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Há 3 anos escrevia sobre Transparência e Privacidade para essa coluna (/secao/noticia/ImprimirMateria.aspx?matId=257). Na época argumentamos sobre uma lei que supostamente controlaria a liberdade de pesquisar e aumentaria o poder controlador sobre as pessoas, a LGPD.
Hoje já implementada, a LEI Nº 13.709, DE 14 DE AGOSTO DE 2018 pode ser compreendida e conseguimos discorrer sobre sua aplicação e consequências, mote perseguido também pela advogada e especialista em sistemas de saúde, que junto comigo assina essa série de artigos, Renata Rothbarth.
O entendimento dessa regulação está ligada ao pressuposto de que os dados em saúde crescem exponencialmente, estão dispersos e são altamente sensíveis, causando dano ao serem mal utilizados.
Também entendemos que a continuidade de modelos tradicionais de assistência à saúde, com anotações e ações isoladas, parece cada vez mais improvável pela ação disruptiva e integração de novas tecnologias.
Seja na indústria de life sciences, para condução de pesquisas clínicas e desenvolvimento de novos medicamentos, terapias e produtos ou na própria prestação de serviços, é certo que ferramentas baseadas em dados, ou digitais, como blockchain, robótica, inteligência artificial, internet das coisas, big data e outras podem contribuir para melhoria da saúde e bem-estar dos indivíduos e já fazem parte da rotina de todas as pessoas.
Sob o aspecto de política pública, a organização e manipulação de informações binárias podem ser utilizadas com o intuito de gerir e mapear as demandas da sociedade ou identificar tendências epidemiológicas e indicadores pertinentes de atenção à saúde. Por consequência, podem auxiliar na alocação e gestão adequada de recursos públicos com base em dados de vida real e métodos científicos.
De forma individualizada, essas tecnologias já permitem ao paciente uma interação ativa e próxima com seus profissionais de saúde, estabelecendo uma troca de informações em tempo real a respeito de sintomas, comportamentos, rotinas e outras respostas clínicas, estimulando o autocuidado. É certo que essas afirmações acima são potencialidades, em implementação por alguns centros, porém longe de serem realidade, ainda, na maioria do território brasileiro.
Em complementar, podem possibilitar a superação de barreiras financeiras e geográficas, criando uma jornada mais eficiente, transparente e acessível para o paciente.
A informatização de processos administrativos e clínicos ainda é capaz de aumentar a qualidade da assistência à saúde, especialmente se acompanhada de medidas de segurança para proteger o imenso volume de dados compartilhados nas mais variadas ações (pesquisa, prevenção, diagnóstico, tratamento, monitoramento e reabilitação em saúde). É o caso, por exemplo, dos prontuários de pacientes, que quando adequadamente geridos, podem resultar na integração e centralização de dados que acabam sendo fragmentados em diferentes instituições e quase inacessíveis ao seu respectivo titular.
Nesse sentido temos um projeto incubado que consiste em agrupar, pela semelhança de padrões, imagens do mesmo paciente, permitindo uma auto-organização dos exames, sem a necessidade de indexação via CPF, número SUS ou outras chaves, nem sempre padronizadas.
Em linha com as tendências internacionais de digitalização dos sistemas de saúde públicos e privados, o Ministério da Saúde criou a Rede Nacional de Dados de Saúde (RNDS), com o objetivo de viabilizar a interoperabilidade de dados de saúde entre todos os atores do ecossistema – pacientes, gestores, farmácias, serviços e profissionais de saúde, laboratórios, operadoras de plano de saúde, redes de atenção, entre outras. A iniciativa também tem o potencial de criar mecanismos de governança para autorizar ou limitar acessos, ou mesmo compartilhar dados de acordo com as preferências decididas pelo seu titular.
Instituída pela Portaria GM/MS nº 1.434/2020, é considerada uma peça fundamental na estratégia de saúde digital brasileira e está baseada em diretrizes estabelecidas pela Política Nacional de Informática e Informações em Saúde, pela Estratégia da e-Saúde, pelo Plano de Ação, Monitoramento e Avaliação de Saúde Digital para o Brasil, e, mais recentemente, pela Estratégia de Saúde Digital para o Brasil 2020-2028.
A longo prazo, a RNDS deve se constituir de forma ampla como um repositório de armazenamento dos dados de saúde dos cidadãos, contando com a tecnologia de blockchain para endereçar questões de segurança, desempenho, acesso e escalabilidade. Isso porque, até 2028, o Ministério da Saúde pretende consolidar essa plataforma digital como uma ferramenta de inovação, informação e cuidado em saúde para todo o Brasil, beneficiando usuários, cidadãos, pacientes, comunidades, gestores, profissionais e organizações de saúde.
Em complemento, o Congresso Nacional atualmente discute o Projeto de Lei n° 3814/2020, que dispõe sobre a digitalização e a utilização de sistemas informatizados para a guarda, o armazenamento e o manuseio de prontuário de paciente, para obrigar o Sistema Único de Saúde a manter plataforma digital única com informações de saúde dos pacientes.
Por outro lado, à medida que a tecnologia se torna indispensável, ameaças cibernéticas tendem a aumentar na mesma proporção, potencialmente comprometendo a privacidade dos indivíduos. Vulnerabilidades na área da saúde incluem, por exemplo, vazamento ou sequestro de dados de pacientes e/ou de sistemas de gestão hospitalar, manipulação de prontuários eletrônicos ou algoritmos utilizados para tomada de decisão clínica e invasão por hackers de dispositivos médicos conectados em IoT – dada a grande quantidade de equipamentos interconectados no ambiente intra e extra-hospitalar.
Todos devem se recordar da invasão de um grande laboratório em São Paulo, há poucos meses, o que despertou e desesperou profissionais do setor. Os estabelecimentos e organizações de saúde devem hoje se perguntar como, e não se, seus departamentos de tecnologia da informação vão crescer em ritmo acelerado. Se de forma autônoma, como “speed boats ou “spin offs , ou se como parte da organização, com financiamento adequado capaz de atrair cérebros ainda escassos e caros, mas altamente necessários.
Logo, esse processo de transformação da saúde analógica em saúde digital possui o desafio de preservação da governança, autenticidade, confidencialidade e segurança dessa enorme quantidade de informações, demandando atenção de todas as instâncias no entendimento e cumprimento não só da Lei Geral de Proteção de Dados, como também de outras normas específicas do setor.
Cabe ao poder público organizar o sistema na ótica do cidadão, cuidando de todas as pessoas, porém preservando o indivíduo, suas informações e privacidade. Essa equação nem sempre é simples e nem bem entendida. Há de se cuidar para não pesar a mão na autonomia e acabar sem controle algum, ou no sentido oposto, ser tão rígido a ponto de não contemplar diferenças e necessidades.

Fonte: Revista Universo Visual

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