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Foi ao ar no dia 21 de novembro de 2022 a entrevista do Podcast RX – Por dentro da sua próxima receita médica! com o médico, formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Igor Santos, superintendente de Inovação e Dados da FIDI (Fundação Instituto de Diagnóstico por Imagem), que hoje está na cidade do Porto, em Portugal, exercendo também a função de Chief Medical Officer da Ionic Health, uma plataforma de reconhecimento de voz de alto desempenho especializada em saúde. 

Abaixo, publicamos o episódio completo da entrevista que o oftalmologista Paulo Schor fez com Santos. 

 

Paulo Schor – Hoje vou conversar com o Igor Santos, médico formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que fez residência em radiologia em São Paulo, na Unifesp, e hoje está na cidade do Porto, em Portugal. E essa vai ser uma conversa bastante interessante, ele vai contar para nós o que está fazendo lá e por que se interessou em ir para fora do país e como isso nos ajuda a desenhar a saúde das pessoas e o nosso sistema de saúde. Ele é o superintendente de Inovação e Dados da FIDI (Fundação Instituto de Diagnóstico por Imagem) e eu gostaria muito que ele falasse também do que se trata. A gente tem a radiologia e o diagnóstico por imagem como uma grande área de proeminência no Brasil e poucas vezes olhamos para isso, até porque, talvez, a radiologia fica sempre escura no fundo.  

E ele é o Chief Medical Officer de uma empresa chamada Ionic Health, que ele vai explicar para nós. Tem uma plataforma dentro dessa empresa que é a Iara, plataforma de reconhecimento de voz de alto desempenho especializada em saúde, ou seja, ela traduz os dados que o paciente diz para nós em coisas que conseguimos ler e organizar de um jeito que não conseguíamos antigamente. Igor, é um prazer muito grande falar com você, tenho grande admiração por você, nós nos perseguimos muito enquanto você estava aqui no Brasil e essa tua função de analista de dados com viés médico e promotor de saúde é, para mim, muito interessante, e acho que para as pessoas que estão ouvindo também. Obrigado pela sua presença. 

Igor Santos – Legal, Paulo, obrigado pelo convite, é um prazer falar contigo. Eu sei o quanto você sempre foi uma pessoa que lutou para que os médicos vissem o mundo com outras lentes que não só da medicina. E eu lutei muito por isso durante a minha formação, sempre busquei estar perto de pessoas que pensavam diferente, que não “entravam muito na caixa”, e eu sei que você é uma delas, então é bem legal estar conversando com uma pessoa que tem um perfil bastante parecido comigo. 

 

Schor – Obrigado, acho que é mútua a admiração e a gente pode começar por aí. Você foi, no centro acadêmico, o coordenador de educação médica e de políticas públicas, e começou a falar que desde muito cedo se interessou por isso, e está escrito isso no seu currículo. Como é que os estudantes em idade tenra podem olhar de um modo um pouco mais amplo para o desenho da saúde? Isso no fim é participação, é você se sentir como um desenhista, um designer do processo como um todo, e você sacou isso lá atrás. De onde veio esse negócio? Como foi essa experiência? 

Santos – Bom, primeiro eu nem pensava em fazer medicina, eu ia fazer farmácia ou biomedicina ou engenharia da computação. Eu sempre fui leitor da revista Superinteressante e achava muito legal ler que os “cientistas do MIT descobriram isso ou aquilo”, enfim, adorava saber de saúde, lia bula de remédio, mas, ao mesmo tempo, eu gostava muito de tecnologia, então meio que fiquei num limbo ali que eu não sabia se ia fazer medicina, algo mais tecnológico ou algo mais para pesquisa. Mas aí entrei na medicina e acabei me encontrando ali, naquele ambiente bem fervilhante de ideias, e sempre procurei fazer algo a mais que não simplesmente a grade curricular. Eu via que tinha disciplina na filosofia, metafísica, tinha um grupo de pesquisa de células-tronco, e aí fui atrás. Tudo o que eu achava que era algo a mais “fora da caixinha” ou meio que na borda da ciência eu ia atrás e acabava me enfiando nessas coisas.  

Também acabei participando do centro acadêmico, porque eu sempre gostei muito de educação e, então, acabei fazendo muita atividade no centro acadêmico, organizava congresso e gostei muito dessa fase, aprendi muito sobre o SUS, sobre o sistema público de educação na universidade, de entender os meandros, as burocracias, a lógica do SUS, que não é algo que, digamos, a gente tem muito bem introduzido nas faculdades. Eu tive a sorte na UFRN de ter pessoas que, de fato, sabiam de SUS e que fizeram uma excelente introdução. Então foi mais ou menos assim, e depois eu ainda entrei no grupo PET (Programa de Educação Tutorial), que é um programa do governo federal de ensino, pesquisa e extensão, e eu inaugurei o PET de medicina, eu e mais três colegas que passaram na primeira seleção, e esse grupo existe até hoje, tem outros cursos pelo Brasil. E a gente trabalhava as três vertentes, ensino, pesquisa e extensão, dessa forma, acabou que isso também me fez pensar “fora da caixa” em várias atividades. 

 

Schor – A gente tem na Unifesp o PET saúde e eu sou um fã inveterado dele, porque ele abre a cabeça dos estudantes de um jeito impensável, eles vão para a prática e veem os desafios acontecendo e participam desses desafios. Depois eles trazem isso, como você mesmo disse, para a vida e como motivação. E não é só aquela coisa teórica de que é algo que a pessoa vai, eventualmente, ter interesse. E eu acho muito legal você falar de ler a Superinteressante e de ser curioso. A gente fala muito isso para os estudantes que vêm perguntar “como é que eu vou descobrir o que eu gosto?” “Cara, você já sabe o que você gosta, você só precisa, talvez, ouvir ou prestar atenção no que você já faz, que é o que você gosta.” E você, Igor, prestou atenção no que gosta. Eu adoro engenharia, sou fã de coisas além de gente, é uma angústia maior, e eu sei que você é igual também, porque na hora que a gente gosta não só de gente, mas de coisas, temos muito mais para aprender e a minha experiência em entrar na medicina e fazer outras coisas veio muito da minha família, que é toda de médicos. 

Eu flertava com outras profissões, mas fui fazer medicina e acho que dentro dessas profissões maiores a gente tem subvertentes que são muito interessantes e que são profissões que podem nos aprisionar, mas podem nos libertar também, não é? A gente pode virar médico e fazer apenas cirurgia do dedão do pé de criança na Mesopotâmia ou fazer o que você fez, que é análise de dados, startup em Portugal, a partir de uma faculdade de medicina. Mas deixa eu retroceder um pouquinho, você não exerce, mas fez aeronáutica, e depois você se enfiou no SAMU. E no SAMU você foi fazer uma coordenação também, que é muito interessante, ligada à assistência e à emergência, e eu vejo isso muito dos egressos de faculdades de medicina com esse perfil mais aberto, tipo “deixa eu ver como é que acontece mesmo na prática”, aquela coisa da emoção, aquela vivência do estudante no pronto-socorro, que eles adoram. Como é que isso te impactou? Por que você foi para esse caminho? 

Santos – O SAMU acho que era até um fetiche pelo pronto-socorro, pela urgência, tipo salvar vidas mesmo. Tem um certo apelo nesse sentido, então era mais uma atividade extracurricular. Eu comecei a estagiar no SAMU durante a faculdade e foi um estágio que não existia. Eu fui lá e fiquei enchendo a paciência do coordenador do SAMU, até que ele abriu o estágio para alguns alunos entrarem, então foi algo meio que “cavado na mão.” E até juntando o SAMU com aeronáutica, houve esse estágio durante uma parte do curso. Quando eu passei na residência, já tinha bem claro que queria entrar na aeronáutica para justamente assegurar a vaga e poder fazer um pé de meia, mas nunca foi o meu objetivo primário ir para as forças armadas. Havia uma certa curiosidade, eu sou curioso, passei na residência, entrei nas forças armadas e trabalhei no SAMU e nas forças armadas ao mesmo tempo. Eu trabalhava como médico regulador, atendendo ligações, estratificando risco, ver se enviava recursos ou não etc.  

Mas hoje para mim é muito claro o papel da regulação no sistema de saúde, é extremamente importante, principalmente no Brasil, cujos recursos são escassos. Daí muitas vezes a gente fica na dúvida para onde vai prestar socorro, que envolve não apenas a estratificação de risco, mas a confiança que você tem naquela informação que você está recebendo, porque você está falando ali por telefone, né? Hoje, inclusive, talvez até aconteça no SAMU de pedirem para fazer um vídeo. Eu acho que hoje isso é possível e você de fato enxerga melhor a situação. Mas quando eu estava no SAMU, era só o telefone, portanto tínhamos que confiar no que a pessoa estava dizendo, porque, de fato, no SAMU existe trote e ao mesmo tempo pessoas diferentes têm relatos diferentes diante de uma mesma cena.  

Dessa forma, existem muitas variáveis envolvidas nesse atendimento, e você precisa ter um ouvido muito bem treinado até saber de fato o que está acontecendo ali. E dentro da ambulância temos riscos, né? Risco do tráfego, com carros passando em alta velocidade, o próprio risco biológico, porque no SAMU se atende de tudo, facada, afogamento, quedas etc., e acabamos tendo muito contato com risco biológico. Aconteceu de colega minha de turma estar na ambulância do SAMU e lá tem um daqueles descartes para colocar agulha, e ela estava em pé, prestando assistência ao paciente e no movimento da ambulância, ela caiu com a mão dentro de um descartado. Imagina o desespero dela, quantas agulhas de quantas pessoas, de quantas origens diferentes, com doenças diferentes estavam ali. 

E o outro risco é o da segurança física. Você tem ambulância básica e avançada, não tem médico em todas as ambulâncias, porque não tem esse recurso. Ambulância com médico vai aonde tem um risco maior de morte. Normalmente o protocolo é você ligar para a polícia e já sai para ganhar tempo, mas você só pode entrar depois que, de fato, o ambiente estiver seguro. Se for um caso de um incêndio, por exemplo, você só vai depois que o bombeiro controlou o ambiente. E já aconteceu várias vezes de eu chegar em um ambiente de violência por tiro e a polícia ainda não ter chegado e atender a pessoa sem segurança alguma. E você não tem o que fazer, na época eu achava muito legal isso, hoje não, hoje eu tenho um filho, então olho para trás e penso “como é que eu fazia isso?” Mas acho que não passa na cabeça de todo mundo o quanto esse tipo de profissional é demandado, médico, enfermeiro, condutor socorrista, são profissionais extremamente demandados e que vivem numa pressão gigantesca, e não necessariamente é um profissional bem pago que está ali, colocando a vida dele em risco todo os dias. 

 

Schor – Muito legal você falar isso, porque isso contrasta brutalmente com o cuidar de todos e com a escala que você hoje está fazendo na startup, que é cuidar de uma pessoa, e isso é super importante, é mesmo. A gente tem essa visão, que é super privilegiada, de poder cuidar de uma pessoa e entender que ela vai ficar bem. E, ao mesmo tempo, poder fazer o que você está fazendo agora, que é elaborar algoritmo para o mundo, é um barato. Você acha que foi para a radiologia como rebote de ter ficado na linha de frente? O que te atraiu para ir para a radiologia?  

Queria também que você comentasse um pouco disso, porque a gente fala que é diagnóstico por imagem hoje em dia, mas também estou achando que já está um termo ultrapassado. Vocês fazem muito mais do que isso, vocês fazem intervencionismo, fazem análise de dados. A gente tem uma formação, pelo menos em alguns países, que chama Technical Medicine, ou algo assim, que é o médico que faz o uso da tecnologia como a sua maior arma, que é isso, ele faz análise de dados, intervenções, avaliação de imagem e se firma como o que a gente acha que é hoje diagnóstico por imagem. Mas fala um pouquinho disso e sobre a crítica à radiologia como nome. 

Santos – A radiologia acabou como uma mistura de coisas durante o curso. Eu acabei me interessando pela radiologia pela tecnologia em si, porque eu sempre gostei muito de coisas também, então, para mim, todo aquele mundo de usar radiação para gerar uma imagem, usar ressonância magnética e formar a imagem a partir dela, isso para mim sempre foi sensacional. Eu sempre adorei física etc., era muito interessante fazer isso, até me aproximei muito do professor Bráulio lá da UFRN. Ele tinha recém-chegado na faculdade para o Instituto do Cérebro e eu comecei a estudar, inclusive, física de ressonância com ele, justamente para fazer pesquisa com ressonância, ressonância funcional, com métodos morfométricos de ressonância. E eu lembro de aprender física de ressonância ainda durante a faculdade e achei muito interessante, então era uma veia que eu tinha deixado de lado, porque o conteúdo de medicina é gigantesco.  

Com relação à tecnologia, durante seis anos eu sabia todos os processadores da Intel, da AMD, qual era o mais novo, e no final do curso eu não sabia mais nada disso, eu nem tinha contato mais com isso. Então meio que eu resgatei aquela veia tecnológica que tinha sido adormecida e acabei fazendo monitoria, educação médica em radiologia também e eu percebi que gostava da assistência e tudo mais. Mas eu sempre absorvi muito da relação médico-paciente, para mim sempre foi muito pesado, sempre voltava para casa muito tenso, muito desgastado. E eu não conseguia trabalhar bem isso, eu sentia que se eu fosse fazer algo muito em contato com o paciente o tempo todo, em algum momento iria dizer “não, não dá pra mim”, porque eu absorvo muito as coisas. E daí comecei na radiologia. 

De fato, hoje o nome poderia ser outro, porque esse nome acaba limitando. Hoje está muito mais para diagnóstico por imagem do que para radiologia. Em outros lugares radiologia está junto com medicina nuclear, o que faz total sentido, no Brasil está separado, apesar de ter até uma residência, se não me engano, que quis juntar as duas. Mas acho que devia ser uma coisa só, né? Hoje, por exemplo, existem até empresas de termografia, que foi um método que caiu em desuso no passado porque foi comparado para mama e não serviu bem para mama, daí se perdeu no tempo, sendo que hoje, com outros recursos computacionais, temos um bom método de imagem, mas que ainda nenhuma especialidade pegou isso.  

Eu acho que a radiologia até poderia pegar, mas está ali adormecido e existem algumas startups querendo trazer isso à tona. Hoje, quando o pessoal pergunta de futuro da especialidade, sempre tem aquela questão, se vamos fazer algo mais especializado ainda ou se a pessoa vai ter uma visão mais genérica e holística das coisas. Eu vejo muito mais a radiologia como uma especialidade de diagnóstico até informacional, é uma das poucas especialidades que tem tempo de parar. Então eu vou parar, eu vou estudar essa pessoa, vou pegar o prontuário dela, a imagem, pegar a patologia, pegar o exame e vou fazer um diagnóstico. A radiologia tem, portanto, a característica de ser um pouco assim, apesar de não ser exercida na maior parte das vezes dessa maneira. 

Seja porque a gente não tem acesso a todos os dados, porque não temos que ter operabilidade sempre, porque o profissional está sobrecarregado, então ele tem que ler um exame atrás do outro. Mas pensando em um mundo, digamos, em que saímos dessa overdose de exames, que inteligência artificial vai conseguir tirar os exames normais, simples e deixar realmente o radiologista focado em diagnóstico, para você, de fato, resolver a vida daquela pessoa em termos de diagnóstico? Eu vejo que faz muito mais sentido ter essa especialidade holística que está olhando para todos os métodos e é um grande correlacionador de dados. Inclusive, eu ficaria muito feliz se houvesse essa especialidade. Hoje, com a quantidade de dados que a gente tem, temos que ter alguém que analisa, né? Então, não estou dizendo que o médico assistente do paciente não possa analisar, mas ainda não chegamos em uma solução de termos tempo para tudo. 

 

Schor – Eu gostei muito do que você falou. Eu acho que você sumarizou um monte de coisas nessa tua fala e que são muito preciosas. Me vêm na cabeça um monte de coisa, primeiro é a imagem do House, seriado de televisão, em que o médico é um analista de dados. Ele não conversa com o paciente, ele retira dados do paciente, pega informações e as outras pessoas fazem os procedimentos. Ele não é um técnico, ele é um agregador, o agregador médico; talvez precisasse ter uma faculdade de agregadores médicos, seria muito interessante, agregador de dados em saúde, e você vai logo para os dados e já tinha falado disso no SAMU em relação à confiabilidade de dados, que acho que é um negócio que está na tua cabeça há algum tempo.  

E acho que vale também a gente explorar um pouquinho, porque os dados já estavam aí. E a gente trabalhava naquela época, vamos dizer assim, do SAMU, sem nenhuma tecnologia mais potente disponível do que fazer uma análise artesanal e totalmente humanística, personalizar dado por dado, e precisávamos de uma pessoa super especial para fazer isso sob o risco de dar errado, de realmente ter uma consequência trágica para uma pessoa concreta visível lá na frente. E aí você sai um pouco até pessoalmente dessa análise personalizada e pouco efetiva, pouco escalável e até pouco eficaz, para uma análise mais holística, em que você tenta aumentar a confiabilidade dos dados que você obtém, e já com o que você está fazendo mesmo, que é um lugar onde você tem que tratar de dados confiáveis o tempo todo e propor soluções e algoritmos em empresas que estão rodando. Acho que, de verdade, as pessoas tinham que ouvir tua fala mais de uma vez. 

Igor, você se enfiou em desafios de análise de dados e claro que já deixou patente a tua curiosidade e a tua falta de sossego, e esse desassossego, assim como o meu, te leva para lugares os mais diversos possíveis e eu acho que isso é importantíssimo também para as pessoas entenderem que “Yes, You Can”. E não é só você poder, é você precisar, é um dever, é sua obrigação, sim, explorar coisas que você ainda não explorou, então você tem que ser um desassossegado. Não é permitido que um ser humano chegue em um lugar e fale assim “acabei minha faculdade, que bom, não preciso mais estudar nada”. Isso para mim é uma frase tão arcaica, tão fora do tempo, que eu acho que devia ser quase inconstitucional. Mas só para entender um pouco de onde vem a tal da saúde, como é que as pessoas se envolvem nisso, você acha que é hoje um pré-requisito o tal do ler, escrever e programar? A gente deveria ter isso na faculdade médica ou acha que isso ainda não é necessário? Como é a tua visão em relação a isso? 

Santos – Para mim, deveria ser que nem alfabetização, sabe? Não falo nem de faculdade, mas de ensino básico. Lógico que programação, no final das contas, você tem vários níveis disso, desde o nível mais matemática, mais hardcore, até algo mais alto nível. E quando eu falo em baixo e alto nível, é justamente o quanto você programa; por exemplo, quando a gente usa Excel é uma programação de alto nível, certo? Você não sabe o que é que está ali por trás, mas consegue programar, consegue fazer umas fórmulas e tal, isso é programa alto nível; e baixo nível é uma coisa bem mais ciência de foguete do que alto nível, mas programação alto nível é uma nova matemática, no final das contas, da mesma maneira que outras coisas que hoje a gente vê, que é muito mais necessário e que está fazendo falta no mundo, tipo filosofia, ética etc., isso está fazendo uma falta danada no mundo. E deveriam ser disciplinas que a gente vê desde o início.  

O problema com todas essas disciplinas é que, tradicionalmente, elas meio que nasceram de maneira chata. A maior parte de nós, pelo menos das nossas gerações, não sei das gerações mais novas, mas as nossas gerações sempre foram expostas a assuntos mais hards, seja de matemática, física, seja de filosofia e derivações, sempre os assuntos mais hards foram muito chatos, nunca foram aplicados. E hoje, ao contrário, não existe nada que não tenha tecnologia aplicada, nada. Você tem como aprender tudo isso de maneira alto nível, até ética, metodologia científica e filosofia, você tem como aprender a partir disso, porque hoje é o que a gente está vivendo.  

E a gente agora tem todo esse fluxo de rede social, então como é que você aplica ética, o que é a justiça, o que pode e o que não pode. Atualmente, grandes empresas de tecnologia estão precisando de filósofos, dá para imaginar isso? Hoje é uma profissão que está sendo necessária, filósofos e sociólogos, para resolver alguns graves problemas que a gente vive na atualidade com tecnologia e rede social, entendeu? É por isso que eu falo que não é o ato de fazer linguagem de programação. É lógica de programação mesmo, é entender como as coisas se conectam, como funcionam. Programação, na minha visão pelo menos, ensina você a ser um solucionador de problemas.  

 

Schor – Isso que você coloca de ser uma coisa mais lúdica, gameficada, palatável e não só a memorização, é tirar um pouco desse preconceito, um exemplo ótimo é o R, o R nasce como uma ferramenta, quase como um Excel, mas você pode entrar nos meandros do R para programar e programar é como você disse, usar as ferramentas que estão lá dentro, entendendo a lógica. E outra coisa muito importante que você falou é a tal da ética, a ética nos dados. Hoje a gente vive uma era louca de fazer pesquisa de intenção de voto. Isso está sendo questionado do ponto de vista ético até, que é o que você disse, o questionamento ético tem que ser bastante profissionalizado. 

Ética é uma ciência, uma ciência de longa data e a gente tem bases éticas. E não é “eu sou ético e você não é ético”, não é isso, é um pouco mais profundo, é um pouco mais delicado do que isso tudo. Igor, acho que a gente vai caminhando para o fim da nossa conversa que está sendo boa, porque está sendo bastante ampla, e eu queria chegar na Ionic Health, que é uma empresa de dados e que a gente já contextualizou. Você falou muito de confiabilidade de dados, como que a gente consegue fazer uso disso, que talvez tenha que ter uma especialidade médica, que é essa manipulação de dados, a interoperabilidade humana dos dados e o uso deles. E o que você faz no Porto hoje em dia? Você se considera um cérebro que fugiu? Você faz parte da fuga de cérebros que está fora do Brasil ou você está desenvolvendo alguma coisa que é think locally, act globally? 

Santos – Um pouco das duas. Uma coisa bem engraçada é que, inclusive, é algo que a gente prega bastante o think locally, act globally. Isso, de fato, é algo que a gente discute na empresa, que é a tecnologia feita no Brasil, made in Brasil, e realmente a gente está nessa exportação aí de tecnologia para o mundo, para a Europa, para os Estados Unidos. Dando um breve resumo da Ionic Health, ela nasceu de uma tecnologia chamada NES, que eram empresas somente de tecnologia, que faziam reestruturação de processos, fábrica de software, várias atividades. Começou a atuar muito em medicina diagnóstica, aí começaram a surgir produtos baseados nos problemas que os clientes tinham e esses produtos começaram a escalar até que a empresa se tornou um spin-off da empresa mãe. Hoje a Ionic Health é uma empresa independente e tem vários produtos.  

Atualmente ela não é uma empresa que lida com dados médicos, dados sensíveis, hoje está muito mais voltada para a tecnologia em si dentro do processo da medicina, digamos, coisas mais famosas que a gente faz, que é a plataforma de teleoperação de tomografia e ressonância que fazemos a distância, que um técnico consegue controlar dois ou três equipamentos a distância, portanto a gente conseguiu, de fato, criar um mercado no Brasil disso, já tem mais de 300 equipamentos no país que são teleoperados por técnicos. Pensa que na pandemia você conseguiu evitar que um profissional fosse até o hospital e, com isso, você conseguiu aumentar a capacidade desse profissional atuar, né? E isso em várias especialidades.  

Hoje é possível atender de vários locais do Brasil que não têm uma determinada especialidade; por exemplo, tem equipamentos no meio da Amazônia que são operados de São Paulo, então é uma experiência muito interessante que a gente está tendo no Brasil e agora estamos exportando para a Europa, para os Estados Unidos. Uma das empresas que fazem parte do grupo é a Iara, que faz reconhecimento de voz. Ela foi desenvolvida do zero no país e, atualmente, pelo que a gente entende de números, ou já somos o líder ou estamos próximos de ultrapassar o líder de reconhecimento de voz em saúde. É uma empresa que foi comprada pela Microsoft, uma companhia global bilionária; dessa forma, a gente fica muito feliz de ser uma empresa nacional que conseguiu superar uma multinacional no mercado brasileiro 

A gente agora no Brasil dá para dizer que é uma scale-up e não mais uma startup. Hoje estamos em fase de escalar dentro do Brasil todo, temos escritórios espalhados em São Paulo, São José dos Campos, Florianópolis, Recife, estamos implementando posts avançados ao redor do país e agora estamos com a startup fora do Brasil, tem uma na Europa e uma nos Estados Unidos. Eu vim fazer parte dessa startup no Porto. Quando há dois anos o CEO da empresa falou que alguém teria que ir para Portugal, porque a gente estava começando o negócio na Europa, e eu sempre tive vontade de ter experiência fora, sempre gostei de desbravar as coisas, então eu já levantei a mão e falei “pode contar comigo que eu vou”.  

Mas daqui a cinco, dez anos, talvez, vou estar fazendo outra coisa da vida e que possa não ter nada a ver com medicina ou tecnologia, porque eu gosto de desbravar. Eu gosto do novo, o novo para mim não causa insegurança, causa empolgação. Ter o conhecido para mim é exatamente a maneira de me desmotivar, então acabei vindo muito por isso, desbravamento mesmo, é fuga de cérebro, claro, porque hoje para mim é complicado voltar para o Brasil do jeito que ele está. Não me sinto tranquilo e seguro de voltar para o país que eu tanto gosto e admiro e quero que dê certo. Eu acho que a gente ainda tem muita coisa para trilhar, então acaba que são as duas coisas, um pouco de fuga de cérebro, apesar da empresa ser brasileira. 

 

Schor – Essa história de análise de voz me apaixona tanto, eu acho que é um campo que a gente ainda tem muito para andar e não é à toa que vocês investiram nisso e não é à toa também que a Microsoft comprou. Eu tenho um projeto com estudantes de graduação que estou chamando de Atlas sonoro, onde eles gravam 20 segundos do paciente dizendo o que ele tem e depois classificam isso para outros pacientes ouvirem, para os médicos fazerem diagnóstico a partir da sensação auditiva. As palavras são importantes, mas é um pouco daquele contexto da semântica emocional. É o que você sente, é o que o paciente expressa que ele tem, por exemplo, uma cegueira por glaucoma, qual é o jeito que ele fala. Eu acho que a gente vai muito para esse lado que você tá falando.  

Eu só trouxe isso para contextualizar um pouco da junção da humanidade com a tecnologia, que é exatamente o que você faz, você traz o aspecto humano mais puro falando da história do atendimento do SAMU dentro de um contexto tecnológico mais profissional do planeta, que é a empresa vender para a Microsoft e você fala com a maior tranquilidade do mundo e estando numa empresa que é multinacional, que tem vários Estados do Brasil oferecendo esse serviço, que eu vejo como uma curiosidade grande, é inconteste. Eu não vejo ninguém da sociedade civil contestando que é melhor você ter um radiologista no Porto, ter uma ressonância de punho, do que você ter que esperar durante três horas, mesmo em São Paulo, por um radiologista chegar presencialmente para laudar a sua ressonância de punho. 

E eu acho que isso é ensinamento que a gente devia ficar mais atento. Você falou dos reais benefícios que temos da tecnologia, e não é esse fantasma que a tecnologia está vindo aqui para tirar o emprego das pessoas. Olha, a tecnologia está vindo aqui para ampliar acesso, o teu emprego continua existindo do jeito que você quiser, meu chapa. Você pode até ser o cara que vai se deslocar da cidade inteira para laudar de punho e, provavelmente, vai ser mais bem pago do que o cara que lauda punho de uma cidade central, porque esse tá baseado em escala e o outro vai falar com o paciente, mas negar esse benefício tecnológico para a saúde do um é uma coisa que vocês já ultrapassaram. 

E eu acho fantástico você falar isso tranquilamente e isso na minha cabeça é um modelo para a expansão e para a escalabilidade do uso tecnológico para a saúde das pessoas. Você está falando de um negócio que é quase de impacto social, embora a tua empresa tenha fins lucrativos, o teu mote é o da melhoria da qualidade de vida das pessoas como um todo. Igor, eu acho que se a gente falar muito mais, as pessoas não vão ter paciência de nos ouvir. Então eu queria muito que você fizesse suas considerações finais e te agradeço de novo, eu adorei conversar com você. 

Santos – Perfeito. Também adorei a conversa, obrigadão pelo convite. Queria falar um pouquinho da FIDI também. Em resumo, a empresa é maravilhosa e foi o meu primeiro trabalho voltado para tecnologia e inovação, então boa parte do que eu consegui crescer eu devo à FIDI em termos de ter tido portas abertas lá para criar, exercer e fazer disso, de fato, uma profissão que não existia até então. Eu acho que não tem caminho certo, acho que tem espaço para tudo, apenas acredito que todo mundo tem que ter bem claro é que hoje o mundo anda muito rápido e a gente tem que estar aberto a mudanças. Isso não quer dizer que você tenha que virar a sua vida de pernas para o ar toda semana ou que todo ano você deve ter uma vida completamente nova, não, porque nem todo mundo gosta disso, né? mas o fato de você estar aberto faz com que você entenda a mudança como parte do processo mesmo, a própria vida muda, independente da tecnologia, se você está em fases de vidas diferentes, você está mudando, é algo até filosófico, mudança é algo  inegociável na sua vida e se você aceita ela um pouco mais, você vai sofrer menos. 

 

Schor – Fantástico, eu vou falar um pouco da FIDI, que é uma querida minha, conheço desde há muito tempo, e eu acho que ela fecha um pouco disso que você está falando da mudança. A FIDI nasce como um departamento dentro de uma escola médica, que nasceu dentro de um conceito de empresários da saúde nos anos 30. Olha que doideira discutir isso, já nos anos 30 isso já tinha sido feito. E aí essa escola passa por virar governamental, só que dentro da Escola Paulista de Medicina e dentro da filosofia governamental, já naquela época não cabiam essas mudanças que você está falando. Não cabia um departamento que pudesse fazer, por exemplo, spin-off, startup, imagina se tivesse que negociar com a estrutura da Constituição Federal a tua ida como um docente da Escola Paulista de Medicina para ir morar no Porto, que loucura ia ser isso?  

A impossibilidade de isso acontecer e a beleza que é isso acontecer não é negociável. Quer dizer, você ia estar aí de qualquer jeito. Você só não está pelo caminho que foi parcialmente desenhado pela estrutura governamental brasileira, mas é inexorável, é a maré subindo, ninguém segura, né? Assim, a FIDI, naturalmente, se expandiu e cresceu para além. A universidade pública deu origem a vários institutos que cresceram para além das bordas da universidade pública. Ainda bem e com uma força enorme, trazendo essa modernidade, agilidade e genialidade e atraindo, porque você também provavelmente não ia ser tão atraído para um lugar onde você só repetisse verdades, porque de vez em quando, a universidade, no sentido de formadora e não de pesquisadora, repete, e quando ela pesquisa, ela ajuda um pouco, ela atrai talentos mais interessantes porque ela tem coisas a serem descobertas.  

Mas essa estrutura de empresas de alta tecnologia, que vem a partir da universidade ou depois fazem outros produtos que nada tem a ver com a universidade, como é o caso aí da Iara, é um modelo que vem batendo na nossa porta há muito tempo. E o governo vem correndo atrás, não é o contrário, não é que o governo abriu as estradas todas, pavimentou as estradas todas e agora a gente tá passando, e eu não estou falando mal do governo, só é impossível o governo fazer isso, porque o progresso é muito mais rápido do que a execução das leis e o entendimento e a internalização, e vocês estão super na frente. Por isso eu fiz questão absoluta de falar com você, acho que é uma conversa que vale muito a pena ser ouvida e reouvida, então, muito obrigado, Igor, quando eu for para Portugal, a gente toma um bom vinho verde. 

Santos – Com certeza, está mais do que convidado! Obrigado. 

 

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