Nesta terça-feira (18), a partir das 13h55, a Câmara dos Deputados começa a votar a medida provisória (MP) 959/2020, cujo objetivo é adiar a vigência da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Caso ela seja rejeitada, a lei entra e vigor em caráter imediato, ainda que suas penalidades só passam a valer em agosto de 2021, conforme determina a lei 14.010. No entanto, há outro ponto que chama a atenção: a ausência de uma autoridade que controle a aplicação dessas regras – no caso a Autoridade Nacional de Proteção de Dados ou ANPD.
A ANPD funcionaria como uma espécie de supervisor, que observaria a aplicação correta dos artigos previstos na LGPD e mediaria eventuais conflitos empresas, usuários e a lei em si. Ainda no final de 2018, na gestão do presidente Michel Temer, foi editada a Medida Provisória n. 869/2018, que propôs a criação da entidade. A MP foi aprovada pelo Congresso Nacional com modificações e convertida na Lei n. 13.853, sancionada pelo Presidente Jair Bolsonaro em 9 de julho de 2019.
No entanto, para que a Autoridade seja efetivamente criada, ainda é necessário um decreto presidencial estabelecendo os parâmetros da sua estrutura e a indicação de cinco diretores pela Presidência da República para comporem o Conselho Diretivo da ANPD. Após sua indicação, os cinco nomes também deverão ser aprovados pelo Senado Federal antes de serem efetivamente empossados. O problema é que todo esse processo ainda não foi efetuado. Com isso, muitas empresas e entidades enxergam um cenário de insegurança jurídica na aplicação da LGPD e defendem o seu adiamento – que pode acontecer caso a MP 959 seja aprovada hoje.
Movimento intersetorial
Em carta aberta ao Congresso Nacional, a Frente Empresarial em Defesa da LGPD e da Segurança Jurídica – que reúne 70 associações e entidades, como a Associação Brasileira das Empresas de Software (ABES), a Abranet (Associação Brasileira de Internet), a Abinee (Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica), a BSA – The Software Alliance, e muitas outras – afirma que LGPD é uma lei principiológica, com inúmeros dispositivos que merecem ser alvos de uma regulamentação ou de uma efetiva orientação pela Autoridade competente. Segundo o movimento, como o direito digital e a proteção e dados pessoais são disciplinas novas no Brasil, é de grande relevância que a elaboração dessas normas conte com ampla e irrestrita participação de todos os setores da sociedade, em especial os setores da economia brasileira que serão regulados.
O documento afirma ainda:
Nesses termos, cumpre ressaltar que a ANPD é essencial para que haja um equilíbrio entre proteção de dados pessoais e desenvolvimento da economia digital. Sem sua criação, não existem regulações nem orientações para guiarem todas as organizações brasileiras para que avancem em um pleno trabalho de conformidade com a LGPD.
PEC 17/2019 e insegurança jurídica
Outro ator importante na discussão da entrada em vigor – ou não – da LGPD no Brasil é a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 17/2019. Ela eleva proteção de dados pessoais a um direito e garantia Constitucional e fixa a competência privativa da União para legislar sobre o tema, assim como também estabelece que a ANPD deverá ser uma entidade independente, integrante da administração pública federal indireta e submetida a regime autárquico especial. A PEC 17/2019 teve origem no Senado Federal, já foi analisada por Comissão Especial na Câmara dos Deputados e aguarda sua votação no Plenário.
Com isso, a Frente Empresarial em Defesa da LGPD e da Segurança Jurídica afirma que já há mais de uma dúzia de projetos legislativos municipais ou estaduais para a criação de Autoridades em Estados e Municípios para regular e aplicar sanções sobre a coleta e o tratamento de dados pessoais. E que sem a aprovação da PEC 17/2019, “reinará no Brasil total insegurança jurídica, afugentando investidores, aumentando ainda mais os custos de se fazer negócio no país e sobretudo dificultando o acesso por governos, empresas e cidadãos a tecnologia tão necessária para a retomada do crescimento econômico do país”, afirma a carta aberta do movimento. “Por outro lado, a MP 959/2020, que propõe a prorrogação da vigência dos demais artigos da LGPD para 3 de maio de 2021, ainda se encontra em tramitação desde 27 de abril. Esse cenário de insegurança jurídica, pode retomar a entrada em vigor da lei agora já em agosto de 2020, caso a MP 959/2020 não seja deliberada pelo Congresso Nacional até o dia 26 de agosto, quando perderá sua vigência”.
Para o presidente da ABES, Rodolfo Fücher, é importante lembrar que a LGPD não detalha como os dados pessoais devem ser tratados, e sim determina que a ANPD será a responsável por regulamentar esse tratamento. Nesse sentido, a Frente Empresarial pleiteia que a entrada em vigor da LGPD ocorra após a criação da ANPD, como foi previsto em 2018. “Seria o mesmo que dizer que todos podem ter um automóvel, mas o órgão responsável por definir as leis de trânsito não fosse criado”, afirmou Fücher. “Imaginem a confusão e os prejuízos que isso causaria. Infelizmente, a sociedade brasileira está prestes a enfrentar esse caos, no que se refere a um dos itens mais importantes da sociedade moderna: o tratamento e privacidade dos dados de sua sociedade”.
Já José César da Costa, presidente da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), entidade que também compõe a Frente Empresarial, destaca o cenário de insegurança jurídica que será criado sem a prorrogação da LGPD: “É fundamental que a lei seja complementada pela criação e entrada em operação da ANPD, que será essencial para orientar o processo de adequação e fomentar boas práticas de tratamento de dados pessoais”, declarou. “As empresas ainda estão se reorganizando nesse momento de crise causada pela pandemia da Covid-19, se reajustando e priorizando a manutenção dos empregos e a autopreservação. A adequação à nova legislação exige recursos humanos e financeiros especificamente direcionados, além de orientações claras por parte da futura ANPD. A prorrogação é fundamental para que a LGPD seja efetiva”.
Empresas de telecom também querem a prorrogação
Representante da categoria econômica das empresas que exercem atividades dos serviços de tecnologia da informação, de telecomunicações e informática, a CONTIC (Confederação Nacional da Tecnologia da Informação e Comunicação) também vem apoiando que a vigência da LGPD seja prorrogada, defendendo a regulamentação da ANPD como um passo a ser dado antes. Em comunicado, a entidade afirma:
A criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), que também foi objeto de profundo debate no parlamento, e sua entrada em operação, são passos fundamentais e condições para regulamentar adequadamente a aplicação da lei, por se tratar do órgão legitimado para tal.
Em outras palavras, a LGPD e a ANPD são umbilicalmente ligadas e somente a entrada em vigor da lei não dá condições para concretizar no país o ambiente institucional e normativo adequado para proteção e tratamento de dados pessoais.
É indubitável que, pela natureza principiológica da LGPD, existem lacunas normativas que carecem de complementação, tornando iminente a necessidade de entrada em operação da ANPD e posterior edição de regulamentos, que certamente serão objeto de consultas públicas e debates entre diversos setores da sociedade. Fato é que as incertezas que permeiam o tema são majoradas pela ausência do seu órgão máximo, o que torna imperiosa a necessidade da criação e entrada em funcionamento da ANPD antes mesmo da vigência da LGPD, se possível.
Para Marcos Ferrari, presidente-executivo da CONTIC e também do Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia (Sinditelebrasil), o adiamento das sanções na LGPD, previstas na Lei no 14.010, não afasta o ambiente de incertezas e insegurança jurídica que se criará sem a constituição e início das atividades da ANPD: “Os órgãos de Defesa do Consumidor, Ministério Público e Judiciário poderão interpretar e passar a criar precedentes desalinhados e até mesmo conflitantes entre si”, afirmou ele. “Não existirá um regramento claro de interpretação da Lei, bem como diretrizes balizadoras, estímulo na adoção de padrões e boas práticas e procedimentos definidos pela ANPD”.
Ainda segundo Ferrari ausência da ANPD e de uma regra de competência exclusiva da União para legislar sobre o tema cria um vácuo normativo-institucional que estados e municípios podem tentar suprir, como no caso do GDF que aprovou projeto de lei (aguardando sanção do governador) que cria uma Agência Distrital de Proteção de Dados:
“A LGPD já tem sido precocemente utilizada como base para a análise de pedidos de fornecimento de dados, explicações ao Ministério Público (MP), ações civis de órgãos coletivos de defesa do Consumidor (PROCONs), entre outros”, destaca o executivo. “Isso que reforça a necessidade de uma autoridade atuante, dotada de autonomia, responsável pela centralização do tema, estabelecendo assim diretrizes, parâmetros de boas práticas e modelo de governança às organizações públicas e privadas”.
A favor do início da vigência da LGPD
Ainda que as entidades representativas da indústria sejam contra o início da vigência da LGPD para este mês, muitos especialistas também se mostram a favor, inclusive na esteira do projeto de lei 2.630/2020, também conhecido como Lei de Combate às Fake News. “Se estamos tão preocupados com a desinformação, em primeiro lugar é preciso que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais entre em vigor em agosto deste ano”, afirmou Laura Mendes, professora da Universidade de Brasília, em entrevista à Agência Brasil.
A mesma posição favorável ao início da vigência da LGPD é afirmada pelo deputado federal Damião Felicidado (PDT-PB), relator da MP 959. Em seu relatório, ele afirma:
Como último aspecto nesta discussão da LGPD, mediante a manutenção do entendimento anterior de se postergar apenas a aplicação das sanções, esta Casa envia um claro sinal à sociedade de serenidade em seu processo de tomada de decisões e, principalmente, de sensibilidade com a matéria da proteção de dados pessoais.
Portanto, não poderíamos ter outro entendimento senão o de manter a entrada em vigência originalmente prevista pela Lei Geral de Proteção de Dados, que ocorrerá em 14/08/2020. Estamos certos de que esta decisão consiste na alternativa que trará maior estabilidade ao ecossistema de tratamento de dados, reestabelecendo prazos já conhecidos há quase dois anos, ao mesmo tempo em que cumpre a sua função protetora dos dados, em benefício da população.
Por sua vez, Bia Barbosa, representante da Coalizão Direitos na Rede, afirmou que é contrária ao adiamento da LGPD e que o cenário ideal é a concretização da ANPD junto com a LGPD. Para ela, diante da vulnerabilidade social atual, há urgência para entrada em vigor da LGPD, ou seja, não se pode naturalizar o tratamento abusivo de dados pessoais.
Em debate promovido pelo Laboratório de Políticas Públicas e Internet (Lapin), Barbosa citou que, em um cenário de pandemia da Covid-19, os aplicativos de comunicação (usados por exemplo em reuniões em home office), de exercícios físicos e de entregas, por exemplo, estão recebendo um fluxo maior de dados se comparado a períodos anteriores à implementação do isolamento social. Segundo a especialista, este fato poderia ser regulado pela LGPD se ela estivesse em vigor, já que seria possível enfrentar o contexto atual com mais formas institucionais de proteção. Para ela, a não criação da ANPD não configura motivo para a prorrogação da LGPD.
Fonte: Canal Tech