No cerne dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – conhecidos como Objetivos Globais – está o chamado universal para ações contra a pobreza, proteção do planeta e para garantir que todas as pessoas tenham paz e prosperidade. Dentro deste cenário, o acesso à saúde é uma peça fundamental e, por isso, compõe o ODS #3, que preconiza a necessidade de assegurarmos uma vida saudável e promovermos o bem-estar para todas as pessoas, em todas as idades. Como esse tema é extremamente complexo, dedicarei dois artigos para detalhar iniciativas inovadoras.
Neste primeiro sobre o ODS #3, destaco a união da Renovatio – que integra o negócio de impacto social GoodVision International, cuja missão global é estabelecer cuidados oftalmológicos básicos –, do Instituto Suel Abujamra e do Instituto Verter, que anunciaram, recentemente, uma aliança estratégica para potencializar o atendimento gratuito oftalmológico de pessoas em situação de vulnerabilidade. Essa união potente resultou na maior organização social de saúde visual da América Latina.
Antes de destacar essa iniciativa, acredito ser importante trazer uma contextualização sobre esse diálogo entre a saúde oftalmológica e os impactos na Agenda 2030. No mundo, 670 milhões de pessoas precisam usar óculos e não conseguem pagar por eles, de acordo com a Vision Aid Overseas; esse cenário constitui uma crise de saúde visual que impacta, diretamente, nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – especialmente os #1 (Erradicação da Pobreza); #2 (Fome Zero); #3 (Saúde e Bem-Estar); #4 (Educação de Qualidade); #5 (Igualdade de Gênero); #8 (Emprego Digno e Crescimento Econômico); #10 (Redução das Desigualdades); e #11 (Cidades e Comunidades Sustentáveis). No ODS número 1, vemos que a pobreza é tanto causa quanto consequência da saúde visual de má qualidade; no ODS número 2, vemos que a melhoria da saúde ocular pode aumentar a renda familiar – a cirurgia de catarata gratuita, por exemplo, pode potencializar essa geração de renda.
O ODS número 3 alerta para o fato de que a saúde ocular é fundamental para garantir boa saúde mental e bem-estar do indivíduo; no ODS #4, dados do Programa Alfabetização Solidária apontam que 22,9% da evasão escolar no Brasil ocorre pela falta de óculos de grau; 75% dos casos de baixo rendimento escolar são decorrentes da dificuldade de enxergar (Detecção precoce de deficiência visual e sua relação com o rendimento escolar, Rev Assoc Med Bras 56.4; 2010: 415-9). No ODS #5, a análise mostra que mulheres e meninas estão entre as pessoas com maior probabilidade de perda de visão – 12% mais provável, de acordo com o Relatório Global em Saúde Visual, vinculado à revista científica The Lancet – e de terem barreiras adicionais ao acesso a serviços e cuidados oftalmológicos. O impacto no ODS #8 se refere à constatação de que a boa saúde ocular e visão promovem crescimento econômico inclusivo, de emprego e melhores padrões de vida – o fornecimento de óculos pode aumentar a produtividade no ambiente de trabalho em 22%, também, segundo análise da Lancet.
A condição de má saúde visual está altamente relacionada com a desigualdade, impactando negativamente o ODS #10. Mulheres, pessoas idosas, pessoas com deficiência, povos indígenas, refugiados e deslocados estão entre os mais afetados; inclusive, 73% das pessoas com perda de visão têm mais de 50 anos (Relatório Global em Saúde Visual, The Lancet). Por último, o ODS #11 que mostra que a saúde ocular é fundamental para reduzir as mortes e lesões em decorrência de acidentes de trânsito; a catarata não operada, por exemplo, pode aumentar 2,5 vezes a chance de um acidente automobilístico (The Lancet).
No país, mapeamento do Conselho Brasileiro de Oftalmologia aponta que 71% dos nossos municípios não têm um oftalmologista; 45% dos pacientes aguardam mais de seis meses e 25% mais de um ano para conseguirem uma consulta, de acordo com o Conselho Federal de Medicina. No globo, a OMS aponta que 90% dos casos de cegueira ocorrem nas áreas pobres e que 60% deles poderiam ser evitados se diagnosticados e tratados precocemente. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018 havia 1.577.016 pessoas cegas no país – aproximadamente 0,75% da população nacional. A análise revela que 90% dos casos estão na faixa da população em pobreza e extrema pobreza. Assim, pode-se inferir que a falta de acesso à saúde oftalmológica é preponderante para que haja esse impacto negativo em uma grande parcela da população do país.
Diante desse cenário, o Juntos pela Visão – que constitui a união de esforços de três organizações para promover a saúde visual gratuita e transformar vidas – representa um enorme avanço no combate ao problema. Em comum, as organizações têm o objetivo de democratizar o acesso à saúde visual, levando atendimento de qualidade à população em situação de vulnerabilidade social. Em conversa com Ralf Toenjes, fundador da Renovatio, ele salienta que a união das organizações potencializará o atendimento oftalmológico da população mais vulnerável no país. Segundo o empreendedor social, para se ter uma ideia da alta demanda, uma das três maiores solicitações de especialidade médica do Sistema Único de Saúde (SUS) é a oftalmologia. Ou seja, há uma clara urgência em ampliarmos o atendimento, algo que será possível com essa parceria.
Hoje, a Renovatio atende por ano mais de 100 mil pessoas, com exames, consultas e doação de óculos; o Instituto Suel Abujamra – que se dedica ao atendimento 100% SUS – assiste cerca de 30 mil pessoas mensalmente, oferecendo desde consultas básicas até cirurgias de alta complexidade. O Instituto Verter, por sua vez, tem como principal programa o Projeto Ver na Escola, que atende desde bebês em creches municipais de São Paulo até adolescentes de escolas públicas do município. Pelo programa já passaram cerca de 50 mil alunos e foram doados cerca de cinco mil óculos. Caio Abujamra, presidente do Instituto Suel Abujamra, conta que enquanto a Renovatio e o Verter têm experiência descentralizada em nível nacional de atendimento primário em oftalmologia, o Suel Abujamra tem histórica experiência no atendimento de alta e média complexidade, conseguindo assim completar a jornada de suporte ao paciente.
A aliança formada por Renovatio, Instituto Suel Abujamra e Instituto Verter criará uma cadeia integrada de ações sociais em todo o país – trazendo maior visibilidade, conhecimento e entendimento do problema – com o objetivo de propor um novo olhar para a política pública de saúde visual. Essas iniciativas, integradas, buscam viabilizar uma maior expansão do atendimento de média e alta complexidade pelo país com maior eficiência e abrangência por meio de parcerias também com o Sistema Único de Saúde.
Na minha percepção, esse exemplo de aliança estratégica para combater problemas sistêmicos – com o apoio de negócios sociais – pode ganhar o mundo!
Fonte: O Estado de S. Paulo