Tempo de leitura: 5 minutos

Do total de transplantes realizados no Brasil – no ano passado foram 26 mil – mais da metade se refere ao transplante de córnea, que atingiu a marca de 13,9 mil cirurgias em 2022. Apesar de o índice de resultados positivos ser bastante relevante, a rejeição ao órgão acontece em cerca de 15% dos casos. Nessas situações, é possível um novo transplante? Sim, mas as chances de sucesso diminuem a cada novo procedimento.

Uma solução para estas situações é o uso de ceratoprótese, cujo modelo mais utilizado no mundo é o de Boston, que pode ser montada na própria córnea do paciente. A importação destas próteses ocorre através de projetos de pesquisa, ou por via humanitária, aos pacientes que precisam do tratamento. Com o objetivo de combater as rejeições aos órgãos transplantados e diminuir a dependência de materiais importados, uma equipe de pesquisadores do Departamento de Oftalmologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp) criou uma prótese 100% brasileira.

Lauro Oliveira

“O desenvolvimento da córnea artificial nacional tem como principal benefício a oferta e acessibilidade a uma alternativa terapêutica para pacientes com cegueira de causa corneana que são considerados de alto risco e suscetíveis à falência precoce caso realizassem transplante de córnea convencional. Felizmente, estes casos graves e complexos representam pouco no número total de transplantes de córnea no Brasil. Porém, temos uma lista que aumenta lenta e gradativamente de pacientes com cegueira corneana que poderiam potencialmente ser reabilitados”, revela Lauro Oliveira, professor afiliado do Departamento de Oftalmologia da EPM/Unifesp.

José Álvaro Pereira Gomes

“O benefício da córnea artificial desenvolvida no Brasil é enorme porque a importação de próteses parecidas está muito difícil. Nos últimos dez anos, praticamente paramos de trazer essas próteses por questões regulatórias e de registo. Por isso há um acúmulo de pacientes que aguardam uma solução”, salienta José Álvaro Pereira Gomes, docente líder do projeto ao lado de Paulo Schor e do pós-doutorando Otávio Magalhães.

A ideia de desenvolver uma córnea artificial surgiu quando Magalhães fez o fellowship na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, e teve contato com vários pacientes que usavam a ceratoprótese de Boston. Sobre as chances de sucesso neste tipo de procedimento, ele ressalta que “nos casos de múltiplas rejeições ou insuficiência límbica, as chances de sucesso são superiores a um transplante de córnea convencional. É difícil quantificar, mas ficaria acima de 50%, quando a de um transplante seria menos de 10%”, aponta Magalhães.

A prótese produzida no País é feita com material biocompatível, polímero de acrílico (PMMA) e titânio 3D impresso. Entre seus benefícios estão o custo reduzido e a capacidade de se integrar perfeitamente ao tecido receptor, adaptando-se à córnea danificada do próprio paciente, dispensando, assim, os doadores. A solução é indicada para pessoas com histórico de múltiplas rejeições ao transplante ou para casos em que há grande chance de isso acontecer.

Alberto Blay

A pesquisa foi desenvolvida com o apoio da Agência de Inovação Tecnológica e Social (Agits/Unifesp) e contou com a parceria da Plenum Bioengenharia e da Mediphacos para o codesenvolvimento da córnea. “Nosso papel foi empregar o nosso conhecimento de fabricação e desenvolvimento de peças implantáveis impressas em 3D nesse maravilhoso projeto de devolver a visão para pessoas com comprometimento. Desenvolvemos um suporte extremamente biocompativel e muito delicado para a primeira prótese artificial de córnea do Brasil, peça que acabou se tornando uma patente nacional”, explica Alberto Blay, CEO da Plenum Bioengenharia. “Ficamos muito honrados pela participação nesse projeto colaborativo entre empresa e universidade e por termos conseguido atingir os resultados esperados pelos pesquisadores da Unifesp”, completa.

 

Marcelo Soares

À Mediphacos coube a produção do componente óptico da ceratoprótese. “Tivemos interesse e satisfação em apoiar o projeto por seu caráter inovador e porque existe uma demanda não atendida. O acesso às ceratopróteses importadas é atualmente muito restrito e de alto custo. Assim, o desenvolvimento da ceratoprótese brasileira vai permitir o tratamento de muitas pessoas hoje cegas e que tem nessa tecnologia uma esperança de voltar a enxergar”, frisa Marcelo Soares, presidente da Mediphacos.

Sobre o andamento do projeto
Passados os desafios iniciais de design e definição de medidas para garantir o perfeito encaixe das peças na córnea dos pacientes, e de testar a prótese nos coelhos (etapa em que foi preciso fazer uma queimadura em um dos olhos do animal, mas de tal forma que não danificasse totalmente o olho, para depois executar o procedimento), foi publicado um paper em uma revista relevante e enviado o estudo para avaliação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).

Aprovado o estudo nos coelhos, a comissão autorizou o estudo em três pacientes e, depois de alguns meses, os resultados são positivos. “Tem uma paciente, relativamente jovem, que teve queimadura bilateral, usa a prótese há quase cinco meses e está com visão de 20/30, ou seja, entre 70% e 80%”, conclui Gomes.

Paulo Schor

A próxima fase prevê que mais olhos passem pelo procedimento e, uma vez provada a eficácia do dispositivo, seja aprovado pela Anvisa e, aí sim, poderá ser disponibilizado à oftalmologia brasileira. “Por enquanto estamos na fase de Conep e pesquisa clínica. Entregamos para a comissão os relatórios sobre o andamento de todo o processo e produziremos um dossiê para entregar para a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) depois que tivermos testado a prótese em mais pacientes. Com base nesses dados é que a agência poderá aprovar a comercialização desse implante”, explica Schor.

Um dos desafios enfrentados pelos pesquisadores é o financiamento. “A pesquisa clínica é uma etapa muito custosa que envolve custos de hora de sala cirúrgica, material, recrutamento e transporte de paciente, além da organização dos dados para a produção do dossiê”, aponta. “O mercado é pequeno, e as vítimas desse tipo de trauma têm menos recursos monetários, então, acredito que esse apoio virá de um olhar de prioridade social pois, ainda que seja uma condição relativamente rara, permanece sem solução no nosso meio”, finaliza Schor.

Chris Lopes

Compartilhe esse post