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Jorge Rocha – Doutor em Ciências Médicas pela USP/SP e Coordenador Retina-Hub

“O olho, espelho da alma” é uma alusão poética à conexão entre o olhar, os sentimentos e o estado interior das pessoas. Atualmente, com o avanço da inteligência artificial aplicada à análise de big data e de biomarcadores da retina, já é possível diagnosticar doenças cardiovasculares, neurodegenerativas, renais e metabólicas por meio do exame ocular. Essas patologias geram alterações no fundo do olho que podem ser facilmente detectadas ao se examinar a retina.

O termo Oculômica foi inicialmente publicado por Wagner e colaboradores em 2020, no artigo Insights into Systemic Disease through Retina Imaging-Based Oculomics. Os autores propõem o olho como uma “janela para a saúde do corpo”, pois as alterações oculares refletem mudanças patológicas em diversas partes do organismo. O termo deriva do latim — oculo = olho, e -ômica = estudo abrangente de sistemas biológicos. Trata-se de um campo compartilhado com áreas como proteômica, genômica e metabolômica, que utilizam tecnologia avançada para identificar biomarcadores de doenças. O olho é um órgão singular, pois permite a visualização in vivo do tecido nervoso e da vasculatura de maneira não invasiva. Aliado à inteligência artificial, capaz de analisar um grande volume de informações, esse potencial promete transformar a saúde pública nos próximos anos1,2,3.

O olho tem origem embriológica comum ao cérebro: a retina deriva do diencéfalo, sendo uma extensão direta do sistema nervoso central. Alterações cerebrais podem ser identificadas por meio de mudanças no nervo óptico e nas fibras nervosas da retina. Os vasos sanguíneos retinianos são extensões da vasculatura cerebral e respondem ao sistema renina–angiotensina–aldosterona renal. Dessa forma, o olho compartilha as mudanças fisiopatológicas das doenças sistêmicas, permitindo acesso direto, não invasivo e eficaz a diversos biomarcadores1,2,3.

A ideia do olho como janela para o corpo surgiu no século XIX, após o advento do oftalmoscópio de Helmholtz, em 1851, que permitiu a visualização da retina. As primeiras observações identificaram alterações da microvasculatura retinianas associadas à hipertensão arterial sistêmica, doenças renais e enfermidades cerebrovasculares. Em 1939, Keith et al. confirmaram que a gravidade das alterações microvasculares da retina podia predizer mortalidade em pacientes hipertensos. Estudos posteriores correlacionaram mudanças retinianas a doenças renais, cardiovasculares, acidente vascular cerebral (AVC) e doença de Alzheimer2.

Os avanços na qualidade das imagens digitais de retina nos anos 1990 e 2000 — com a retinografia digital, a tomografia de coerência óptica (OCT) e o OCT-A — permitiram a evolução da análise subjetiva e qualitativa para avaliações objetivas e quantitativas das estruturas retinianas2,3.

Atualmente, as doenças cardiovasculares (DCV) são responsáveis por mais de 30% das mortes no mundo. Assim, ferramentas de estratificação de risco tornam-se essenciais para a saúde pública. O uso de um único exame ocular para avaliar risco cardiovascular é especialmente atraente, sobretudo porque a saúde ocular é altamente valorizada pela população. Um estudo do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido mostrou que, entre 2009 e 2013, apenas 12,8% da população acima de 40 anos realizou check-up cardiovascular; entretanto, em 2016, mais de 50% realizaram exame oftalmológico2,3.

A associação mais consistente entre AVC e vasos da retina foi demonstrada pelo estudo Atherosclerosis Risk in Communities, o primeiro de grande escala a utilizar retinografia para estimar risco de AVC. O risco aumentava proporcionalmente à redução da relação artério–venosa. Contudo, uma meta-análise posterior concluiu que o risco de AVC se relaciona mais ao aumento do calibre venoso, e não ao calibre arterial. O enorme volume de informações geradas pelas imagens de retina exige ferramentas de deep learning para maior acurácia. A Google Research treinou um algoritmo com mais de 280 mil imagens do UK Biobank, capaz de prever não apenas tabagismo, mas também o risco de eventos cardiovasculares com alta precisão2,3.

O aumento da incidência de doenças neurodegenerativas — como demências, Alzheimer (DA) e Parkinson (DP) — também tem recebido atenção. Cerca de 9,9 milhões de novos casos são diagnosticados anualmente, e a prevalência de Alzheimer deve dobrar até 2035. A oculômica tem utilizado diversas modalidades de imagem (retinografia, OCT e OCT-A) para detecção precoce e acompanhamento dessas doenças. Hilton et al., em 1986, demonstraram por estudo histológico em 10 pacientes a associação entre perda de células ganglionares e da camada de fibras nervosas da retina (CFNR) com o diagnóstico de Alzheimer. A CFNR representa os axônios das células ganglionares que se projetam diretamente ao núcleo geniculado lateral. A perda cognitiva está associada ao afinamento dessa camada, que se tornou um dos mais promissores biomarcadores para DA e risco de demência. Estudos recentes reforçam a associação entre alterações da CFNR no OCT e Alzheimer. Além disso, novos algoritmos de IA têm correlacionado biomarcadores retinianos — alterações vasculares, perda de células ganglionares, afinamento da CFNR e até padrões de movimento ocular — com doenças neurodegenerativas2,3,4.

Apesar do grande volume de ferramentas emergentes, biomarcadores e algoritmos de IA em desenvolvimento, ainda há falta de consistência para aplicação clínica ampla. A performance dos algoritmos pode ser prejudicada pela variedade de dispositivos de imagem e pela diversidade fenotípica da população. Estudos de validação continuam em andamento para atender aos critérios de agências reguladoras.

A oculômica é uma tecnologia nascente, mas com enorme potencial para transformar os sistemas de saúde ao redor do mundo. Algoritmos de IA recentemente aprovados pelo FDA para diagnóstico de retinopatia diabética por retinografia — como IDx-DR e EyeArt — demonstraram acurácia e eficácia no mundo real, encorajando a expansão da oculômica. A validação clínica robusta deverá permitir novas aprovações regulatórias e a ampliação dessa promissora ferramenta de transformação do cuidado em saúde. A revolução na saúde pode, de fato, começar pelo olho — nossa janela para o corpo.

 

Referências bibliográficas:

  • Wagner SK, Fu DJ, Faes L, Liu X, Huemaer J, Khalid H, Ferraz D, Korot E. Insights into Systemic Disease through Retina Imaging-Based Oculomics. Transl. Vis. Sci. Technol. 2020;9(2):6.
  • Zhu Z, Wang Y, Qi Z, Hu W, Zhang X, Wagner SK, Wang Y, Ran AR, Ong J, Waisberg E, Masalkhi M, Suh A, Tham YC, Cheung CY, Yang X, Yu H, Ge Z, Wang W, Sheng B, Liu Y, Lee AG, Denniston AK, Wijngaarden PV, Keane PA, Cheng CY, He M, Wong TY. Oculomics: Current concepts and evidence. Prog Retin Eye Res. 2025 May;106:101350.
  • Patterson EJ, Bounds AD, Wagner SK, Kadri-Lagford R, Taylor R, Daly D.Oculomics: A Crusade Against the Four Horsemen of Chronic Disease. Ophthalmol Ther (2024) 13:1427-1451.
  • Hinton DR, Sadun AA, Blanks JC, Miller CA. Optic-nerve degeneration in Alzheimer’s disease. N Engl J. 1986;315:485–7

 

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