Tempo de leitura: 3 minutos
Paulo Schor -Diretor de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da Unifesp e Professor Chefe do Setor de Óptica Cirúrgica da Escola Paulista de Medicina.

 

Há quase 15 anos visitei o Dr. Harry Sirota, em Chicago. Tratava-se de um optometrista behaviorista (comportamental), conforme me foi passado. Entre outras manobras, ele realizava a refração na periferia da retina, que era refinada com os olhos fechados (isso mesmo, você fechava os olhos e “sentia se era melhor “esse ou esse ). Entremeadas aos testes, havia avaliações de força comparativa entre os braços, o caminhar, etc& tudo focado no equilíbrio corporal. Eu havia sido recentemente operado e tinha o OD programado para emetropia, mantendo astigmatismo miópico no OE. Ele maldisse a escolha o quanto pode, pois antagonizava exatamente o equilíbrio proposto e buscado pela sua terapia. Prescreveu-me um óculos realizado somente na óptica indicada por ele, que era arredondado na casa dos 0,125 D, emetropizando os dois olhos. Não tive tempo de fazer os óculos, continuei aproveitando da minha monovisão (até hoje), mas não esqueço a experiência, e busco cada vez mais a harmonia, o equilíbrio.
A natureza teve sua dezena de milhões de anos para aperfeiçoar o homem. Irregularidades e maus funcionamentos extremos foram suavizados. Com muito menos tempo e recursos, nós, humanos do século XX, usamos truques primitivos para oferecer certa “paz entre os olhos, sem ter de forjar uma anisometropia, ou diferença de ametropia (grau) entre eles, como as artimanhas ópticas vistas nas lentes de contato ou intraoculares multifocais e de foco estendido. Ocorre que nem sempre temos sucesso ou acesso a tais soluções, e daí só nos resta acostumar com o “desajuste controlado”, e lidar com a chamada “neurorresignação , ou seja: dormir com um barulho desses& Nessas situações orientamos o paciente a esperar até que o incômodo melhore, e os benefícios sejam maiores que os incômodos. É exatamente sobre esse “ruído incômodo que quero escrever nesta edição.
No cinema contemporâneo vemos um bom exemplo de como lidar com um “barulho social. No filme “Me chame pelo seu nome , do italiano Luca Guadagnino, não somente a beleza dos personagens, o cuidado com a música, fotografia e ambientação, mas o acolhimento familiar (inesperado) direcionam e não deixam que o foco num preconceito tão arraigado como a homossexualidade se perca nem se deteriore. Nossa visão é presenteada com o balanço de sombras e cores, e ajuda muito a seguir a jornada junto aos personagens que crescem e sofrem (ou vice-versa). Assistimos cenas fortes, extremas até certo ponto, se descontextualizadas, mas no ambiente lentamente criado são absolutamente necessárias e justificadas.
E em se tratando de luz e sombras, o mestre Sebastiao Salgado produz fotos de paisagens, animais, cenas e tragédias. Sua Serra Pelada, suja, insalubre, violenta, ruidosa, mortal, vira um formigueiro longínquo, esteticamente tratado, com tons de cinza programados para cada bastonete de nossa retina. Uma infinidade de pontos que retira o ruído dos dados isolados. Alvo de críticas importantes, retrata pela primeira vez os índios Mentawai tendo uma lona ao fundo, considerada por alguns como um “cenário construído. Independente disso, o resultado é violentamente bonito. Tudo nele é agradável aos olhos, que abrem espaço para a crítica social adjacente (ou predominante). Não há disfarce, mas fluidez e elegância nos contrastes (literalmente) exacerbados.
De outra geração, o fenômeno Vik Muniz, que tive o prazer de encontrar em Cambridge e ouvir suas histórias fantásticas em Kendall Square, não economiza em dissonâncias. Sua arte é de um exímio designer, que mexe com o que encontra pela frente e produz sensações visuais. No seu caso, o contraste e ruído é bem mais explícito, como no “Lixo Extraordinário , onde recolhe dejetos e monta gigantescos afrescos fotografados de 10 metros de altura para produzir belíssimas imagens, com toda a mensagem social possível. É um politismo moderníssimo, que visto de perto machuca, afasta, nos obriga a desviar os olhos, mas tomando a distância crítica nos permite descansar os cones (tudo é muito colorido) e deixar aflorar a revolta pela iniquidade e pobreza extrema ainda presentes no nosso país.
A fotografia toca particularmente os oftalmologistas, por motivos óbvios. O olho comparado a uma máquina fotográfica, tendo a córnea como sua primeira lente, uma íris (e sua pupila) controladora da luminosidade e profundidade de foco, o cristalino que se move (um conjunto de lentes telescópicas) e a retina como o filme (hoje CCD). Seu produto (a visão) hoje exposto em telas ou impresso com “alta” definição em papel, plástico, tecido, canecas, etc. Lidamos com esse universo todo dia, e mesmo assim (ou talvez por isso mesmo), perdemos de foco que estamos tratando de um sentimento, a própria visão.
Técnicas diagnósticas e terapêuticas são somente ferramentas para devolver a homeostase (harmonia) entre os olhos e o cérebro. Somos valorizados pela qualidade de vida relacionada à visão, percebida (ou não) pelos pacientes. Nesse sentido poderemos experimentar, ir além dos limites anatômicos e discriminativos (como o menor ângulo visual) e nos aproximar da arte, como forma de entender esse sentido.

Fonte: Universo Visual

Compartilhe esse post