Foi ao ar no dia 15 de março, a entrevista que Celso Takashi Nakano concedeu a Paulo Schor, médico oftalmologista que há 30 anos se dedica à pesquisa direcionada à inovação e a novas tecnologias, para o podcast RX – Por dentro da sua próxima receita médica! Nakano é fundador da Associação Médicos da Floresta (Amdaf), entidade civil sem fins lucrativos que reúne médicos e gestores para prestar serviços de saúde em comunidades indígenas localizadas em áreas de difícil acesso da Floresta Amazônica.
Abaixo você confere o bate-papo na íntegra.
Paulo Shor – Olá, estamos voltando e muito felizes em apresentar o RX – Por dentro da sua próxima receita médica! Começamos 2023 com um convidado que é bastante especial pra mim e por diversos motivos, que vocês já vão saber quais são: Celso Takashi. O Celso é oftalmologista formado pela Universidade de São Paulo, com residência na USP, e há muitos anos toca o serviço de oftalmologia que foi durante algum tempo locado no Hospital Santa Cruz. Ele vai contar um pouco pra gente da trajetória dele na oftalmologia e também de sua atuação fantástica com trabalho voluntário, que eu acho que é um trabalho de vida. Apesar de ele colocar como sendo voluntário, eu acho que é um voluntariado muito intenso que imagino tomar um tempo enorme da vida dele, que é a Associação Médicos da Floresta.
O Celso começou, e eu queria que a gente começasse a conversa por aí, como voluntário na EDS – Expedicionários da Saúde, que é uma organização sem fins lucrativos. Depois eu queria também que você falasse sobre a relação de sustentabilidade versus lucro, ou seja, existe uma necessidade de se sustentar, de pagar as pessoas, de ter dinheiro, de conseguir dinheiro pra fazer as ações e o foco do Celso é na floresta. Então, bem-vindo e muitíssimo obrigado pela sua presença.
Celso Takashi Nakano – Muito obrigado, Paulo. É um prazer estar aqui com você e com vocês, ouvintes. E é uma oportunidade muito legal de poder falar um pouquinho sobre esse projeto da Associação Médicos da Floresta. Como você bem disse, virou quase que um projeto de vida mesmo. É uma coisa da qual hoje eu sinto muito prazer, muito orgulho, de fazer porque junta muitos amigos, muitas pessoas engajadas, para levar o bem ao próximo. A seguir vou explicar um pouco mais sobre isso. Mas voltando um pouquinho na pergunta, você já explicou no início, eu fui convidado – há muito tempo, em 2009 pra ser exato, para participar como médico – oftalmologista e cirurgião de catarata, que é a minha especialidade dentro da oftalmologia – lá no grupo dos Expedicionários da Saúde. O Ricardo Afonso Ferreira, que é o presidente, e hoje se tornou um grande amigo, me chamou porque eles precisavam de um cirurgião que também topasse uma aventura de operar casos extremamente difíceis e sem condições ideais, eram centros cirúrgicos de campanha. Barracas, logicamente não eram barracas improvisadas, mas eram específicas para as cirurgias, mas em condições bem diferentes de um hospital de uma grande cidade. E aí eu prontamente aceitei o convite que me parecia ser não só bem desafiador, mas também era bem diferente do que eu estava acostumado. Acho que é um pouquinho de espírito aventureiro mesmo. E lá fui eu para o meio da Floresta Amazônica, para a região de Sateré-Mawé, que é a terra do guaraná. Para quem não sabe, o guaraná é originário de lá. E aí eu fui, operei, com uma equipe que reunia até alguns médicos muito conhecidos atualmente, como Wilson Takashi e Fábio Nero, e foi uma experiência incrível porque poder operar nessas condições, reestabelecer a vida a algumas pessoas que estavam praticamente cegas porque não tinham acesso a uma cirurgia de catarata, que, hoje, na cidade de São Paulo ou em qualquer outra grande capital do Brasil, com mais ou menos tempo você acaba tendo acesso a uma cirurgia de qualidade. A gente se deparou com pessoas que estavam sofrendo tanto por conta de uma patologia, de uma condição reversível, é uma coisa muito gratificante poder participar dessa história de reestabelecimento da visão e dessa pessoa para a própria sociedade que ela vive. E aí foi só o início da história porque tem toda uma mágica das pessoas envolvidas e eu tive a oportunidade de coordenar a equipe de oftalmologia lá daquele grupo de expedicionários por quase sete anos seguidos a convite do doutor Ricardo. E foi um grande aprendizado rodar várias regiões da Amazônia, operando muitos casos difíceis, também aprendendo a fazer articulações com os grandes laboratórios, para conseguir apoio, recurso, porque sem isso nada funciona. Então a gente precisa de ajuda de todo lado para que esse lucro seja revertido para o crescimento da própria organização e para que isso impacte mais pessoas.
Como eu falei, foi um grande aprendizado e até uma inspiração para, depois de um tempo, a gente iniciar, fundar, essa nova organização chamada Associação Médicos da Floresta. Digo nova, mas já tão estamos indo para o sétimo ano, então já tem bastante tempo. A gente vem trabalhando para levar saúde, melhoria de condições de vida para muitas outras regiões do Brasil. Graças a um empurrão, um grande incentivo do que eu aprendi na primeira organização da qual participei como voluntário, como médico oftalmologista e agora sou um dos fundadores e coordenadores da Associação Médicos da Floresta.
Schor – Sucesso total e vocês são super-reconhecidos. E isso me leva a segunda parte da história que você já começou a conversar que é de sustentabilidade. Eu lembro uma vez o Yoshiaki, que é um amigo nosso de longa data que já navegou pelos lados de consertar e dar manutenção pra equipamento, comercializar equipamento oftalmológico, enfim. Uma vez eu estava perguntando como é que ele fazia pra cobrar pelo serviço dele. E ele me dizia o seguinte: “eu quero ver quanto dinheiro eu quero ter no fim do mês, vou dividir pelas horas que quero trabalhar e vou falar quanto custa cada hora minha”. Me pareceu um raciocínio muito simplório no começo, logo depois eu comecei a pensar e é genial. É fantástica essa conta. O que eu quero hoje, quanto eu quero trabalhar, quanto eu acho que é importante eu ter tempo para outras coisas? Eu tenho a impressão, e queria que você comentasse um pouco sobre isso, que isso pode ser o santo grau de quem trabalha em associações que não têm fins lucrativos. E aí vou lembrar recentemente minha passagem por Barretos, pelo Hospital de Amor, que você deve conhecer também e que é uma instituição fantástica. Eu não sei como é que o Henrique (Prata, presidente do hospital) consegue dormir e acordar sabendo que ele deve, de cara, algumas dezenas de milhões por mês e que ele pode ter ou não esse dinheiro no fim do mês. Mas eu tenho a impressão de que ele faz a mesma conta do Yoshiaki, quanto eu preciso, quanto eu tenho, quanto custa, quanto vou acumular, vou ter tanto no fim da operação. Conta um pouquinho disso. É por aí que se mantém a sustentabilidade? E como que se mantém a sustentabilidade sem ficar maluco correndo atrás disso?
Nakano – Bom, é uma pergunta bem interessante, né, Paulo? Isso já me faz refletir faz algum tempo, porque é muito diferente você, pessoa física, falar poxa, quanto que eu quero ter ou ganhar pra poder viver de tal maneira e poder usufruir de tais, vamos falar, regalias ou luxos do dia a dia? Ou, às vezes, quanto eu quero ter pra poder aposentar e levar uma vida mais tranquila? Essa condição de pessoa física não se aplica a uma empresa, a um CNPJ com fins lucrativos, e muito menos a uma organização da sociedade civil. Uma ONG, teoricamente, é um trabalho filantrópico, sem fins lucrativos e que, no nosso caso, e como a grande maioria das organizações, tentamos levar qualidade de vida, alguma coisa em benefício da sociedade. Você vai querer sempre ajudar mais pessoas, impactar mais gente e da melhor forma. Então, diferente de uma pessoa física que pode sempre querer mais, mas não precisa, no social enquanto puder ajudar, acaba sendo um negócio maior e infinito. Talvez esse seja um dilema porque a gente vai passando ano após ano nos organizando, tentando crescer, atingir mais pessoas. E os desafios vão se tornando cada vez maiores. Para atingir mais pessoas e ir para lugares mais longínquos e isolados, precisamos de mais recursos, precisamos divulgar mais o trabalho para que mais pessoas, empresas ou organizações mundo afora o conheçam e possam apoiá-lo, permitindo que esse trabalho seja crescente e realizável.
E aí, como você mesmo colocou, no começo do mês ou do ano, o que a gente vai fazer? Quais são as metas a curto, médio e longo prazos? Se não colocarmos os pés no chão e falar este ano nós vamos realizar isso em tais regiões, começar a colocar os pinguinhos nos is, vamos fazer tais conexões, pedir dinheiro aqui, tentar fazer um evento assim. Se não fizer isso bem organizadamente não dá certo. Não é tão fácil assim manter uma organização, tanto é que – não vou saber falar o número exato pra vocês, mas grande parte das iniciativas das organizações da sociedade civil, elas acabam morrendo porque se você não tiver o mínimo de estratégia, organização e também um fundamento – e tem de ter um alicerce sólido, você vai tentar fazer e vai morrer porque não é sustentável. Existe um vale da morte onde várias organizações somem. Hoje, é certeza que a Médicos da Floresta já passou desse vale, mas é sempre um desafio. Por exemplo, pra onde crescer é uma decisão que temos que tomar sempre. E é gostoso colocar uma meta alta, mas ao mesmo tempo dá um fiozinho na barriga de pensar será que vamos conseguir mesmo? E o outro lado da moeda é que é interessante. Como grande parte dessas iniciativas, como as nossas, dependem muito de engajar as pessoas que querem ajudar, doar recursos, até financeiros. É incrível que exista muita gente que quer ajudar e é importante que essa ajuda chegue às mãos de organizações que realmente consigam colocar em prática e levar esse benefício, essa ajuda, às pessoas certas. E 15 anos atrás eu também não conhecia este mundo e ficamos felizes de ver que existe muita gente boa nele. Na verdade, muito mais gente boa do que ruim, e isso é muito bom saber. Acho que as pessoas se atraem, né? Você estando nessa vibe acaba atraindo quem tem essa luz interior do bem.
Schor – Você teve a felicidade de agarrar com todas as forças essa oportunidade de participar de uma organização social desde cedo. E temos uma coincidência, e eu falei que ia falar sobre essa questão familiar, que meu pai estudou com o seu pai na Faculdade de Medicina de Sorocaba. Aí seu pai foi colaborador na Escola Paulista junto comigo e eu fui chefe do departamento quando a sua irmã estava na Escola Paulista. Então temos uma história familiar que se cruza. E você foi pra um lugar que eu, de algum jeito, tento estar também, que é o lugar da escalabilidade e você traz isso de um jeito muito claro, preciso. Eu acho importante que as ações sociais aconteçam em grande escala, principalmente no país onde moramos, que é um país muito grande e tem regiões com acesso muito restrito. E acabamos chamando isso de inovação, então você é um inovador social, um inovador no sentido de levar a tecnologia para lugares que não tem tecnologia. Acho que isso não é só louvável, mas temos que seguir essa vibe. E aí queria que você comentasse um pouquinho em relação dessa divisão no seu coração e na sua cabeça, de quando desliga de uma coisa e liga na outra. Como é que se incute a importância disso na cabeça das pessoas que acham que isso ou está muito distante delas, ou vai dar trabalho demais, ou não vai dar conta de fazer o que já está fazendo mais o que tem que fazer. Como que você dividiu isso que eu chamo de cuidando de uma pessoa versus cuidando de muitas pessoas?
Nakano – Existe uma divisão, se for pensar em quase uma responsabilidade social, vamos chamar de global, em que vou atingir muito mais pessoas do que na nossa atividade médica quando a gente está atendendo alguém individualmente. As coisas são juntas, Paulo. Quando falamos que vamos atingir mil pessoas em tal região é um a um. Principalmente no nosso grupo temos um cuidado extremo de atender com o maior carinho, o maior respeito. Mesmo que, muitas vezes, sejam outras línguas, tentamos nos comunicar com gestos, de maneira a examinar com o maior respeito e carinho possível. Isso não pode se perder. Agora quando falamos em escala é muito interessante. Mudando um pouquinho o ângulo, o Brasil é um país onde tem muitos médicos, e também tem muitos oftalmologistas. E isso é bom, tudo bem que pode ser ainda insuficiente para a população total do país porque tem uma distribuição que não é tão homogênea. Tem grandes centros e regiões que concentram muitos oftalmologistas e outras que têm vazios demográficos de pessoas mesmo, porque são cidades que muitas vezes ainda não são tão desenvolvidas, mas existe uma carência. Um dos meus desejos mesmo seria de que pudéssemos conscientizar mais médicos, mais oftalmologistas, a praticarem um pouco mais dessas ações. É meio altruísmo mesmo. Sempre que você pegar e puder dedicar alguns dias do ano, isso é muito pouco. Não vai impactar em nada a sua família, o seu resultado financeiro, mas você vai poder impactar muita gente com poucos dias de atendimento social.
E você não precisa ir para o meio da Amazônia como o nosso grupo vai, mas pode fazer uma ação na vizinhança, na mesma cidade, porque estamos falando em quantos mil médicos no Brasil, quantos mil oftalmologistas, se cada um atender 50 pessoas no ano, gratuitamente, fazendo uma boa medicina, dando todo o carinho, isso é escalabilidade né? E com isso você vai gerar muita coisa. E é lógico, queremos fazer de nosso grupo exemplo para que muitos outros grupos se formem. Esses médicos mais novos, ou até o contrário, os médicos que já chegaram em um estágio de vida que querem doar, devolver para a sociedade um pouco do muito que conquistaram, do que a sociedade lhes permitiu. E como você falou, eu comecei cedo mesmo, com trinta e poucos anos, e tive a sorte de ser convidado. Essa mosquinha me picou de uma maneira que eu não tinha consciência, dessa responsabilidade social que eu tenho hoje. E isso foi crescendo ao longo dos anos. Hoje, durante 70%, 80% do meu dia a dia eu penso na organização. Isso é um desafio porque me dedico a isso 80% do tempo e, teoricamente, não tem uma remuneração para isso. Então os outros 30% eu tenho que ser muito eficiente para manter todos os meus custos sendo pagos, e até sobrar, e eu pagar esse meu tempo livre para fazer mais. Foi um desafio ao longo dos anos que eu mesmo me coloquei e é algo que me motiva, da qual eu gosto, de levar o bem para muitas pessoas, incentivando e motivando outras pessoas a se juntarem a nós nesse trabalho. Hoje enxergo isso como algo muito mais motivador do que ficar 80% do tempo dentro da minha clínica, operando catarata, fazendo mais do mesmo. Se eu pudesse dar uma dica para o pessoal jovem puxa é pense nisso. Quando tiver 50 anos de idade, que é minha faixa etária, você vai olhar pra trás e pensar “o que eu fiz?”. Ah eu ganhei dinheiro, trabalhei, e aí, que mais? Ah, só gastei dinheiro, porque como eu ganhei, e tudo bem, não está errado. Mas eu garanto que, puxa, já rodei em tantos lugares, já vi tantas histórias, passei tantos perrengues, tantas aventuras e tem tanta história pra contar para os netos. Isso é gostoso.
Schor – Eu acho que você está mais rico, e essa riqueza é interior, que ninguém tira, e te faz brilhar. E outra coisa que eu acho que acontece é o preparo do terreno que foi feito pra gente, pra mim também, um pouco pela comunidade. Conta a história tanto dos judeus, no meu caso, como dos orientais, no seu caso, em que a filantropia, o voluntariado, a generosidade, são coisas muitíssimo valorizadas. Um pouco intracomunitária e um pouco extracomunitária. No seu caso, extracomunitária, o que é ótimo porque no fim das contas a gente acaba saindo da nossa bolha e indo longe. E no Brasil vemos esse movimento ainda pequeno, enquanto nos Estados Unidos e Canadá – minha filha está lá em formação, mas ela desde o começo teve trabalho comunitário, voluntário, como parte do currículo. Vocês também têm bastante isso, desde os escoteiros, temos grandes amigos, o Edson Moura e a filha dele que trabalha nos escoteiros desde sempre, a Thammy, e ela tem uma consciência social muito formada. Eu adoraria que a gente conseguisse transbordar isso para os nossos jovens. Percebemos que os acadêmicos de medicina têm essa vontade de ajudar, até porque eu acho que eles ficam mais próximos da população. Mas talvez a sociedade como um todo precise ver muito mais sobre o que você está falando, de fazer ações e avaliar suas consequências, podendo participar e levar mais gente. Mas queria que você pontuasse um pouquinho a experiência que teve em relação aos Yanomamis, um pouco pelo viés de acesso, esta é uma palavra que tem me perseguido e que eu acho que é um enorme desafio nosso, e que ela vem junto com desigualdade. Nosso país ele é muitíssimo desigual. Você falou da distribuição de médico oftalmologista e mesmo tendo médico oftalmologista em vários lugares, não conseguimos fazer com que as pessoas cheguem ao oftalmologista ou que, chegando ao oftalmologista, tenham acesso a tratamentos por serem mais custosos. Há então uma diferença determinada pela condição socioeconômica e mesmo geográfica de algumas pessoas, o que é uma coisa extremamente cruel dentro do território nacional. E você teve uma experiência com os índios Yanomami. Antes de ter essa exposição e explicitação na mídia, você já contava essa história. Você não quer contar pra gente o que viu lá, um pouco na história do acesso, o que passou pela sua cabeça quando chegou lá. Conta um pouquinho dessa história pra gente.
Nakano – Essa situação caótica pela qual os Yanomami vêm passando tem muito a ver com o que você falou, da dificuldade de acesso. Lá é uma região que, se olhar no mapa, fica no extremo norte do país. Observando o mapa, tem o estado de Roraima, aí você vê Boa Vista, corre para a esquerda e todo o limite do Brasil superior, que vai da fronteira com a Venezuela, com a Colômbia, é tudo região Yanomami, e vai até a região da cabeça do cachorro, no oeste do país. É uma região que junta algumas planícies, onde tem rios pouco mais navegáveis, e subindo para o extremo norte, tem cadeia de montanhas, é uma região serrana. Então é uma região onde não tem acesso terrestre, não existem estradas e os rios só são navegáveis na parte da planície. Conforme vai subindo a serra, tem as cachoeiras e os rios vão ficando estreitos, então não dá pra navegar. Ou seja, todo o acesso a essa região é aéreo e estamos falando em aviões monomotores que pousam em pistas extremamente precárias. Eu mesmo já pousei em uma pista em L. Como pode uma pista em L? Não dá pra acreditar. E há outras regiões em que só se chega de helicóptero. O isolamento geográfico é um empecilho absurdo lá. E tem a questão cultural também e uma população que tem muito pouco contato porque ninguém consegue entrar e ninguém consegue sair. Então, tem essa questão cultural do isolamento, e também as condições das equipes de saúde. Se você for ver a história da saúde dentro da terra indígena e Yanomami, ela não existia e depois foram ser implementados postinhos de saúde, como se fosse uma UBS, e depois alguns polos base em algumas regiões espalhadas dentro da terra dos Yanomami. Ou seja, é uma infraestrutura muito precária. Lá chove muito, tem muita umidade, tudo é de madeira porque não dá pra ficar levando tijolo de Boa Vista pra construir. Ao longo dos anos, ou até décadas, como não houve uma melhoria continuada, a estrutura física de trabalho lá das equipes de saúde é super precária e é tudo regido por um órgão chamado Secretaria Especial de Saúde Indígena, que é um braço do ministério. Esse órgão tem a central em Brasília e depois cada distrito – existe um distrito Yanomami – também tem um órgão que fica lá em Boa Vista. A sede do distrito Yanomami contrata e coordena toda a equipe de saúde. É difícil falar de fora também, ou é até injusto falar de fora, uma vez que a gente não sabe todos os dados, mas que existe uma carência mesmo. Poderiam ter muito mais profissionais se tivessem condições, se tivesse remuneração. Então tem N fatores que poderiam ser melhorados. Daqui em diante, tomara que melhore, mas historicamente eles não davam conta de levar saúde ao local de uma maneira adequada. Juntamente com isso, imagina você tomar água contaminada, não só com mercúrio, com metais pesados, mas com bactérias, protozoários, etc. Você cria uma criança desnutrida, que toma uma água que vai dar diarreia, e aí isso agrava exponencialmente o quadro de saúde das crianças, principalmente, mas atinge os adultos também. Mas as crianças sofrem mais e aí quando você já está super fragilizado vem e pega uma malária porque é malária endêmica na região, e corre o grande risco de falecer. Existe um índice de mortalidade infantil tão grande lá porque é igual à tempestade perfeita, sabe? Junta vários fatores, no caso todos negativos, de uma vez só, então vira o caos que virou, é lógico. Tem a pressão no garimpo, que foi um dos fatores mais importantes mesmo. Então para essa “tempestade perfeita”, tem N fatores que são crônicos e que acontecem há muitos anos e ninguém sabia. No ano passado, eu e minha equipe entramos quatro vezes na região. E eu também tinha ido lá dez anos atrás e já era muito ruim já, mas não era tão caótica como agora. Era o meu sonho voltar para aquela região e a gente não tinha notícia porque as informações não vinham, então existia uma dificuldade enorme de ter informações e correndo o risco delas serem equivocadas, não tão exatas como realmente eram. E por isso foi virando uma bola de neve tão grave. A minha esperança é que, agora que ficou tão ruim, está tendo uma intervenção muito importante do governo federal, das Forças Armadas. Com certeza essa ação emergencial vai surtir um grande efeito positivo, e muitas pessoas que iriam morrer, não vão morrer. Só que o próximo passo, que é onde entra nossa ONG, é focar no médio e no longo prazo porque não dá pra devolver a criança que agora não tem risco de vida para as mesmas condições de vida que tinha antes, sem água, sem alimento, sem um projeto de agricultura sustentável. É lógico tem que ser culturalmente aceito por eles, mas tem que ter coisas diferentes do que estavam acontecendo senão voltaremos lá daqui a seis meses, um ano, dois anos, e estará na mesma situação. Mas hoje tem uma chance né? Porque nunca se ouviu falar tanto de uma região. É lógico, voltar à estaca zero não vai voltar. Minha esperança é que muitas organizações do próprio governo, dos ministérios, tomem essa iniciativa, essa ação de fazer coisas diferentes.
Schor – Eu vou pegar carona no que você está falando. Concordo, e tenho a mesma esperança que você, e tenho certeza que pela dramaticidade da história e mesmo pelo protagonismo do Brasil em questões ambientais e da Amazônia, temos uma chance única. E você fala muito, e eu acho muitíssimo importante, a questão da água. Quão importante a água até para tracoma, para doenças oculares, para higiene básica. Lavar a mão pra não pegar covid, mas vai lavar a mão com qual água? Você cita isso como muitíssima propriedade. E eu queria entrar com você um pouquinho nessa história cultural, mas a gente fala bastante em desenho conjunto com a população afetada no sentido de inovação. Quanto que os próprios índios não têm que participar, ou como eles participam – índios ou qualquer população que esteja afetada, que tem o lugar de fala, que dá a solução do que vai ser feito e como vai ser feito, onde vai ser instalado o poço, artesiano ou não, se vai ferver a água? Queria que você comentasse um pouquinho disso. E comentasse outra coisa também que me veio através de uma prima que agora está cuidando do Fundo Amazônia lá no BID. Ela é uma das diretoras do Fundo Amazônia. E aí eu sabia que ia conversar com você e eu falei, Tati dá algumas coisas que você acha que seria importante de perguntar pro Celso em relação aos índios da região amazônica. Ela falou “pergunta pra ele como é que os índios se veem não enxergando? Como é que é a visão para os índios?” Se isso é alguma coisa que te passou pela cabeça, te chamou a atenção um pouco nesse lugar de cultura própria e quanto que a gente, eu com certeza não entendo nada da cultura dos índios e você começa a entender, começa a trazer para lugares de desenvolvimento tecnológico ou de possibilidade de entrega de soluções a tradução do que você viu lá. Isso o médico é muito bom nisso né? A gente é treinado para ouvir o paciente, sabemos como é que a tecnologia pode ser empregada e tentamos de um jeito ou de outro personalizar, customizar essa entrega. Como podemos ajudar, e o que eles de verdade enxergam, ou não enxergam, e têm como prioridade?
Nakano – Essa é uma pergunta bem legal, Paulo. A gente não pode generalizar índios e índios, tá? Porque a gente tem uma mania de achar que tudo é uma coisa só. Tem muita diferença de etnia para etnia, região para região. Que que eu quero dizer com isso? Vamos ser bem extremos aqui. Se você pega uma comunidade lá bem, bem, bem afetada, nessa crise, lá nos Yanomami, onde não tem comida, não tem água. As pessoas viram os vídeos, as fotos, de pessoas esfomeadas, pele e osso, não tem comida pra ninguém. Imagina a gente que tem filhos, né? Poxa, eu não tenho o que dar para a criança. É triste. E aí nessas regiões onde vamos tem que ter uma carência, você tem que priorizar o pouco que tem que priorizar. Aí pega uma pessoa de mais idade, está com catarata, está cega, não enxerga nada, não tem valor para sociedade, né? Porque ela não caça, não planta, não cuida das crianças, e então é normal nessas culturas que o pessoal nem alimente mais essas pessoas. Porque é uma escassez absurda. É bem chocante para gente, da cidade, tentar entender uma situação como essa. Mas se você tiver numa situação dessa e tiver que priorizar, talvez você comece a sentir na pele o que é ter de decidir. E aí imagina, né? A gente vai lá opera essa pessoa, ela volta a enxergar, e o que acontece? É uma boca a mais pra comer, aí a gente fica questionando, será que isso foi bom? Será que isso foi ruim? É muito complexo até, muito profundo. Caramba, eu estou devolvendo a visão para a pessoa, mas e aí ela vai caçar? Talvez não, porque tem idade. Vai plantar? Talvez não. E aí? Pode cuidar de umas crianças e tal, mas é muita carência. Então essa é uma situação que eu estou falando porque que existe uma realidade como essa. Agora tem outras regiões. Vou falar sobre uma região muito, muito isolada. Na verdade é a região mais isolada da Amazônia, que é o Vale do Javali, onde o Pereira foi assassinado. Eu fui lá no ano passado. Lá os rios são mais planos, tem muito rio, muita caça, muito peixe. Eles plantam mais, tem mais frutas. Até o número de pessoas de mais idade é maior. Então não podemos generalizar. E temos que tentar entender – e isso não quer dizer que não vamos tentar levar a melhor medicina que sabemos fazer para todo mundo, mas às vezes não sabemos se isso vai gerar tanto agradecimento. Eles têm as maneiras deles também. De agradecer ou de, de repente, dar uma acenadinha de cabeça. Vivendo e aprendendo, né?
Schor – E rodando nesses lugares todos aí eu vou acabar pegando exatamente essa sua frase, vivendo e aprendendo e o mundo é grande, né? A gente tem as vivências que estão muitíssimo além do que a gente imagina que poderia ter tido e que nos deixa num tamanho muito menor, muito mais adequado, eu acho, para o mundo todo. O Borges falava que ele queria ter uma casa com vista para o cemitério para poder olhar a finitude e falar assim “ó, meu tamanho é muito menor do que eu acho que é”. Eu tenho muito mais para aprender e muito mais coisas para fazer do que eu já fiz. E você fala muito sobre isso, o conceito de ter todo mundo junto resolvendo o problema, não só a gente. O que você falou é respeito pelas coisas que a gente enxerga e não chegar com a solução pronta mesmo porque ela não vai se manter. A solução, nem sempre é o que a gente imagina que tem que ser. Acho que a sua posição e a sua colocação é brilhante em relação a vamos deixar um pouco de lado a nossa moral e entrar na moral deles, tentar vestir esse sapato por mais apertado e desconfortável que ele seja e a com os quais não estamos acostumados. Mas eu acho que é um abre cabeça, é um abre olhos enormes esse papo que a gente teve. Vou te agradecer muitíssimo e te deixo com as últimas palavras.
Nakano – Eu que tenho que agradecer, Paulo. Mas só antes de finalizar, outra situação interessante. Outra coisa que temos mania de achar é que o índio não entende das coisas, a gente meio que menospreza, às vezes, a perspicácia dele. E eles são inteligentíssimos. Então, se você leva uma água tratada e vai ter menos diarreia, a percepção de que isso é muito bom é imediata. Tem coisas que a gente pode levar e não precisa perguntar, ou não precisa fazer uma análise, ah, não, será que na cultura deles vão achar que é ruim? Então vamos fazer o que der, ou fazer o máximo o mais bem feito possível, tentando preservar a cultura, o território, um monte de coisa deles. Obrigado, Paulo, pela oportunidade de dividir um pouquinho, eu sei que é muita coisa pra falar, né? Acho que precisa de vários dias seguidos, com vários papos. Espero que as pessoas tenham ouvido essa conversa. Pelo menos tenha mais curiosidade de conhecer um pouco mais sobre essas culturas, essas regiões. Tem muita coisa dentro do Brasil que a gente não conhece, mas vale a pena conhecer.