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Por Ermano Melo – oftalmologista e autor do livro Não Matem os Pardais

Segundo a Teogonia de Hesíodo, no princípio existia o Caos, que era um nada, uma constante queda no vazio de onde se originou Gaia ou Terra. Gaia, por sua vez, gerou espontaneamente Uranos ou o Céu. Porém, Uranos a encobria completamente, não existindo espaço e fecundava-a ininterruptamente, gerando filhos que ficavam aprisionados no seu interior, impedidos de sair. Nesse período, o tempo se encontrava paralisado. O filho caçula Cronos é incumbido por Gaia de castrar Uranos e assim acabar essa fertilidade exagerada e destruidora. Ele o fez, jogando os genitais de Uranos no mar, gerando Afrodite, a Deusa da beleza e do Amor. Após a castração, Uranos se separou de Gaia, criando o espaço e marcando o nascimento do tempo. O Céu tornou-se a morada dos deuses imortais e a Terra, lar da humanidade mortal, iniciando assim a separação entre o eterno e o finito. Cronos, por sua vez, teve vários filhos com sua irmã Rhéa e para não ter o mesmo destino do pai, devorava todos os seus filhos, encarcerando-os em seu interior.  Rhéa, após enganar Cronos, escondeu o caçula Zeus que, ao se tornar adulto, libertou seus irmãos, guerreou contra Cronos e o derrotou, casou-se com sua irmã Hera e tornou-se Rei dos deuses.

Segundo os gregos, assim nasceu o tempo. Impossível de definir, mas facilmente perceptível, ele ainda é um mistério para nós. A juventude, em sua ilusão de eternidade, o ignora, mas a maturidade já não pode ser enganada. Os fios brancos no cabelo podem eventualmente aparecer aos 20 anos, mas a presbiopia não. É o marco do nascimento da velhice, da curva descendente, do inevitável fim.

Martin Heidegger, o polêmico filósofo alemão, criou o termo dasein para tentar entender o homem e sua relação com o tempo.  Essa expressão alemã, que significa ser-aí, é o homem lançado no mundo histórico, não o mundo cosmológico, mas o mundo ao seu redor, menor e de características próprias, onde há possibilidade de desenvolver toda sua potencialidade. É preciso diferenciar o que ele chama de ente e o que seria o ser. O ente é o que podemos definir até a exaustão, ou seja, pode ser um objeto, uma sala ou algo do qual possamos descrever todas as características. Também pode ser um animal ou o próprio ser humano.

Quando a filosofia clássica pergunta o que é o ser humano, é possível sua definição através de suas características físicas, biológicas e históricas. Mas se mudarmos a pergunta e questionarmos como é ser humano, mudamos todo o sentido e passamos a falar do ser. Nesse caso, é impossível esgotar o tema, pois o ser está em constante mudança, ora em expansão, ora em retração, o ser nunca é de maneira definitiva e tem a possibilidade de mudar sempre. Essa resposta nunca termina, sempre poderá haver continuidade até a morte, e após a morte o ser já não é mais e não pode ser definido.

Se quisermos sermos médicos verdadeiros precisamos olhar para o nosso paciente como um dasein e não como um ente. A presbiopia, e posteriormente a catarata, escancara a tragicidade de nossa extinção. Podemos falar disso de modo mais poético também, como o antigo discípulo e posterior desafeto de Freud, o suíço Carl Jung.

Jung utilizou o termo Metanoia para abordar essa fase da vida. Em suas próprias palavras:

[…]O momento do meio-dia, ou metade da vida, é o que Jung denomina Metanoia, a ocasião em que a consciência deve abrir- se para o outro lado e, sentindo-se mais fortalecida, pode reconsiderar o valor criativo do inconsciente e voltar-se para o que ainda lhe falta desenvolver […]

Esse é o simbolismo que o oftalmologista testemunha diariamente e nem percebe. Em nossa rotina, não raro deixamos de entender a angústia do presbita que foi surpreendido pelo anúncio do fim da juventude e pelo início da velhice.

Há décadas me dedico à cirurgia refrativa e cirurgia de catarata. No início corrigíamos apenas a miopia e não havia as lentes multifocais, nosso trabalho era mais objetivo e técnico. Com a melhora dos lasers e das lentes de alta tecnologia passamos a ter outras indicações e assim modificar não apenas a refração, mas também as sensações e, porque não dizer, a “alma” do nosso paciente, algo ainda mal compreendido pelo cirurgião oftalmológico.

A correção da hipermetropia e indução da miopia em um dos olhos para ver de perto enquanto o outro foca para longe, que antes era exclusividade das lentes de contato, tornou-se rotina em vários centros oftalmológicos e abriu uma lacuna no campo das pesquisas qualitativas, que priorizam a voz do indivíduo em detrimento dos números na pesquisa quantitativa.

Com essa premissa, iniciamos uma tese junto com Dr Paulo Schor para tentar entender o paciente presbita que busca cirurgia refrativa para se livrar dos óculos. O estudo ainda está em andamento, mas a riqueza narrativa que brotou é impossível de ser contida e alguns pontos merecem ser compartilhados, mesmo que seja um pequeno spoiler.

 

O Tempo

A Noite Estrelada é uma pintura de Vincent van Gogh de 1889. A obra retrata a vista da janela de um quarto do hospício de Saint-Rémy-de-Provence, pouco antes do nascer do sol, com a adição de um vilarejo idealizado pelo artista.

[…] Com o tempo a visão da gente vai… Vai descendo, como tudo na vida da gente, né? Tudo na gente vai mudando, o corpo, cabelo, tudo seu começa a mudar, então a vista também tem dificuldade por isso, com a idade, eu creio que é […]

O depoimento de um entrevistado simboliza o significado da presbiopia e sua relação com a temporalidade. É esse sentimento que está sob nossa responsabilidade e passar óculos pode ser muito pouco. Será que ao não questionarmos sobre outras possibilidades de correção não estaríamos infringindo o código de ética médica? negligência? talvez.

 

A Estética

[…]Péssima! Primeiro pela estética, que muda muito, e segundo que você quer sempre estar com um modelo mais moderno, e aí você fica arrasada[…]

Segundo Roger Scruton, a beleza não é um valor inferior, superficial, ao contrário, é fundamental em nossas escolhas e a estética do rosto é diretamente atingida pelos óculos.

O filósofo ensina que o rosto é o nosso próprio eu. O rosto humano é a última barreira contra a agressão. Fechamos os olhos e colocamos as mãos no rosto quando não há mais nada a fazer diante do terror; esse último recurso é divinamente representado na obra de Francisco Goya (1746-18280), quando, na iminência da violência, a vítima preserva sua alma escondendo o rosto

No livro O Rosto de Deus, Scruton diz que ver o próprio rosto pode causar medo, pois […]tentamos encaixar a pessoa que conhecemos tão bem nessa coisa que os outros conhecem melhor[…] e traz Rembrandt que definiu […]que o rosto é o lugar em que o eu e a carne se fundem e onde o indivíduo é revelado não apenas na vida que brilha, mas também na morte que vai brotando nas rugas[…]. Os olhos para ele é onde a presença do sujeito é mais evidente; o rosto é um símbolo da individualidade e foi além: […]não deve ser tratado como objeto, é intocável, inviolável e consagrado[…].

É verdade que violamos essa sacralidade, mas acho que seremos perdoados pois retirar um objeto que esconde o sagrado é um ato nobre, pois a beleza divina está novamente à mostra.

 

Os óculos

[…]Bem melhor sem óculos. Assim… Os óculos é um… É como se você fosse um viciado em alguma coisa… Em alguma droga, alguma coisa. Você tem a obrigação de ter os óculos[…]

Creio que nenhum oftalmologista sequer imaginou que os óculos que ele prescreve pudesse ser comparado a uma droga; é um simbolismo poderoso que evoca uma dependência total e indesejada.

Óbvio que a voz de uma pessoa não representa a maioria, mas há uma parcela considerável e silenciosa dos presbitas que, por má comunicação, impede o despertar da oftalmologia para encarar a optometria como uma porta de entrada para a sugestão da liberdade possível, porém frequentemente esquecida.

 

O medo

[…]medo surge e é normal nessa cirurgia como em qualquer outra, como na cirurgia cardíaca que eu fiz há 90 dias[…

O imaginário despertado por uma cirurgia ocular na maioria das vezes é desproporcional ao risco – como comparar a uma cirurgia do coração? – é difícil de entender, mas para alguns a escuridão é preferível ao ato profano de tocar no que é considerado sagrado.

Para vencer essa barreira natural, o cirurgião oftalmológico precisa respeitar um ritual quase religioso, que passa pela consulta, exames, bloco cirúrgico e cuidados no pós-operatório. Qualquer falha inevitavelmente acarreta a perda da fé. Não no médico, que não é visto como um Deus, no máximo um bispo, um feiticeiro ou um xamã e sim no ritual, no milagre ou na graça desejada.

 

As luzes

Não conhecemos as aberrações ópticas do sistema visual de Van Gogh, mas a julgar por alguns relatos, a imagem que ele via ou imaginava eram muito semelhantes aos que nossos entrevistados testemunharam:

[…]As luzes estouravam muito… A noite era um terror! E eu demorei bastante… Foi bastante[…]

O sofrimento é real e, para a maioria, há o terror das luzes noturnas. São as consequências de um rito sacrificial no período de adaptação que podem se estender por meses.

A ideia de sacrifício nos olhos para alcançar objetivos valorosos está presente desde quando os mitos explicavam o mundo; vejamos dois exemplos:

O primeiro é o Olho de Hórus, da mitologia egípcia. Hórus é o filho de Ísis e Osíris que foi morto pelo seu tio Seth. Em sua vingança, Hórus luta com o seu tio que arranca seu olho esquerdo e o arremessa ao céu, originando a lua. Troth, o Deus da cura, cicatriza e restitui o olho ferido em 29 dias, as fases da lua simbolizam essa regeneração, e quando Hórus recebe o olho de volta, Osíris volta a viver.

A segunda é o Olho de Odin, presente na mitologia nórdica. Odin é o Deus todo-poderoso, cultuado e temido ao mesmo tempo, cuja principal característica é a sabedoria que não mediu esforços para sua busca:

[…]Para obter a grande sabedoria que o tornou famoso, Odin foi pedir a Mimir, o guardião da fonte (que detinha todo o conhecimento do passado e a definição do futuro) para tomar um gole da sua água. Porém, Mimir se recusou, a não ser que Odin fizesse um sacrifício ofertando um dos seus olhos. Odin não hesitou. Tanto ele prezava o conhecimento que arrancou sem titubear seu olho, que foi colocado por Mimir na fonte, de onde continuou brilhando com um reflexo prateado[…]

As lendas, os mitos, a poesia e as obras de artes sempre antecipam o que a ciência depois comprova, nunca inventamos nada.

 

O Ser

[…]Não, acabou tudo, eu sou normal, eu sou normal hoje. Eu acho que eu sou normal! […]

As pessoas se acostumam, mas usar óculos não é normal; é uma ferramenta para uma deficiência. Se essa premissa não estiver impregnada em nossa memória, deixaremos alguém que poderia ser beneficiado por outra opção em eterno sofrimento. Não podemos subestimar a inteligência e a liberdade de escolha do paciente, não podemos escolher por ele.

O Ser que emerge no final depende do ser que submergiu no começo, não é o mergulho que determina o resultado. Não é a cirurgia que é ruim ou boa, trata-se apenas de uma arma, que pode ser bem ou mal utilizada.

 

Conclusão

A temporalidade está intimamente conectada com a cirurgia da presbiopia e podemos deduzir que os temas citados e outros fatores estão interligados na decisão e no resultado: simbolismo, higiene, trabalho, autoestima, confiança, personalidade etc. A única alternativa ao médico que tem interesse real pelo tema é o aprofundamento no conhecimento sobre diversos temas no campo das humanidades, muito além do que é ensinado rotineiramente.

Na próxima vez que for prescrever óculos para perto ou lentes multifocais, lembre-se de conhecer mais profundamente quem está a sua frente; talvez o remédio certo seja outro.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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