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Desmistificando o controle da progressão da miopia 

 

No podcast especial promovido pela Universo Visual, realizado na plataforma UV Podcast, que discutiu o tema Desmistificando o controle da progressão da miopia”, o oftalmologista Paulo Schor entrevistou a médica Célia Regina Nakanami, coordenadora do Núcleo de Oftalmopediatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp/EPM) e Chefe do Setor de Baixa Visão e Reabilitação Visual da Unifesp/EPM. Esse episódio foi um oferecimento das Lentes Essilor/ Stellest. Confira, abaixo, a entrevista completa com a especialista. 

  

Paulo Schor – Hoje vamos abordar um assunto médico de importância mundial, com uma pessoa muito querida que eu conheço há algumas décadas. Nós estudamos juntos na pós-graduação da Escola Paulista de Medicina da Unifesp. A professora Célia Nakanami, Celinha, como carinhosamente a chamamos, fez mestrado, doutorado na EPM, coordena o Núcleo de Oftalmologia Pediátrica da própria escola, é chefe do Setor de Baixa Visão, foi presidente da Sociedade Brasileira de Oftalmologia Pediátrica, ficou na London School of Hygiene & Tropical Medicine, em Londres, e tem todas as credenciais para falar sobre o tema miopia, especificamente o controle da miopia em crianças, um assunto muito debatido atualmente. 

Isso porque temos visto um aumento expressivo de crianças que têm ficado cada vez mais míopes, principalmente em países orientais e de alta renda. Esse é um problema que parece ser uma epidemia local e não uma pandemia, não é algo que seja visto no Brasil atualmente, mas é muito importante conhecermos as bases, quais são as possibilidades de tratamento e termos ferramentas também para atuarmos nesses casos. Só iniciando a conversa, Célia, ontem eu estava falando com o Rubens Belfort, que acabou de voltar da Amazônia, e ele estava comentando que na Amazônia as pessoas ficam muito cedo présbitas e a hipermetropia delas se apresenta muito precocemente. E ele estava falando “eu espero que a epidemia de miopia chegue logo na Amazônia, porque da gente pode parar de dar óculos para os ribeirinhos.” Celinha, prazer conversar com você. 

Célia Regina Nakanami Prazer Paulo, é uma grande honra estar aqui com você. Espero que realmente a gente não viva esses momentos de epidemia, porque isso custa caro, e é também um dos aspectos importantes pelo qual a saúde pública desses países sofre com uma prevalência alta. 

 

SchorAcho que poderíamos começar por aí. De vez em quando temos dificuldade de ampliar um pouco nosso foco do um para muitos, de uma pessoa para muitas pessoas. E você tem uma trajetória, principalmente pela passagem na London School, de ir para o lado da epidemiologia. Como é que você vê isso hoje na prática das pessoas? Você acha que as pessoas que atendem um caso pensam que tem mais gente envolvida nessa conversa? 

Celia É interessante, porque, como oftalmologista no Brasil, a gente tem várias realidades. Quando você faz um trabalho em saúde pública, e em escolas públicas, que é onde está a grande maioria dos escolares, estamos falando da miopia escolar juvenil, essa que acontece na infância, não é aquela criança que já nasceu com miopia alta, vemos que as características dessa miopia escolar têm um aumento. Depois, fisiologicamente, ela tem a diminuição do crescimento ocular para conseguir o estado de emetropização, digamos assim. Das características dessa miopia que aumenta na infância, podemos observar que outros fatores, que não os genéticos, interferem para ter esse aumento. Fatores ambientais muito característicos, então o fato de estar no ambiente urbano, de estar menos exposto ao brilho da luz solar, além de muita atividade de perto.  

Assim, podemos falar que não é uma relação de causa e efeito, é uma correlação, porque os trabalhos são conflitantes quanto aos resultados. Os maiores estudiosos não conseguem bater o martelo e falar olha, é estatisticamente significante”, não, depende de uma série de questões, e aí o que acontece? Onde que a miopia aumenta? Onde você vê maior prevalência e incidência? Acontece em quem está em um ambiente urbano, faz uso de telas, condições socioeconômicas mais favoráveis, nível educacional elevado. E essas crianças, naturalmente, passam menos tempo em atividades ao ar livre.  Dessa maneira, o que a gente observa é que essa realidade de aumento de miopia, nós vemos dentro do consultório particular; quando você vai para escolas públicas, faz um mutirão, você nota lá menos de 10%, 15% no máximo. Se você verifica valores mais altos do que esse no Brasil é porque ou você está dentro de uma escola privada ou você tem viés de amostra, e é preciso tomar muito cuidado. 

Portanto, essa realidade está em condições socioeconômicas mais elevadas. Junto com o Rubens Belfort, fizemos um trabalho há uns três anos em uma cidade em Rondônia e lá tinha a parte urbana e a parte rural. Claro, dez mil habitantes, mas tinha os rurais e os urbanos, e nas escolas rurais a criançada com um celular, mas de brincadeira, de joguinho, e observamos uma prevalência muito baixa de miopia. Nós não temos ainda esses níveis altos que verificamos no leste da Ásia, na Ásia Oriental, Singapura, Hong Kong, China, Japão, Coreia, porque nesses lugares também a genética não mudou, a composição genética é a mesma, o que mudou foi o nível educacional elevadíssimo. Essas crianças têm uma demanda muito grande, um estresse de competição, elas estudam em tempo integral, não é como no sistema ocidental, que é meio a meio.  E a gente vê que tudo isso teve uma influência em aumentar a miopia. Realmente aqui no Brasil a gente não vive uma epidemia, acredito que estamos longe disso, entretanto, existe uma tendência temporal de aumentar. 

  

SchorO que você coloca é muito interessante de ouvir pelo viés científico. Acho que esses números epidemiológicos, que é o que eu estava de verdade querendo te cutucar para conversarmos, é ter um olhar para vários, e creio que é uma consciência psíquica importante e que de vez em quando a gente perde quando está na rotina do dia a dia. Em relação à miopia especificamente, algum tempo atrás eu tinha escrito uma coisa que um professor citou, que équando eu crescer, quero ser míope”; eu tinha escrito isso, pensando que não deve ser tão ruim, porque eu operei um olho e o outro não, e eu gosto do meu olho, que é ainda com um equivalente esférico miópico, porque eu tenho mais de 45 anos, sou présbita e o mundo é para perto. O problema é que a gente não controla isso quando há uma progressão da miopia, mas é legal ser um pouco míope. Se a gente pudesse escolher ter duas dioptrias de miopia em um dos olhos para a vida toda, eu escolheria. Eu acharia ótimo se tivesse uma mágica dessas, mas não é assim. A previsibilidade e a estabilidade não se fazem desse jeito.  

E eu queria entrar com você um pouco na história da definição da miopia.  A miopia se define com pessoas que têm mais do que 0,5 grau e aí quero que você me corrija. Tem um outro limite, que são 6 dioptrias, então o alto míope são 6 dioptrias. E eu vou citar o nosso amigo Mauro Campos, que fala muito sobre as miopias patológicas. No último SIMASP, ele falou de novo sobre isso, super importante, ele fala com muita propriedade dos problemas reais que a pessoa tem quando chega em níveis muito grandes de miopia, e não é um problema de estética, de óculos, lentes de contato, nada disso, mas a rotura de coroide, o descolamento de retina, inúmeros outros problemas maculares por conta da alta miopia. Então, primeiro, vamos tentar falar qual é o nível do problema, quando é óptico e quando passa a ser patológico? 

Célia Paulo, eu vou só completar aquela primeira fala que se os trabalhos fossem representativos da nossa população, ou seja, com metodologias de estudos populacionais, aí sim, isso seria muito importante. Um problema que temos é que nossos trabalhos são só pontuais e não refletem exatamente as porcentagens, mas sabemos que o índice é baixo. Outra coisa também que é importante, apesar de ser baixo, como eu falei, nos consultórios particulares, encontramos essas crianças, e essas crianças em progressão têm um perfil de evolução muito parecido com esses de países de alta renda e asiáticos, difíceis de controlar. Então, o fator ambiental é muito importante, porque a gente vai chegar lá na frente tendo que controlar isso. Agora, voltando ao que você está falando, quando eu crescer, eu quero ser míope”, eu não sei se isso hoje é adequado, porque estimula a criança a ter esse tipo de atividade e a ser top” intelectualmente, mas causa um problema estrutural no olho muito grave. 

Isso porque quanto mais cedo a criança se torna míope a idade precoce é considerada de três a seis anos, outros consideram cinco a oito anos, mas em geral, de três a seis anos maior é a taxa de progressão, mais rápida é a progressão e menor é a sua chance de estabilizar no final da adolescência e grandes chances dela ter alta miopia ainda no final da infância. E é o que você falou, a miopia patológica. No começo se perguntava se a alta miopia teria as mesmas características, vai ter sim, é uma alta miopia, e essas comorbidades que você está falando, mais degeneração macular miópica, mais glaucoma, mais catarata, tudo isso leva a uma perda visual irreversível. Portanto, esse é o grande problema, aumentase o número de míopes, mas 10% serão alto míopes e, com isso, aumenta-se a taxa de cegueira e baixa visão.  

E quando a gente fala em miopia, tem um paper do Instituto Internacional de Miopia, e lá estão todos os grupos de trabalho em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) dá todo um suporte, e esse Instituto chancela o que tem de evidência científica em relação à miopia. Então, considera-se na classificação de 0,5 dioptria a 3 uma miopia baixa; de 3 até 6 uma miopia moderada; e 6 ou mais uma alta miopia. Antes, considerava-se 5, legal porque também enfatiza a prémiopia. Dessa forma, a prémiopia seria +0,75 a -0,5 em crianças que têm fatores de risco. E hoje a gente sabe que é possível tratar a prémiopia, é uma situação que está bem definida, e embora esse paper fale que não é exigida a refração sob cicloplegia, mas uma ausência de acomodação, claro que a ausência de acomodação só vamos conseguir plenamente com uma cicloplegia, portanto, no Brasil a gente faz sob cicloplegia e ponto final. Não se aceita fora disso. 

  

SchorEu acho isso fundamental, quando atendemos criança na universidade fazemos até por uma recomendação que vem de algumas décadas ou séculos, vamos dizer assim. Acho que agora podemos entrar um pouco no controle da miopia, já tendo contextualizado a história. Se pudéssemos conseguir o que a gente quer, do quando eu crescer, eu quero ser míope”, mas é o que você acabou de falar, que não se consegue necessariamente tudo o que se quer; se conseguíssemos, quando crescer, ser míopes, legal, só que se formos um pouco míopes agora, isso quer dizer que vamos ser incontrolavelmente míopes no futuro, e tem uma chance grande disso acontecer. Mas queria voltar um pouquinho em uma história que eu acho muito interessante. Começa provavelmente antes disso, pelo menos tem relatos desde 1977, quando dois caras de Harvard começaram a publicar os artigos sobre deprivação, mostrando que a gente tem deficiência no córtex, na via occipital de condução, por isso que aparece ambliopia. 

Mas eles mostraram em outra série que quando você depriva olhos de visão muito cedo de mamíferos, macacos, e de aves também, você tem crescimento ocular, isso em 1977; e em 1987, outro trabalho genial também mostra que você consegue fazer crescimentos localizados no olho. Então, se você colocar mais luz em uma parte do olho, ele não cresce, e quando você depriva a outra parte, ele cresce mais. E quando eu estava em Boston, em 1995, conheci um pesquisador fantástico também, que se chama David Troilo, que é um pouco dos continuadores dessas linhas. O Troilo trabalhou muito tempo com macacos e os trabalhos dele mostram coisas fantásticas, muito profundas, ele continua até hoje publicando.  

Tem trabalho de 2020 dizendo do tempo de ação dessas oclusões e que se você desocluir muito cedo, perde um pouco mais do efeito, portanto teria que começar a tratar mais cedo, fazendo exatamente coro com o que você está falando. E eu estou trazendo isso porque eu acho que devemos nos ancorar na ciência e essas publicações, Nature, Science, a gente tende a respeitar. E aí queria que você comentasse um pouco isso em relação à pesquisa mais básica, porque a gente também está tentando fazer alguma coisa na EPM com controle de alongamento ocular, porque no laboratório que eu coordeno, ainda trabalhamos com ceratocone, com ectasia e com o crosslinking, que é um processo que não é muito diferente do controle do colágeno escleral, que é onde, na verdade, acreditamos que vai ter o efeito do alongamento ocular, e alguns agentes que induzem crosslinking na córnea induzem na esclera, então quer falar um pouquinho disso? 

 Célia Paulo, esse assunto é maravilhoso, porque esse autor começou a ver ambliopia e de repente no mesmo trabalho começou a ver outras coisas, então é um trabalho que tem várias informações. As pesquisas de ciência básica ajudaram a entender a etiopatogenia dessa miopia e, inclusive, a nortear os tratamentos, que são baseados nisso. Já se sabia de muita coisa, e quando eu comecei a estudar miopia, tive que ir nesses trabalhos, e quando a gente vai ver, a córnea e esclera são as mesmas. É muito bacana e tudo começou lá atrás; em um desses trabalhos, quando fizeram a fotoablação da fóvea, viram que não era a fóvea que determina o crescimento guiado, o crescimento é guiado por luz e, fotoablando a fóvea, continua crescendo o olho, então isso também foi um trabalho que, junto com os outros, consegue explicar em parte o mecanismo.  

E aí entra, para completar tudo o que a gente está falando, vários mecanismos, não é um só, é a luz incidindo na retina até alterações esclerais que fazem a suscetibilidade de alongar o olho de forma axial, que é o principal no mecanismo que faz a miopia de caráter axial, portanto são vários os mecanismos. Isso deflagra sinais, transmissões de um lugar para outros, do epitélio pigmentário até chegando lá na esclera e coroide. Achava-se que era só esclera, mas não tem um afinamento da coroide, tem alterações na vasculatura da coroide, tem alterações na membrana de Bruch e tudo isso é por conta dessas cascatas de sinalizações. E aí liberam-se neurotransmissores e a gente estava falando que o principal lá atrás na retina é a dopamina, que inibe esse alongamento, esse crescimento axial. É muito fácil falar, mas isso envolve vários mecanismos de receptores, dessa forma sabemos que tem mecanismo muscarinérgico, que são os receptores muscarínicos, tem os dopaminérgicos, gabaérgicos, e a gente sabe que tem o ciclo circadiano, que também está envolvido nisso.  

Por isso que eu falo, é muita coisa, esses mecanismos de cascatas de sinalizações estão suscetíveis também à influência genética e o ambiente também influencia a genética, a epigenética, fazendo com que haja uma produção de uma proteína lá na esclera, que vai remodelar a matriz extracelular e a esclera, e aí produz uma outra, de transcrição de uma série de transdiferenciação e, por incrível que pareça, a quantidade de luz influencia geneticamente também, porque tem genes que são suscetíveis ao defocus. Esses dias eu estava estudando hipóxia escleral e vi que tem um mecanismo também fazendo isso, tanta coisa muito complexa, mas de uma forma simples, a luz deflagra essa cascata de sinalizações, então remodela-se um tipo de colágeno mais distensível e isso faz com que o olho fique mais alongado. E, como eu falei, não é só na esclera, vai para a coroide, para a membrana de Bruch e isso aumenta e faz dar a miopia. Tudo isso deveria ser regulado, mas os fatores ambientais a maior ou menor disposição faz com que isso tenha uma alteração. 

  

Schor Já pegando de cara a história do tratamento, então quer dizer que se a gente jogar mais luz no olho como um todo, vamos conseguir que ele tenha uma regulação um pouco melhor? E eu entendo que um pouco daí vem por causa das lentes também, que é um pouco do que a gente vai falar agora, que funcionam, pelas patentes que temos disponíveis, com anéis concêntricos relativamente parecidos com os anéis concêntricos das lentes intraoculares difrativas, que muita gente conhece. Mas como você muito bem falou, a fóvea não é o gatilho e, provavelmente, a região parafoveal também não é o gatilho para parar de aumentar o olho, dessa forma, não adianta botar lente difrativa dentro do olho achando que vai ser o mesmo efeito de espalhamento de luz numa área enorme dentro do globo ocular. Mas essa área enorme de espalhamento, que vem a partir das lentes de óculos que se proponha a controlar o aumento da miopia, joga mais luz dentro do olho e um aumento da atividade ao ar livre joga mais luz dentro do olho. Então, é por aí o pensamento do controle óptico da miopia? jogar mais luz espalhada dentro do olho? 

Célia Olha, nesses modelos experimentais animais, observou-se isso há muito tempo, e que naquelas cascatas de sinalizações, viu-se que aquilo é deflagrado, como eu falei, pela luz, e o que acontece para que o olho cresça? Na periferia da retina, a imagem cairia atrás da retina e não na retina. E isso a gente chama de defocus hipermetrópico. Isso deflagra aquela cascata de sinalizações e que ao alongamento, que a gente vê nos modelos animais, cria um defocus miópico, ou seja, uma imagem caindo na periferia da retina, isso é um sinal para diminuir, desacelerar esse crescimento, esse alongamento axial; em modelos animais consegue-se um efeito reverso. O olho pode até encurtar naqueles pintinhos, musaranhos, que são pequenininhos, ainda estão em desenvolvimento. Em criança, fala-se que na parte periférica, o plano focal não coincide com a imagem caindo nessa periferia, então a curva na periferia seria diferente. Portanto, isso também predispõe já a cair na periferia uma imagem mais atrás 

Consegue-se, então, através de mudar esse defocus óptico, controlar mais esse alongamento anormal do olho, e aí entramos nas tecnologias. Achava-se que tudo isso era por problemas de acomodação, uma acomodação insuficiente, um atraso de acomodação, que levaria aquele esforço para focar a imagem na periferia, levaria a uma distensão, um alongamento do olho, mas não, é esse defocus, e então, se eu proporcionar, através de um efeito óptico, um defocus miópico, eu consigo desacelerar esse processo. Essas tecnologias de lentes oftálmicas têm toda uma evolução quando se pensava que era acomodação, diminuir a demanda acomodativa por uma lente, aí começou-se, então, a estudar bifocais, multifocais com adição de lentes positivas, e observou-se que os resultados são muito ruins, a eficácia é muito baixa.  

Mas quando se aumenta o poder de adição ao poder positivo um efeito melhor, e nessa evolução, verificou-se que se fizer esse poder positivo na periferia, não só em infra, na parte de baixo, mas em toda a lente, temos um resultado melhor. Portanto, tem tecnologia que faz uma superfície de defocus miópico na frente da retina que, formando um anel na média periferia da lente e no centro, corrige a visão simples da miopia. Assim, não tem prejuízo da visão para longe, e tem as microlentes dispostas em vários anéis e altamente asféricas e essa asfericidade, quanto maior, viu-se que se cria um volume maior daquele defocus, cria-se um volume maior de luz não focada na frente da retina. O modelo animal também mostra isso, quanto maior a quantidade de sinais, maior é a eficácia para controlar aquele defocus hipermetrópico 

  

Schor – A sua explicação é fantástica! Essa baixa qualidade de visão, que eu acho que vale a pena estressar, que não é que ele não enxerga 20/20, ele vê 20/20. Mas ele fala assim “eu vejo 20/20, mas é um pouco esquisito.” Em dois dias, na hora que ele entender o da catarata, que para longe ele enxerga e para perto, que ele não enxergava, também enxerga, esse mais ou menos 20/20 vira um 20/10 em termos de felicidade do paciente. Você vê a mesma coisa nessas lentes? A qualidade é um pouco pior, mas no quesito risco-benefício ou no custo-benefício, o benefício é tão maior que vale a pena? 

Célia – Bom, eu não tenho experiência ainda com aquela tecnologia das múltiplas lentes em um segmento da média periferia, que é a tecnologia DIMS, eu só estou com a experiência com essa tecnologia dos anéis, onze anéis em que cada um concentra essas microlentes contíguas. E o que eu vejo pelo paper é que 90% se adaptaram em três dias e 100% em uma semana. E como eu falei, eu tento medir a visão do centro para a periferia, 20°, 30° ou até mais. Nenhuma criança teve menos do que 20/20 e J1 para perto, uma distância normal. A gente sabe dos papers que, utilizando microlentes com essas tecnologias de criar o defocus miópico, podemos realmente baixar meia linha de visão em baixo contraste, portanto, não é nada que irá prejudicar, e em poucos dias, como você falou, é perfeitamente adaptável, a gente vê crianças com essas lentes de contato multifocais, que têm o mesmo princípio do defocus miópico, em dois a três dias elas já estão adaptadas. Realmente não prejudica no olhar em todos os ângulos de visão. A tecnologia DIMS sim, parece que ela dá um pouquinho mais de percepção desse borramento na média periferia, mas nada que irá prejudicar a luz. 

  

Schor E em qual momento a gente deve se preocupar? O que a gente deve fazer? Quais são os números e quais são as considerações clínicas que você utiliza nos seus pacientes? 

Celia Bom, eu acho que aí vai uma receita de desde o começo: queixa, os antecedentes mórbidos familiares, que são importantíssimos, os hábitos comportamentais e ambientais da criança. Criança que tem pais míopes e, principalmente, alta miopia na família, isso aumenta bastante a chance da criança ser míope. Pai ou mãe, aumenta de duas a três vezes; pai e mãe, de cinco a seis vezes, existem trabalhos até falando em oito vezes, e são aquelas que a gente tem que ficar de olho. A idade da criança também, se ela tem uma hipermetropia em relação ao que ela teria baixa para a idade, eu já fico de olho. Tem os trabalhos multicêntricos que mostram criança com seis anos com 0,75 de esférico positivo, com 0,5, crianças com grau esférico plano, então você tem que verificar os antecedentes, principalmente os hábitos dessa criança, se ela passa menos tempo em ambiente ao ar livre, se fica 13 horas no celular, tempo prolongado, contínuo, sem dar intervalos em atividades de perto, distância muito curta também, menos de 30 cm. Tudo isso são fatores de risco.  

E aí a gente vai para o exame oftalmológico, faz a refração sob cicloplegia, sempre fazer uma ceratometria para evitar descartar uma ectasia, um cone, um pré-cone que seja, que tenha uma curvatura aumentada da córnea que explique a miopia ou a progressão.  Cristalino também é importante, para a gente verificar se não tem nenhuma opacidade e, então, a gente coloca tudo num pesar e estratifica em alto, médio e baixo risco ou de iniciar miopia e aquelas que têm progressão ou uma progressão maior. Se tiver já critérios de tratamento nesse contexto todo, 0,5 dioptria ou mais de miopia por ano em equivalente esférico caracteriza, e o diâmetro, em geral na primeira consulta a gente não faz, a não ser que tenham muitos ingredientes, se já estiver em uma miopia importante, e pede uma biometria óptica, padrão ouro é biometria óptica e refração sob cicloplegia. E aí vem aquela questão, tem lugar que não vai ter biometria, mas se você tem diagnóstico que está em progressão e é uma progressão importante, um fator de risco alto, é melhor tratar do que ficar esperando biometria, porque se está tendo um aumento nessa idade é porque só pode ser axial. 

  

Schor – E que idade é essa? 

Célia Idade escolar. A gente sabe que ficar míope de três a seis anos é perigoso, ficar míope de cinco a oito anos é perigoso. Os últimos papers chineses mostraram que, com a pandemia, com o confinamento, as crianças de seis a oito anos foram mais suscetíveis em triagens, então a prevalência aumentou muito, aumentou três vezes em crianças de seis anos, duas vezes em crianças de sete anos, um pouco menos em crianças de oito anos. Isso em trabalho sob cicloplegia e sem cicloplegia, então mostra que talvez uma plasticidade aí nessa fase aumenta a suscetibilidade de se tornar mais míope, e os critérios de tratamento são esses. Um diâmetro anteroposterior também anormal para a idade, e tem uns valores que você em todos os trabalhos, eles se repetem, 23,7, 23,8. E a gente observa crianças de cinco, seis, sete anos com 23,8, um valor que você teria lá nos 12, 13 anos, então você tem que ficar de olho nisso.  

Tem curvas para a idade, e isso também varia para crianças asiáticas e crianças ocidentais caucasianas, mas existem curvas de crescimento e também curva de percentil, em que você nota o risco em relação ao tamanho do diâmetro anteroposterior. E a idade, você vê o risco de desenvolver ou não miopia e alta miopia, são curvas que podem também te ajudar a saber se está fora ou dentro da normalidade do crescimento. Lembrar sempre que a taxa de crescimento em quem está em progressão é muito mais alta, é 0,2, 0,3 por ano em milímetros e crianças normais têm um máximo de 0,15 por ano, é isso que tem que ficar de olho. 

  

SchorE como você já começa o tratamento? Qual é o seu approach? Mais conservador e depois adiciona outras medidas se achar que não está funcionando? Como você faz? 

Célia – Antes,tínhamos atropina e atropina aprovada no Brasil para uso de controle da progressão mióptica é 0,01%, mas os papers já mostraram, e a prática também, que 0,01% não funciona naqueles casos que estão em progressão importante, que têm uma dioptria por ano, um crescimento ocular maior do que 0,12, 0,15, e sabemos que essas progressões mais graves precisam de concentrações maiores, é 0,02% ou 0,025% ou até 0,5%. A tendência nossa hoje, dependendo do caso, não é começar com 0,01%; naqueles que estão com uma progressão mais lenta, podemos gerenciar melhor as recomendações preventivas ambientais, e aí podemos, sem dúvida, entrar com 0,01%, sempre da menor concentração para a maior, isso para atropina. Mas o que temos hoje é um leque de opções que não tínhamos até um ano atrás.  

Temos atropina, lente de contato para tratamento com defocus miópico, tem as lentes oftálmicas e a ortoceratologia, que sempre deixamos mais para frente, não é a primeira opção da maioria. Porque é uma lente rígida, a criança dorme com ela, a lente faz um remodelamento da córnea, faz com que haja um controle transitório do tamanho do olho e, no dia seguinte, a criança tira a lente e está com uma visão boa. Esse é o princípio. Mas atualmente temos essas quatro opções como primeiras linhas, e vai depender da eficácia que eu quero naquela estratificação de alto risco, moderado e baixo risco, então eu posso, como médica, ver qual é a melhor terapêutica, depois conversar com a família e com a criança, ver a questão da tolerância, adesão, custo. Essa é uma questão que tem que ser conversada e decidida qual será a melhor opção, porque o tratamento é muito individualizado.   

Eu tenho pacientes que o pai chegou e falou não, eu quero uma lente de contato.” A maioria opta pelo não invasivo e aí depois mantém um controle, esse controle tem que ser feito a cada seis meses, com a refração sobre cicloplegia, biometria óptica pelo menos uma vez por ano, se for possível, e muitas vezes a gente tem o controle da miopia num equivalente esférico, mas quando você vai ver, está crescendo o olho. Isso é um perigo e por isso que a biometria óptica ajuda muito, e se estiver fora de controle dentro daquele parâmetro, e eu quero menos de 0,5 dioptria por ano, se tiver fora disso, a gente muda a estratégia e vai associar a atropina. Se só estava com atropina, aumenta a concentração dela. Não tem muitos papers falando de tratamentos combinados, mas hoje já se abriu muito o leque de opções e, como eu falei, tenho crianças que usam a lente de contato, mas o pai já quer a lente oftálmica para a piscina, para a praia, então é algo que vamos ter muitos resultados interessantes. 

  

Schor Celia, eu acho que a gente cobriu todos os aspectos de um jeito abrangente e profundo, coisa que a gente em geral não consegue, ou a gente fica amplo, superficial ou fica muito profundo e ninguém entende. Acho que conseguimos andar por todos os lugares, deu para ter um panorama geral e prático de onde vem, para onde vai, o que fazer agora, por que fazer, quais as vantagens e desvantagens, o que existe no mercado etc. E eu acredito que temos um pouco essa função mesmo de educar, portanto, gostei muito de bater papo com você, Celinha, tomara que ele se repita mais vezes, obrigado. 

Celia Eu que agradeço, Paulo, eu só sinto que a gente não tenha mais aquela convivência semanal, me faz falta isso, porque a gente tem muito a aprender. Eu acredito que tem que ser uma coisa por aí, a miopia é multifatorial, causas, efeitos, correlações, e ela é mais complexa do que tudo isso, e temos muito a aprender mesmo 

 

 

Fonte: UV Podcast

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