“Dia 16/06/21 você fechava seus olhos para sempre, dia 18/06/21 eu recebia sua córnea para voltar a enxergar.” Foi assim que Danielle Nunes Soares, bancária paranaense de 25 anos, iniciou um relato no Instagram agradecendo ao doador de órgão que permitiu que ela voltasse a ver o mundo de forma mais nítida. O texto vem acompanhado de uma imagem de seu olho esquerdo, ainda com alguns resquícios da cirurgia: a pele arroxeada ao redor, a esclera avermelhada e os pontos da sutura da córnea. A publicação viralizou no Instagram e no LinkedIn. Até a finalização desta matéria, já contava com mais de 300 mil curtidas, emocionando pessoas em todo o país e deixando em evidência mais uma vez a importância da doação de órgãos.
Para entender mais sobre o caso e esclarecer as principais dúvidas que levam ao diagnóstico tardio de ceratocone, conversamos com a paciente Danielle, com a médica oftalmologista Dra. Ana Paula M. T. Oguido, que encaminhou a paciente para o transplante, e a Dra. Luciene Barbosa, presidente da Associação Panamericana de Banco de Olhos.
Diagnóstico tardio
Ainda na infância, Danielle começou a sentir dificuldades em enxergar. Moradora de Mauá da Serra, no norte do Paraná, ela visitou um médico oftalmologista local. Passou a usar óculos mas, com a visão cada vez mais turva, buscou atendimento nas cidades vizinhas para uma segunda opinião.
Em Apucarana, a oftalmologista com quem consultou chegou a falar sobre a doença, mas não fez os exames para diagnóstico. O médico em Faxinal, também sem os equipamentos necessários para detectar o ceratocone, manteve o diagnóstico de miopia e astigmatismo.
Durante esse período, Danielle recebia prescrições de lentes cada vez mais grossas, chegou a usar óculos “fundo de garrafa”, em suas próprias palavras, mas não notava melhora na visão. Foi um oftalmologista em Ivaiporã, 85,5 km distante de Mauá da Serra, que chegou ao diagnóstico definitivo: ceratocone nos dois olhos.
O ceratocone é uma doença que ocorre na córnea, caracterizada pelo afinamento e aumento da curvatura, semelhante a um cone, dessa estrutura. É um problema que atinge uma em cada 2 mil pessoas, de acordo com a Sociedade Brasileira de Oftalmologia, e causa visão distorcida, embaçada, com halos ao redor da luz, fotofobia, miopia e astigmatismo com aumento progressivo. A doença pode ter um caráter hereditário, mas sofre a influência do ambiente, por exemplo, o ato de “coçar” os olhos pode ser determinante do aparecimento e/ou agravamento da doença.
Apesar de não haver cura, o diagnóstico precoce e o tratamento adequado combatem o avanço e consequências mais graves da doença, como a cegueira. Uma das barreiras para que o problema seja identificado ainda no início é a dificuldade de acesso dos médicos a aparelhos para exames como o pentacam devido ao seu alto custo. Entretanto, são cada vez mais comuns equipamentos para topografia computadorizada da córnea (ou ceratoscopia) que tem menor valor mas são bastante eficientes. Eles se mostram como excelentes alternativas para clínicas e consultórios menores, inclusive fora dos grandes centros, ampliando as possibilidades de diagnóstico.
No caso de Danielle, à época com 17 anos, o ceratocone nos dois olhos já estava avançado no momento do diagnóstico. O oftalmologista, então, a encaminhou para uma clínica em Maringá com a recomendação de cirurgia. “Eu fiquei em choque, foi muito triste receber aquela notícia. Chorei muito, fiquei muito nervosa porque eu não estava preparada, tinha acabado de entrar num novo emprego, sabe? Não tinha plano de saúde e nem nada assim”, ela lembra.
Na clínica em Maringá, consultou um novo oftalmologista e passou por uma bateria de exames, incluindo o pentacam, que reafirmou a necessidade do transplante. Porém, o médico teve receio de encaminhar para cirurgia por ela ainda ser muito nova, e sugeriu o implante de anéis intracorneanos na expectativa de diminuir a curvatura e controlar o avanço da doença. E assim fizeram. Dois dias após a consulta, Danielle implantou o anel no olho esquerdo (o mais grave) e, depois de seis meses, no olho direito.
Após os implantes, foram anos tentando se adaptar a lentes rígidas, esclerais, óculos com graus elevados& todas tentativas frustradas. Apesar das dificuldades físicas e psicológicas, Danielle formou-se em contabilidade, cursou um MBA e conquistou o emprego com o qual sonhava. Mas ela ainda não conseguia ver o mundo nitidamente como desejava e decidiu procurar um novo médico.
Como é feito o diagnóstico de ceratocone
Sinais clínicos:
– Astigmatismo irregular (com aumento de grau em um curtor espaço de tempo);
– Afinamento corneano paracentral inferior ou central;
– Sinal de Munson (indentação em V da pálpebra inferior quando o paciente olha para baixo);
– Miras da ceratometria distorcidas;
– Retinoscopia com reflexo em tesoura;
– Anel de Fleischer (alterações pigmentadas que circunda a base do cone);
– Estrias de Vogt (linhas verticais na parte mais fina da córnea no nível do estroma posterior e membrana de Descemet);
– Hidropsia corneana (dor aguda e fotofobia devido a edema de córnea causado por ruptura da membrana de Descemet).
Exames para detecção:
(Os pacientes devem ser orientados a não usar lentes de contato nos 7 dias que antecedem o exame.)
– Topografia ou tomografia corneana: avalia a curvatura anterior da córnea (topografia), o mapa paquimétrico (espessura), mapas de elevação anterior e posterior e aberrações corneanas.
– Paquimetria: utilizando o paquímetro ultrassônico ou o pentacam, mede a espessura da córnea.
– Microscopia Especular da Córnea: faz uma avaliação detalhada da córnea, medindo quantitativa e qualitativamente as células do endotélio (camada mais profunda do tecido corneano).
– Aberrometria: detecta as distorções refracionais do sistema óptico causados pelo ceratocone que podem levar a sintomas como a polioplia (visão de múltiplas imagens).
Enfim, o transplante
Danielle foi à Londrina consultar a Dra. Ana Paula M. T. Oguido, diretora médica no Banco de Olhos Regional de Londrina e oftalmologista na clínica Hoftalon, que recomendou o transplante da córnea esquerda. A atenção da médica em explicar a cirurgia, apresentar os índices de rejeição baixos e indicar outras fontes onde a bancária pudesse se informar melhor sobre o procedimento, deixaram-na mais calma para ingressar na fila.
“A Danielle apresentava já na sua primeira consulta o ceratocone avançado e baixa acuidade visual severa. Se o paciente consegue chegar na primeira consulta em fases iniciais é possível evitar o transplante de córnea, com técnicas hoje consagradas como anel intraestromal e cross linking. Infelizmente não foi possível no caso da Danielle”, é o que conta Dra. Ana Paula M. T. Oguido.
Para realizar o transplante, é necessário se inscrever no Sistema Nacional de Transplante (SNT) que, com as suas centrais estaduais, coordena as cirurgias em todo o país. Esse sistema, explica a Dra. Ana Paula, é reconhecido no mundo todo como um dos mais eficientes, com logísticas de distribuição transparentes, onde cada paciente pode visualizar sua posição na lista de espera.
Quando decidiu pelo transplante, no final de 2020, havia 200 pessoas à frente de Danielle aguardando um doador. Em posse de seu número de cadastro no RGCT (Registro Geral da Central de Transplantes), ela acompanhava periodicamente a evolução da fila: “Quando tinham 20 pessoas na frente, eu tinha quase certeza que chegaria logo. Foram 2 semanas e chegou a minha vez.” E foi assim que, em 18 de junho de 2021, ela recebeu uma córnea compatível que lhe permitiu voltar a enxergar.
O procedimento
A técnica utilizada no transplante de Danielle foi a DALK (do inglês deep anterior lamelar keratoplasty), na qual somente a parte danificada da córnea é transplantada, levando à cura do ceratocone. A Dra. Ana Paula explica, ainda, que a parte mais interna do tecido, a Camada de Descemet, com 20 micra de espessura, é mantida, preservando as células endoteliais. “Essas são células fundamentais da córnea, que permitem que o transplante dure para vida toda, o que não era possível em algumas vezes, com técnicas anteriores, por perda progressiva de células endoteliais da córnea do doador transplantada.”
Prestes a completar um mês da cirurgia, Danielle tem tomado todos os cuidados, como evitar esforço físico e usar colírios, que contribuem para evitar a infecção e diminuir o risco de rejeição da córnea. A Dra. Luciene Barbosa, presidente da Associação Panamericana de Banco de Olhos, explica que esses cuidados são importantes para uma boa recuperação e que o risco de rejeição é maior no primeiro ano após a cirurgia e depois vai diminuindo. “Mas em qualquer tempo, em caso de transplante total (também chamado de penetrante) ela pode acontecer. Existem sinais de rejeição que o paciente deve saber e, quando aparecerem, deve procurar o oftalmologista. Quanto mais cedo for feito o diagnóstico, maior a chance do tratamento salvar a córnea”, completa.
Em casos de rejeição, é mais comum que os sintomas apareçam após os primeiros 14 dias, quando o organismo pode reconhecer a córnea como não sendo dele. Em casos mais raros, ela pode acontecer anos depois. Entre os sinais que podem ser indícios da rejeição, estão a piora da visão permanente (que não melhora após algumas horas ou com colírios), dor constante no olho, desconforto duradouro com a luz e sensação de areia no olho. O paciente deve ser orientado a comunicar seu oftalmologista quando notar qualquer um desses sintomas, assim como ser questionado sobre eles nas consultas de acompanhamento.
Em comparação a outros transplantes, o de córnea tem um diferencial: não precisa de medicação sistêmica para evitar rejeição. Além disso, já existe recuperação visual no pós-operatório precoce, como aconteceu com Danielle. Três dias após a cirurgia o olho já não apresentava vermelhidão e os pontos já estão bastante nítidos. A melhor notícia veio quando ela voltou à oftalmologista para realizar os primeiros testes de lente: conseguiu enxergar de forma que não era possível antes.
Foram necessários 16 pontos no implante da córnea, sendo que o primeiro deve ser removido após 90 dias do transplante. A retirada, porém, depende dos resultados da análise clínica, que deve avaliar a cicatrização e o grau de visão de Danielle. Depois, a remoção acontecerá mês a mês, tirando sempre um ponto por vez. Estando livre dos pontos, é possível controlar o astigmatismo e avaliar a necessidade ou não de entrar na fila novamente para receber uma nova córnea, agora, para o olho direito.
A Dra. Luciene Barbosa explica que, no caso de ceratocone nos dois olhos, o transplante da segunda córnea depende da capacidade visual do paciente, assim como do resultado da cirurgia anterior. “Normalmente não operamos antes de seis meses, para não aumentar o risco de rejeição. Mas sempre devemos considerar a necessidade do paciente e lembrar que quanto mais adiarmos, quando possível, melhor!”
“Doar órgãos é doar vida”
De acordo com o Banco de Olhos do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia, mais de 7.500 pacientes esperam por um transplante de córnea no Brasil. Enquanto isso, dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) apontam que entre janeiro e abril de 2021, foram realizadas 2.560 cirurgias do tipo.
Sempre haverá mais pessoas esperando do que doadores disponíveis, mas um relatório elaborado pela ABTO demonstra que, em comparação ao primeiro trimestre do ano passado, em 2021 houve uma queda de 26% na taxa de doadores (de qualquer órgão e tecido) e de 25% nos transplantes de córnea. A baixa pode ser atribuída à pandemia do coronavírus que levou ao colapso do sistema de saúde do país, com superlotação das UTIs e causando a suspensão das atividades em diversos centros de transplante.
Ocupando o cargo de presidente da Associação Panamericana de Banco de Olhos, Dra. Luciene de Barbosa acompanhou de perto a situação dos transplantes no período e lembra que o sistema de saúde “parou” por seis meses no início da crise sanitária. “Somente eram feitas cirurgias de urgência. Isso fez com que o número de pacientes em fila aumentasse muito. Agora estamos com cerca de 70% de captação dos banco de olhos, e muitos pacientes ainda não se sentem seguros em operar.”
Esse não foi o caso de Danielle, que em seis meses conseguiu realizar sua cirurgia com sucesso, graças à dedicação da equipe cirúrgica e também à família do seu doador. Tudo o que ela sabia sobre ele eram suas iniciais e a idade. Isso porque o Sistema Nacional de Transplantes (SNT) protege a família do doador e impede a divulgação de dados que permitam sua identificação. Somente em casos em que a divulgação pode levar a uma maior conscientização sobre o ato de doar, o SNT permite a revelação após o desejo manifesto, concordância e autorização tanto dos responsáveis legais do doador quanto do receptor.
Danielle descobriu a identidade de seu doador e conheceu sua família, que havia autorizado a doação dos órgãos. Questionada sobre que mensagem gostaria de deixar a quem ainda tem dúvida sobre ser ou não um doador, Danielle diz: “Quando a família sabe da vontade do ente querido fica muito mais fácil dizer sim, e além disso, doar órgãos é doar vida e aumentar o amor ao próximo. Saber que alguém precisa disso para dar continuidade na vivência e saber que você pode colaborar para que isso aconteça é gratificante e acaba confortando o coração da perda.”
A vida pós-cirurgia
O transplante é indicado para pacientes com baixa visão devido a problemas na córnea, ou seja, não é eficiente para problemas na retina ou glaucoma. Isso porque a recuperação é lenta e existem os riscos de complicação.
Danielle – e qualquer paciente que passar pelo procedimento – provavelmente não irá recuperar totalmente sua visão. A maior parte dos transplantados precisa de óculos ou lentes de contato para enxergar normalmente, o que já é representa uma melhora significativa na qualidade de vida de quem, antes, não conseguia ver com nitidez nem mesmo com a ajuda desses acessórios. E como lembra a Dra. Luciene Barbosa, “uma vez transplantado, sempre transplantado”, sendo necessário o acompanhamento constante de um oftalmologista para acompanhar em caso surjam sinais de complicação.
Após a recuperação, a bancária quer voltar a trabalhar, estudar, fazer as coisas que gosta e aproveitar os momentos ao lado das pessoas que ama. Além disso, quer enxergar a vida com novos olhos: “Quando a pandemia passar, viajar e ver as coisas de maneira mais colorida, o que antes não era possível.”
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