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E com a esperança de encontrá-lo saturando satisfatoriamente bem com o cateter nasal, apesar dos pulmões tomados pelo SARS-CoV-2. 
 
Minha mente começa a vagar sobre os acontecimentos dos últimos meses. Formo-me médica na universidade dos meus sonhos desde que me conheço por gente. Não bastasse isso, também sou aprovada na residência de Cirurgia Geral. Começo a residência, e meu primeiro estágio é justamente no Pronto-Socorro Cirúrgico, onde certamente me apaixonei de vez pela arte cirúrgica durante o internato. Traumas chegando de helicóptero, reanimações, intubações difíceis, drenagens torácicas, a primeira apendicectomia feita pelas minhas mãos. Tudo que um projeto de cirurgiã poderia querer.
O mundo orbita de forma perfeita, exatamente como deveria estar. Até que& Chegam notícias da China. Um novo vírus, com altíssimo potencial de infectividade e letalidade. Mas a China é tão longe, não é? Que nada, é logo ali. O número de casos cresce galopantemente, em marcha acelerada rumo ao ocidente. Pronto, o primeiro caso confirmado é no Brasil. No Hospital das Clínicas, onde sou médica residente, tudo muda a todo momento.
Informações desencontradas, escassez de estudos científicos conclusivos, sem mencionar o inacreditavelmente rápido esgotamento dos EPIs. Enfim, a decisão final: o Instituto Central se tornará um grande centro de tratamento da Covid-19. Então, começa uma corrida contra o tempo. Quanto custa – e aqui não se trata apenas de dinheiro, e sim de material humano – para transformar um hospital do dia para a noite? O Instituto Central torna-se “Covidário”, os pacientes de outras especialidades são realocados para os demais prédios do complexo, as férias de todos os colaboradores são suspensas, médicos assistentes e residentes são deslocados de suas funções originais para exercer o trabalho mais urgente: combater a Covid-19. Foi assim que eu vim parar aqui, uma residente de Cirurgia na enfermaria da Infectologia, evoluindo o Sr. J, que me recebe com um olhar desesperançoso e um padrão respiratório sofrível. Não consigo parar de me questionar: que doença é essa? Doença para a qual, aparentemente, não existe remédio eficaz: nos vemos prescrevendo medicamentos diversos, mas, no fundo, tudo que nos resta fazer é torcer para a saturação não cair a ponto de a intubação ser inadiável. Doença para a qual o único meio de prevenção é a medida mais arcaica possível: o isolamento social. Doença que devasta biologicamente alguns dos seus contaminados, e economicamente todos os demais. Doença que, de todos os sintomas possíveis já relatados pela Medicina, apresenta como principal manifestação clínica o que descobrimos ser o pior de todos eles: a solidão. Há tosse, dispneia, coriza, febre. Mas nada, garanto que nada incomoda mais do que a solidão. Solidão que não é só dos pacientes, de modo algum. É também nossa, dos profissionais de saúde que podem a todo momento estar contaminados, correndo grande risco de levar o vírus para casa. A solidão aqui é auto-infligida, em um momento extraordinário em que se afastar é sinônimo de amar, de proteger. E a solidão também não é só dos médicos ou dos pacientes, mas sim generalizada, de um país inteiro, de um planeta inteiro.
 
Quem diria que um vírus colocaria o mundo em quarentena. Que doença é essa?!
A doença da solidão e do medo, é claro. Medo de ter suas vidas nas mãos de pessoas estranhas, das quais só avistam os olhos por trás do face shield, dos óculos, das duas máscaras. Medo de morrer sozinho. Medo de não poder se despedir. Medo de mal ter um enterro digno. Cinco minutos a mais no leito do doente, perguntando mais a fundo sobre seus sintomas do último dia, e todos esses sentimentos emergem. Tento aumentar a oferta de oxigênio para o Sr. J, mas isso se mostra ineficiente. Preparo os materiais para a intubação, solicito vaga na UTI.
 
Nada mais será o mesmo depois desses dias nebulosos, apesar do céu claro jamais visto na cidade de São Paulo, decorrente da diminuição dos níveis de poluição. Revemos nossa maneira de nos relacionar como médicos e como pessoas. Revemos nossa relação com o meio ambiente, com a comida, com o espaço público, com nossa própria casa, com o mundo e, principalmente, com nós mesmos. À noite, antes de dormir, peço por todos nós. Que vençamos, seja lá o que isso quer dizer a essa altura do caos. Que tudo volte ao normal, por mais que saibamos que o conceito de “normal” já é passado. Mas peço, acima de qualquer coisa, pelo Sr. J, que volte logo da UTI, que sua alta seja iminente, e que o medo e a solidão passem muito em breve. No dia seguinte, me paramento toda para entrar no quarto isolado da Sra. F, o que faço todas as manhãs. 

Fonte: Este artigo foi originalmente publicado na Revista Ser Médico, número 90, de março de 2020.

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