – Olhando para trás, é interessante contar essa história, parece que ela faz uma sequência lógica quando você olha retrospectivamente, mas foi realmente uma sequência de fatos inusitados. Eu nunca fui um cara da tecnologia, então, quando eu me formei, em 2012, na residência da USP, eu voltei para Curitiba e comecei a trabalhar em alguns hospitais públicos e privados e, principalmente, na parte de uso racional dos antimicrobianos e protocolo de sepse. E um ponto que você colocou da infectologia, eu sempre tive essa percepção de que a infectologia te dá a opção de olhar como um todo, então você tem a possibilidade de olhar a macro, a gestão, e não é à toa que a gente teve Ministro da Saúde infectologista, e agora a gestão cada vez mais se mostra importante. Dessa forma, a infectologia te dá essa possibilidade de olhar para o macro e também para o micro.
E, dentro dos hospitais, eu saía da cadeira de trás de um computador fazendo gestão, olhando relatórios, para ver paciente em questão de minutos. Daí, eu conseguia ter essas duas percepções. Quando eu voltei em 2012 para Curitiba, comecei a trabalhar com protocolo de sepse e uso racional de antimicrobianos, e eu percebi que havia uma dificuldade de entregar um melhor cuidado nessas duas esferas, tanto do macro quanto do micro. No macro, a gente não conseguia fazer, tem um desafio muito grande de agregar esses dados que a gente tem e que hoje estão digitalizados e transformar esses dados em algum conhecimento. Se eu pedisse, por exemplo, um relatório para três pessoas diferentes, iam sair três relatórios diferentes. Eu não tinha percepção, não conseguia entender qual era a tendência, por exemplo, do perfil de resistência de alguma bactéria. E também não conseguia entender como que a gente estava efetivamente cuidando dos pacientes em piora clínica ou no protocolo de sepse, porque eu não tinha esses dados agregados, organizados e transformados em conhecimento e inteligência.
Ao mesmo tempo, no micro, a gente também percebia uma dificuldade, um desafio muito grande de conseguir identificar aquele paciente efetivamente que está em uma curva de piora clínica. Imagina um sistema como o hospitalar, que é bastante complexo, com muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo, muita informação, desencontros, processos, e o paciente está em piora clínica, acaba passando por uma forma silenciosa e, quando se identifica, isso acaba acontecendo muito tardiamente. Em 2016, quando eu estava na Associação Paranaense de Controle de Infecção Hospitalar/ (APARCIH), organizamos um simpósio em um dos hospitais que eu trabalhava, e continuo trabalhando, o Erasto Gaertner, e chamamos os hospitais da região do Paraná para uma reunião. E nessa reunião, eu disse “me digam o que vocês fazem, qual é a solução que vocês trazem para esses problemas, olhando para o protocolo de sepse, tanto no macro quanto micro.”
E foi um dia muito interessante de troca de experiência e a gente não se limitou a somente pegar experiências dos hospitais. Nós tentamos conversar com os sistemas também de informática e soluções em tecnologia. E nesse momento tinha um protótipo que estava começando a surgir, que era justamente a ideia da Laura, e eu convidei o Jac (Fressatto, criador da Laura, primeiro robô cognitivo gerenciador de riscos do mundo) para conversar nesse simpósio e naquele momento eu percebi que a solução para conseguirmos efetivamente escalar cuidado, qualidade e segurança do paciente, estava centrada na tecnologia. Portanto, a tecnologia é a única forma, e eu acredito verdadeiramente nisso, de conseguir democratizar e disseminar essa qualidade e segurança dos pacientes. Naquele momento, quando aquela proposta, aquele protótipo foi apresentado para mim e para o simpósio, eu me apaixonei e me conectei com eles.
Schor – Você traz um monte de informação, mas começa falando uma coisa que eu acho que é fantástica, porque toda vez que a gente conta a história de trás para frente, ela fica bonitinha, mas só quem viveu sabe “os tombos que você tomou e não só as pingas que você bebeu”. E aí queria pegar um pouquinho disso que você falou do micro versus o macro, porque existe esse conceito agora de saúde global, de one health, de juntar saúde do meio ambiente e dos animais, de pessoas, dos sistemas, para que a gente consiga efetivamente ter saúde. E até violência está envolvida em conceito de saúde, aliás muito envolvida, a polícia faz parte também de conceito de saúde. Você acha que em algum momento a saúde vai sair da mão do médico? Você acredita que em alguma hora vamos ter a chance, e eu acabo fazendo um voto para que isso aconteça, de enxergar mais de longe ainda?
Você está em uma posição que é muito boa e muito lúcida, de não colocar privilégios na frente de fatos. Eu conheço a Laura e pelo teu discurso é óbvio que você não está fazendo algo para monetizar, para escalar, para vender depois. Seu objetivo é muito claro, é melhorar a saúde das pessoas. Você acha que em algum momento a gente vai olhar isso mais de longe ainda? Colocando, sei lá, um biólogo, um epidemiologista, alguém que tenha uma visão mais ampla para que possamos fugir mesmo dessas corporações, dessa armadilha de “eu vou fazer para minha turma e olhar para que a nossa turma inclua os bichos, inclua os rios”, sem querer ser poético, mas sendo realista.
Morales – É perfeito o que você traz e essa separação foi feita por nós, a gente que segmentou, que fragmentou, que colocou em silos, e corroborando com essa tua fala, um grande desafio, um grande obstáculo para entregarmos a melhor saúde que acreditamos, é que justamente os dados estão fragmentados, estão em silos. E essa visão fragmentada não permite que avancemos. E isso, eu percebi na prática também como startup. O que aprendi nesses tempos, nesses cinco, seis anos, é que é preciso ter foco, e por que eu falo isso? A gente tem que olhar para o objetivo final e não defender as segmentações; dessa maneira, o que eu trago da startup, é que temos que ter um foco, isso é a ponta da lança, porque você tem que ter um norte e toda a empresa precisa estar alinhada com esse norte. Se eu tenho silos dentro da empresa, também eu não consigo entregar o melhor resultado, assim como se eu tenho silos dentro da saúde, eu não consigo entregar o melhor resultado.
Dentro da startup, temos um ambiente em que conseguimos interagir de uma forma muito mais fluída entre as partes. Eu aprendi muito de design, aprendi muito com o bioestatístico também, a ter um olhar diferente em relação à academia, que era mais fragmentada. Eu aprendi muito com processos, o desenho do processo, desenho do serviço, interações, como a gente consegue atingir algum resultado; portanto, essas trocas de informações em um ambiente hoje globalizado ou no mundo contemporâneo é fundamental para conseguirmos entregar a melhor saúde. Mas claro que lá na frente não se pode perder o foco na saúde, não se pode perder o foco no paciente, que é o que a gente quer entregar no final do dia. Respondendo assim de uma forma bem direta e assertiva, eu tenho completa convicção de que sim, a gente tem que quebrar esses silos e realinhar, inclusive, as tarefas.
E será que vale a pena o médico com alta capacidade intelectual e de ensino fazer uma tarefa manual, repetitiva ou ele poder realocar isso, eventualmente, entre fluxos, protocolos humanos ou não humanos, para que consiga extrair o máximo valor daquele ser que tem outras habilidades? Acho que devemos entender qual é o papel de cada um nesse sistema e a única forma da gente entender isso é realmente fazer essa interação. Temos que olhar todos esses vieses para formatar uma solução que esteja alinhada com esse foco e não ficar no foco do corporativismo, de falar “aqui está bom, eu quero estar aqui, esse é meu local, como que eu faço para ficar aqui dentro desse sistema?” Eu acho que tem que olhar o contrário, o que eu quero entregar para entender onde que é o lugar que eu tenho no meu sistema. E a tecnologia é a mesma coisa, a gente não pode se apaixonar pela tecnologia; como você comentou, ela é uma ferramenta, é um meio para se chegar a uma finalidade, que aqui, no nosso contexto, é levar uma melhor saúde com eficiência para a ponta de uma forma democrática.
Schor – Isso me lembrou uma palavra que um dos ex-diretores lá do Media Lab usava, que era antidisciplinar. Ele falava que as grandes disrupções não eram disciplinares, elas não iam vir de uma disciplina, da física, da infectologia, oftalmologia ou da matemática, tipo só matemáticos junto com outros matemáticos, mas que ela viria da interação, que é o que você está falando. E acho que você traz um outro elemento aqui que é fundamental, que são dados. E quando você fala de dado virar conhecimento parece uma coisa que é quase um chavão, mas eu cada vez mais acho, e ontem estava falando com um dos fundadores do Departamento de Informática em Saúde da Unifesp, que eles queimaram a largada. Eles começaram a informática em saúde uns 30 anos atrás, numa época que era muito menos falado e muitíssimo menos utilizado do que atualmente como ferramenta de trabalho, que é informatização a partir de dado.
E, por acaso, anteontem houve uma situação na oftalmologia com um equipamento que eu não sei se você teve acesso, que é um retinógrafo portátil, em que eles fizeram um sistema de inteligência artificial que faz uma triagem bem superficial de grandes alterações no fundo de olho ou pequenas alterações, e esse equipamento, que é genial e está sendo usado em um monte de consultórios oftalmológicos, tem, obviamente, uma potencialidade para entrar na saúde pública de um jeito controlado, adequado e mais lento, vamos dizer assim, porque a nossa cultura ainda não absorve isso de um jeito imediato. Mas um grupo que estava fazendo uso desse equipamento colocou como disponibilizado a R$9,90 e a classe médica ficou muito brava e falou “assim não dá, esse nível de disrupção não rola.” E a propaganda que fizeram à revelia da empresa foi que a inteligência artificial dava diagnóstico e não precisava do médico. Errado, claro.
Mas me chama muito a atenção isso, de como a gente hoje tem acesso e consegue manipular os dados e ainda temos uma dificuldade de lidar com isso. Eu acho que a formação dos médicos ainda é débil em relação à análise de dados, manipulação de dados e a realidade está aí, batendo à porta e falando “olha, eu estou aqui, eu vou fazer, independentemente de você querer ou não querer”, então, não entra hoje por R$9,90, vai entrar depois de amanhã por R$19,90. Alguma hora entra, porque a tecnologia não bate muito na porta e pergunta. E eu acho, e queria saber um pouco da tua opinião, que as universidades e os sistemas de formação pecam loucamente em manter o passado e a tradição de ensinar medicina do mesmo jeito de sempre, desconsiderando completamente os meios de adquirir informação. Não é formação, é informação.
Hoje o TikTok dá dicas de injeção, então não precisa de uma disciplina técnica operatória, aulas para dar injeção, mas precisa de uma disciplina, e de preferência várias disciplinas, para falar de análise de dados e a gente não tem. Dessa forma, eu não tenho dúvidas de que vamos ser atropelados, na concepção de médico como líder e como propositor de alguma coisa para frente, pelas ferramentas e pela sociedade que já está mais organizada. E aí, faço a mea–culpa, na academia a gente tem feito muito pouco para acompanhar a evolução, não só tecnológica, mas de pensamento. Fui na Hopkins (EUA) algum tempo atrás e eles têm um prédio do lado da faculdade só de análise de dados, que não é nem deles, é do exército americano. Eles usam a inteligência do prédio de análise de dados do exército, claro que para melhorar os processos internos, que moem milhões de dados por dia, inclusive de Covid-19. Mas como é que faz esse negócio? Como é que recoloca a liderança em algum lugar ou deixa isso e vai acabar se ajustando naturalmente?
Morales – É, eu acho que é um excelente ponto o que você está trazendo, Paulo, e é legal que você voltou de um lugar que é um dos maiores expoentes nisso, nesse conceito, que é justamente o Reino Unido, Londres. Se não me engano, acho que uns três anos atrás eles já lançaram o documento sobre o médico do futuro, um documento manual bastante interessante que traz alguns pontos super válidos. A gente está repensando qual é a função do médico; nós, sim, temos um conhecimento técnico, mas eu entendo o médico como uma função ampla. Você consegue transitar por várias esferas, consegue entender esses pontos, entender a jornada e cada vez mais ter empatia com o paciente, justamente essa parte humana é fundamental. Esse documento traz também a questão do médico como um líder, justamente isso, então ele consegue agregar, consegue entender. Não precisamos ser os desenvolvedores, não precisamos ser os ultraespecialistas na parte de tecnologia, ultraespecialistas na parte de quem vai fazer um modelo de machine learning, mas temos que entender os conceitos básicos, e isso tem que ir para dentro da faculdade, mas principalmente ser um resolvedor de problemas.
Não temos a capacidade de resolver os problemas e capacidade de ser o líder nessa resolução dos problemas, então eu vejo a categoria médica muito alinhada com o conceito de líder em resolver os problemas da saúde. Para isso, temos que mudar totalmente o modo como a gente ensina medicina. Temos que resolver e não acumular conhecimento. Como você falou, o conhecimento está aqui, está tudo num repositório maravilhoso, que é o YouTube, o TikTok, com pedagogias que são ultra-avançadas, com hipótese validada, e conseguimos passar uma informação através dessas mídias. Mas a resolução do problema, o design médico, de como desenhar esse processo, como resolver, como validar, o que eu quero mostrar de resultado. Isso tudo que eu vejo que é o grande diferencial e que o médico pode ser líder nessa transformação.
O Instituto Mercy traz uma sugestão de conceito de framework para você tentar aplicar esses problemas e fazer essas mudanças. Os ciclos de melhoria, que chama transformar em learning health system –, até me espanta que não tenha uma tradução em português (sistemas que aprendem, sistemas inteligentes, e não fica uma tradução tão interessante). Mas o que traz o learning health system é justamente você conseguir ter uma infraestrutura e ela é tecnológica. Mas não só de tecnologia, mas também de processos e pessoas, para que você consiga ter uns ciclos de melhoria. E esse conceito eu estudei bastante nesse último ano, nesse curso que você comentou de Harvard, e o pessoal da Universidade de Michigan (EUA) também trouxe bastante forte isso.
A gente tem algumas parcerias, olhando justamente para a implantação na prática de tecnologias sob essa ótica desse conceito, e o que é esse conceito? Vamos imaginar um rio e que você tem algumas opções de transitar de um rio para outro. Vamos imaginar que você pode construir barcos e cada barco que você constrói tem um custo x, então você vai transitar ali 100 vezes, ou 100 pessoas, ou 100 movimentações, de um lado para o outro, então são 100 x; se você construir uma ponte vai ser muito mais caro no começo, certamente, mas se você olhar a partir do centésimo ou milésimo para frente, é praticamente zero o custo dessa transição, desse transporte entre um lado e o outro. O learning health system é um framework que permite você, fazendo a analogia dos barquinhos e a transição de um lado do rio para o outro, criar ciclos de melhoria com foco em algum problema específico, para você conseguir transformar e cada vez mais fazer esses ciclos de melhoria, transformando dados em conhecimento e voltar para a performance de uma forma quase que sem energia.
Porque o que a gente faz hoje, tem uns, mas a gente sempre morre num ciclo, você faz um ciclo de melhoria, aprende alguma coisa, na academia você nem coloca na performance de novo, você publica, o objetivo final é publicar, e é o modo como está desenhado isso. Mas ele não volta para a performance ou quando você está em um hospital, em um sistema de saúde, você volta para a performance, mas fazer um novo ciclo é muito trabalhoso, porque eu tenho que coletar dados de novo, tenho que organizar os dados. Então, só fazendo esse paralelo com learning health system, a ideia é você ter essa infraestrutura, que aí é tecnologia, então é a tecnologia que te permite ter os dados em tempo real, organizados, ter insights para fazer intervenções, e junto com pessoas, porque eu tenho que ter uma comunidade que vai aprender e vai passar por esse processo, junto com os processos também.
Assim, tem que ter tecnologia, pessoas e processos que irão embasar, que criarão essa ponte, para que você consiga fazer esse ciclo de uma forma quase sem nenhum gasto de energia, sempre partindo da premissa básica de que tem que resolver o problema. A gente tem que olhar para o médico como esse líder da resolução desse problema, em um framework que você tem aí, de um lado tecnologia, processos e pessoas, para fazer ciclos de melhoria que, no final do dia, irão transformar dados que estão aqui, estão presentes hoje, e transformar esses dados em uma informação. Então, a partir da organização desses dados é que vai transformar algum conhecimento que eu vou colocar na prática e vai gerar uma ação e você vai conseguir gerar esses ciclos em espiral. Você vai aprendendo e cada vez mais a tua área de conhecimento vai aumentando com o foco muito claro no problema de saúde que você quer resolver, no paciente e nas pessoas.
Schor – É uma delícia ouvir e conversar com gente inteligente, Hugo, e você vai puxando as linhas e vai passando um filme na minha cabeça. Queria entrar um pouquinho na história da Laura, pelo menos a concepção da junção da tua história de sepse com a história familiar de sepse que a gente tem da Laura. Daí, tem um pouco de paciente no centro da questão. Ao mesmo tempo, são duas coisas que obviamente não são excludentes, mas acho que é legal comentar, a Laura não é um negócio de B2C, quer dizer, não é para o consumidor final direto, o paciente não está inscrito no site de vocês, está inscrito no hospital, governo e operadoras de saúde. E você fala bastante em democratizar a partir de protocolos e depois você citou um pouco o NHS também que, como eu falei, não acho que é contraditório, mas sim complementar.
Há uma necessidade até de explicar para a gente mesmo quando que é personalizado, que você fala de empatia, da necessidade do médico presente no processo, e quando que isso é protocolizável, e até onde o protocolo vai e o que escapa do protocolo. Porque no fim fica um pouco daquela pegadinha do discurso “ah, mas isso não dá para fazer protocolo, então, não vamos fazer protocolo de nada”, o que acaba sendo a exceção, detonando a regra que pode democratizar, que é igual a história que eu falei das fotografias de retina; 90% dos exames são normais e dentro dos 10% anormais, você tem 9% que o aparelho pega, e o 1%?, você vai ficar nesse 1% e vai privar os 99% de ter tido uma chance de falar “você é normal e os outros são anormais?”. Ou seja, por causa de um, você detona os outros.
Mas eu vejo uma dificuldade até de comunicação nisso em relação a quem usa a tecnologia e dados de modo mais intenso. “Você vai desumanizar, não vai levar em consideração a minha particularidade.” Você não quer falar um pouquinho disso? Porque eu acho que é tão claro isso do paciente no centro do processo, para não deixar desvirtuar, que é o que você está falando, aliás, isso da espiral eu acho fantástico, de não precisar correr de novo. Como você disse, nós nos apaixonamos no mundo científico pela ferramenta, que é a publicação, e não necessariamente pelo propósito, que é por que eu fiz aquela publicação, e isso é muito interessante.
Morales – Isso é realmente interessante, porque temos uma métrica posta e para ver como que é importante definir as métricas, se definir que a métrica é publicação em revista de alto impacto, não importa muito o que você irá publicar, o importante é você publicar e conseguir aumentar justamente a notoriedade na revista e etc. Claro que revistas de alto impacto têm uma tendência de olhar para temas importantes e significativos, mas, se ficar só na publicação, ela perde um pouquinho o motivo pelo qual você começou todo o estudo. Eu quero no final do dia melhorar o meu contexto, melhorar meu ambiente, quero melhorar o cuidado. Você também traz várias provocações bem interessantes quanto à parte do protocolo e isso é muito forte no NHS, com a própria experiência do usuário, mas claro que não é um mundo de maravilhas, há reclamações do próprio paciente.
Eu também estava conversando recentemente com um amigo meu, que mora em Londres, cuja esposa está gestante e ele fala que o atendimento no Brasil é muito superior, justamente por essa questão de carisma, e não é só isso, mas também porque ele pode fazer exames quando quiser, então ele desvirtua um pouco o que é até o conceito de cuidado, porque a gente acha que fazer muitos exames é cuidado e às vezes não é. A questão do protocolo, se colocarmos protocolos e compararmos com uma via de trânsito, você pode estar em um chão de barro transitando, vai ter pessoas que são muito boas, que vão conseguir andar naquele chão de barro com um 4 x 4, então você vai conseguir individualizar. E aí vai ter pessoas extremamente capacitadas, que vão entregar uma saúde de alta qualidade, e mesmo em situações adversas. Mas isso não é a regra, é exceção de algumas pessoas, alguns profissionais de saúde conseguem entregar. Se você tem uma via extremamente sinalizada, asfaltada, você consegue transitar e a chance de ter acidentes é muito menor.
Se fizermos uma comparação simplória, superficial, entre um chão de barro, esburacado, e outro, asfaltado, sinalizado, indicando para onde você tem que ir, você vai ter um gasto de energia muito menor no asfaltado, com coisas que você não precisaria se preocupar, para focar justamente no que é importante, que é na empatia com o humano. Trazendo isso para a realidade, ter um protocolo e ter padrões de cuidado, faz com que 90% das vezes eu consiga não me preocupar com os problemas e com fluxos, com essa parte mais, digamos, burocrática, logística, para se preocupar com o paciente. Então a pergunta é, esses 10% que foram triados, o que a gente vai fazer com esses pacientes? E o estado e a posição de fala do médico nesse desenho é saber se com a ferramenta de tecnologia será possível democratizar o acesso e o diagnóstico de retinopatia diabética, por exemplo.
Mas temos tantos retinólogos assim para dar conta da vazão? porque eu tenho 20% de pacientes diabéticos no Brasil. Imagina a quantidade de pacientes que eu vou descobrir com retinopatia diabética, para onde é que eles vão? Isso é ser humanizado, você dá um atendimento numa jornada completa para o paciente, não se preocupando com questões logísticas, com problemas do micro para você conseguir ter uma interação com o paciente melhor e conseguir atender o paciente de uma forma melhor. A tecnologia, ao contrário, se a gente quiser se apaixonar pela tecnologia, ela fica desumanizada, mas se a gente se apaixonar pela saúde da tecnologia como meio, como ferramenta, você a deixa muito mais humanizada, porque aumenta-se até o ponto de contato para aquele paciente que precisa efetivamente.
Schor – Eu acho que essa é uma explicação fundamental para a gente mesmo, para a classe médica, que fica meio desesperada, “vou ser substituído, vou ser substituído”; você vai ser substituído no que você não é necessário, onde você é necessário será mais necessário ainda. Mas indo para a Laura, e aí eu tinha comentado em relação à atenção primária, hospitais públicos, gestão de hospitais mesmo, como o programa de sepse e operadora, que vocês têm três focos e várias soluções, e eu imagino que vocês tenham outras no pipeline, e entendo também que quando você fala da saúde “automelhorável”, é um ciclo que vocês já conseguiram estabelecer, que é de recolher dados bons. E talvez valesse a pena a gente falar um pouquinho de que resultados bons não conseguem vir de dados ruins e resultados ruins vêm de dados ruins, portanto os dados são a base da história. Mas vocês conseguiram resolver um problema grande, que é de recolher dados bons.
E eu entendo também que a partir desses bons dados e dessa primeira engrenagem bem feita, as coisas acabam sendo relativamente retroalimentáveis e sem tanta energia, como você falou. Esses focos que vocês escolheram, primeiro acho que talvez vale a pena comentar um pouquinho sobre dado ruim e resultado bom, porque tem muito disso, como por exemplo, vou fazer uma análise de dados e tenho uma startup que vai resolver a queda de paciente em hospital, mas como? Filmando os pacientes na cama, ver se eles caem. Mas tem câmeras? Será padronizado e todo mundo vai ser filmado? “Não, não tem nada disso, mas a ideia é ótima”, então o dado é complicado de ter. Tá na cadeira de quem briga com os dados o tempo todo e não deixa isso escapar da mão. E esses três focos foram vindo conforme foram aparecendo as possibilidades de aplicação ou vocês meio que olharam para isso e falaram, “olha, se a gente pegar essas três áreas, a gente dá conta da saúde de modo geral?”
Morales – Vou começar pela história, talvez, das soluções da Laura, porque a gente foi migrando de um lado para o outro. Inicialmente, foi com foco em sepse, e o que a gente percebeu é que a sepse é uma ponta do iceberg, é uma representação do modo como a gente entrega a saúde. A gente não consegue manejar os protocolos de sepse porque o modo como manejamos qualquer coisa dentro do hospital, no sistema de saúde, é ineficiente. Demos um passo para trás e, ao invés de olhar só sepse, a gente olhou para deterioração clínica. Então, montamos um sistema que resolve, principalmente, três obstáculos que, ao nosso ver, são os mais importantes, que é você não ter os dados agregados na palma da mão, não ter dados em tempo real. Ele está longe do tomador de ação, portanto a questão é a gente ter dados digitalizados, mas por toda a característica do próprio prontuário eletrônico, eles estão longe, estão separados, divididos em silos.
Especificamente na deterioração clínica para preditores de morte, a gente usa scores que foram desenvolvidos na década 90 com algumas modificações, mas com o racional de que eu tenho que fazer uma decisão à beira do leito, logo tem que ter três, quatro, cinco variáveis. Eu não consigo ter muito mais variáveis, porque isso seria inviável na prática, isso tem um impacto direto na performance do próprio score. E o terceiro ponto é falha de comunicação, então, qual é a maior causa de evento adverso em qualquer hospital do mundo? Olhando para casos de dentro do hospital, o primeiro aumento de escopo foi quando a gente olhou para sepse, e ao invés de olhar para sepse vamos olhar para a deterioração clínica, que é uma piora clínica do paciente. Grande parte é por sepse, mas o que a gente quer fazer?
A gente quer criar esse sistema que proteja o paciente, que eu consiga conectar as informações, entregar em tempo real para a equipe assistencial, para o enfermeiro, para o médico, utilizando uma predição de desfecho dos pacientes dentro do hospital, para identificá-los, melhor que os escores atuais, que eu comentei, de ter poucas variáveis, e comunicar de uma forma efetiva, então são esses três pilares. Olhando esse modus operandi, ele funciona para outras coisas também. Dessa forma, você tem um sistema de alerta que pode funcionar aqui para deterioração clínica, mas pode funcionar para readmissão na terapia intensiva, para melhora da função renal. São sistemas de alertas avançados, digamos assim, que ele pode ter dentro do nosso pipeline. E a gente está olhando para outros desfechos também.
Quando chegou a Covid-19, em 2020, começamos a olhar para isso e verificar o que poderíamos fazer para ajudar fora do hospital também, e sabemos que o grande problema vai ser intra-hospitalar, mas uma vez que o paciente entra, tem pontos de melhoria, mas já tem esse sistema que a gente desenvolveu. Mas como que a gente pode fazer isso fora do hospital? E o grande problema lá em março de 2020 era justamente a demanda gigantesca, porque não daríamos conta de atender fisicamente, presencialmente. Daí a gente desenvolveu a solução para fora do hospital, então para dentro do hospital é Laura Inteligência Clínica e para fora se chama Laura Care, então são duas plataformas com características diferentes, mas o foco é sempre nessa solução de problemas.
E para fora, começou a interagir um pouco mais com o paciente, não diretamente no B2C, mas a gente oferece para operadoras e para municípios, e você faz uma organização da fila do pronto–atendimento, por exemplo, e essa mesma solução, olhando aqui para escopo e de pipeline, a gente olha para doenças crônicas, como hipertensão, diabetes etc., para automatizar esses protocolos, então são acompanhamentos digitais em que você consegue escalar o sistema de saúde, assim, ao invés de ficar ligando todo mês para os pacientes, você consegue interagir com a ferramenta. E esses dois produtos da linha de frente têm uma proposta de valor em si, de resolução, mas também trazem para dentro de casa e organizam esses dados. Eles são os tradutores dos dados sujos, o garbage que está aí, a gente transforma o lixo de dados em organizado.
Nós temos uma ferramenta a qual desenvolvemos internamente, a tecnologia que faz justamente essa tradução, colocando em protocolos internacionais de interoperabilidade HL7 FHIR. Então, tem uma grande muralha, e o que entra efetivamente para o nosso banco de dados já entra com o formato interoperável, justamente para conseguirmos analisar esses dados. O conceito é esse, a gente começou olhando para o hospital, expandimos um pouco para sepse, expandimos um pouco para deterioração clínica e daí, talvez, expandir para outros sistemas de alerta. Para fora do hospital uma inter-relação com o paciente na organização de fila de pronto-socorro, inicialmente, mas depois para um acompanhamento mais horizontal de pacientes com hipertensão e diabetes também, por exemplo, e a gente percebeu que a grande dificuldade nossa também de entregar analíticos é que em relação aos dados, cada um é organizado de forma diferente.
A gente precisou investir bastante tempo e energia nessa tradução para interoperável, estamos em um processo de falar tudo HL7 FHIR, para daí sim, conseguirmos agregar a nossa base de dados. Hoje temos mais de 12 milhões de atendimentos médicos nessa base de dados, ao redor de cinco milhões de pacientes e, uma vez organizada, a ideia é que agora consigamos ter um tempo para colher esses frutos. Esse é todo o processo de criação de um de um terreno fértil para começar agora a sair algumas plantinhas, para elas germinarem.
Schor – Hugo, eu não vou tomar mais o seu tempo, acho que a gente podia de verdade ficar conversando um montão, porque é a história do puxa uma pena, sai o avestruz. Você tem uma joia nas mãos, vocês sabem disso, para fazer inúmeras propostas para o sistema de saúde, para operadoras, para hospitais, para paciente e acho que vale uma visita no site da Laura. Isso é um mérito óbvio da equipe, que se desdobrou, porque, a princípio, seria meio óbvio falar, “a ideia é ótima, vamos fazer a base de dados” e na hora que escalar, daqui a cinco anos, vocês começam a ter os resultados. Mas claro que os investidores de vocês mesmos precisariam já ter resultados para poder ter mais investimento e para vocês manterem vivos.
Então vocês fizeram as duas coisas, vocês já monetizaram e já estão mostrando resultados e têm uma joia na mão que vai, sim, dar um resultado que a gente espera muito que seja transversal em relação ao sistema de saúde como um todo. Com um sistema de saúde entendendo como vocês fizeram, como limpar os dados, como recolher, o que é bom, o que não é bom, como organiza, quem organiza. E tirar o médico como único protagonista da situação e fazer com que a equipe efetivamente trabalhe de modo mais homogêneo e horizontal, porque não adianta fazer uma coisa vertical de “eu mando, você obedece”, isso se mantém durante três dias e depois as pessoas começam a brigar umas com as outras. Não adianta, o sistema perde com isso.
Vou te deixar, obviamente, dizer as últimas palavras, mas já vou te agradecer muito. Eu acho que vai ser uma delícia quem conseguir ouvir e reouvir essa conversa, tem um monte de coisas subjacentes que a gente falou e pensou, que eu acho que está transpirando nessa conversa e que terá, com certeza, uma repercussão. Eu vou querer repetir ela daqui a algum tempo, porque você vai ter outras histórias para contar, Hugo. Então já te agradeço muito pela disponibilidade e pelas suas palavras.
Morales – Eu que agradeço, realmente é uma honra estar aqui. É uma honra conseguir trocar essas experiências e escutar a tua visão. A tua visão é muito boa sobre a saúde, acho que é isso que a gente precisa ter e eu vejo isso na juventude, nos meninos e nas meninas que estão se formando ou começando, eles já têm esse olhar um pouco mais amplo. O que a gente tem que fazer, efetivamente, é a faculdade se ajustar, a universidade se ajustar, a academia se ajustar. E acredito que o ponto mais importante é a gente ter uma finalidade, um foco, que é resolver um problema da eficiência em saúde. Qualquer coisa que for fazer a primeira pergunta é: qual o problema que eu quero resolver? Entendendo esse problema, qual é o meu objetivo? Como eu vou fazer? Se vou resolver com Google Chat, com o Google Docs ou com uma tecnologia de alta performance, machine learning; isso são ferramentas que estão aí, portanto, a gente tem que usar a tecnologia para alavancar o que a gente quer fazer, e sempre deixando o paciente e o profissional de saúde dentro do centro. Se você colocar a tecnologia no centro, vai errar o foco.
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