Heloisa Andrade Maestrini
Chefe do Serviço de Glaucoma – Oculare Hospital de Oftalmologia Belo Horizonte. Doutorado em Cirurgia e Oftalmologia pela UFMG.
Todo cirurgião sabe que cirurgia é técnica e arte. Com a chegada das MIGS (Minimally Invasive Glaucoma Surgery) muitas coisas estão mudando no tratamento cirúrgico do glaucoma. No entanto, a trabeculectomia (TREC) ainda reina soberana entre as técnicas cirúrgicas, por seu baixo custo, sua alta eficácia e versatilidade, sendo extremamente útil em diversas situações. Quando fazemos uma TREC, precisamos utilizar uma técnica apurada e elegante, buscando não apenas um bom resultado funcional, mas também estético. Uma boa TREC deve resultar em uma bolsa filtrante de tamanho e altura adequados, difusa, que proporcione um bom controle da PIO, que seja confortável para o paciente, tenha as paredes saudáveis e fique recoberta pela pálpebra, protegida assim contra infecções.
Infelizmente, mesmo utilizando uma técnica primorosa, nem sempre o resultado é exatamente o que gostaríamos. Nem tudo depende do cirurgião, pois o processo de cicatrização de cada paciente é extremamente variável. Muitas vezes operamos vários pacientes em um mesmo dia, com idêntica técnica cirúrgica, e obtemos resultados completamente diferentes, pois nem tudo está sob nosso controle.
A primeira situação frustrante é a falência da TREC. Sabemos que a TREC é uma cirurgia antifisiológica, pois desafia a lógica do organismo de sempre querer cicatrizar qualquer ferida. Quando o processo de cicatrização é muito intenso, a TREC simplesmente se fecha e deixa de funcionar. Nesta situação, é perfeitamente possível recuperar a função da maioria das TRECs falidas, não importando há quanto tempo a cirurgia tenha sido feita. Aqueles que me conhecem sabem o quanto aprecio e divulgo a técnica do agulhamento para a recuperação das TRECs falidas. Trata-se de técnica extremamente útil, simples, rápida, barata, bastante segura e muito eficaz. Todo agulhamento deve ser realizado com algum anti-mitótico, de preferência a mitomicina-C (MMC), que é mais prática e eficaz do que o 5-fluoro-uracil (5-FU)1. Quando o agulhamento é realizado adequadamente, é possível refazer o fluxo pela fístula em mais de 90% dos casos2,3. Os resultados do agulhamento são parecidos com os da TREC, com taxas de sucesso em torno de 80 a 90% após 1 ano2,4 e 75% após 2 anos5,6. É importante ter em mente que, para melhores resultados, muitas vezes o agulhamento precisa ser repetido. Isso é muito claro em quase todos os trabalhos na literatura sobre o assunto2,3,7-9. Essa necessidade de repetição acontece devido ao contínuo processo de cicatrização de nossos pacientes, que faz com que várias fístulas voltem a se fechar após algum tempo. Interessante observar que, em muitos casos, após 2 ou 3 agulhamentos, a fístula se estabiliza e não mais se fecha. Sempre digo que não devemos desistir após a falência de um primeiro agulhamento. Muitas vezes o sucesso está logo ali na esquina, após o segundo ou o terceiro procedimento.
Em alguns casos, a TREC ainda está funcionante e a PIO adequada, mas a cirurgia mostra importantes sinais de que pode vir a falir, principalmente a vascularização intensa da bolsa. Nesta situação, as injeções subconjuntivais de anti-mitóticos podem ajudar a reduzir a vascularização e a fibrose no local. Tradicionalmente usava-se o 5-FU, na dose de 5 mg, 1 ou 2 aplicações por semana, até um máximo de 10 aplicações. No entanto, com a falta do 5-FU no Brasil, a MMC é a principal escolha, na dose de 12 a 25 µg, geralmente em dose única.
Um tipo especial de falência é o encistamento da bolsa. Nestes casos, forma-se um cisto de Tenon sobre o flap escleral, que restringe fortemente a passagem do humor aquoso. Na maioria destes casos podemos observar que o flap escleral encontra-se um pouco levantado e o óstio interno da TREC fica muito aberto. Como a passagem escleral está muito aberta, o cisto funciona como uma restrição ao fluxo, uma proteção do organismo contra a hiperfiltração. Nesta situação, o tratamento clínico com hipotensores, com ou sem massagens sobre o cisto, pode ajudar até que o cisto eventualmente se desfaça. No entanto, muitas vezes, é necessário intervir cirurgicamente. O agulhamento pode ser útil10, mas é importante romper todas as paredes do cisto com a agulha para evitar sua recidiva. É preciso estar preparado para o grande fluxo de aquoso que ocorre no momento em que o cisto é rompido, sendo muito comum a ocorrência de câmara anterior bem rasa durante o procedimento. Atualmente, ao agulhar bolsas encistadas, muitas vezes, faço uma ou duas suturas transconjuntivais nas laterais do flap escleral para evitar que ele permaneça levantado e evitar o hiperfluxo precoce11,12. Estas suturas podem ser facilmente removidas assim que necessário.
Existe um outro tipo de falência que ocorre devido à obstrução parcial do óstio interno por uma fina membrana pigmentada. Isso ocorre com maior frequência em pacientes portadores de uveíte. Nestes pacientes, observamos a presença de uma boa bolsa filtrante, porém a PIO está elevada. Quando examinamos com cuidado o óstio interno da TREC, verificamos a presença de uma fina membrana no óstio. Esta membrana pode ser facilmente rompida com o YAG laser, aplicado no óstio através do espelho de uma lente de Goldmann, com uma potência aproximada de 5 a 7 mJ. Quando o procedimento é eficaz, pode-se observar a queda imediata da PIO.
Outra situação frustrante é quando a TREC funciona, mas a aparência da bolsa filtrante não é boa: muitas vezes está restrita por um anel de fibrose e tem suas paredes finas e isquêmicas. Estas bolsas podem ser extremamente incômodas para os pacientes, além de serem mais frágeis, mais propensas a vazamentos e infecções. Nestes casos, também nosso querido agulhamento pode ser muito útil para romper o anel de fibrose e permitir que o fluxo do aquoso se espalhe por áreas mais saudáveis da conjuntiva. Muitas vezes obtemos bolsas mais saudáveis e difusas após o agulhamento. No entanto, em muitos casos, o anel de fibrose volta a se formar e a bolsa volta a ficar restrita. Nestes casos, uma revisão mais ampla pode ser necessária, com a ressecção da parte isquêmica da bolsa e o avanço da conjuntiva saudável.]Outra situação é quando o fluxo do humor aquoso vai para regiões inadequadas do olho, como o bulbo nasal ou temporal, fazendo com que a bolsa filtrante fique exposta na fenda palpebral. Essa situação gera grande desconforto devido ao ressecamento da região exposta e à formação de dellen na córnea adjacente à bolsa filtrante. Nestes casos é importante determinarmos a causa desse deslocamento da bolsa para a fenda palpebral. Em alguns pacientes, observamos que a bolsa desce porque ocorreu um aplanamento na região superior, impedindo o humor aquoso de ir para o lugar correto. O humor aquoso vai para o local de menor resistência e acaba descendo pela conjuntiva do bulbo nasal ou temporal. Nestes casos, também o agulhamento pode ser útil ao desfazer as aderências na região superior. Assim, o humor aquoso passar a se difundir para a região correta e não mais irá descer para a conjuntiva nasal ou temporal. No entanto, em outros pacientes a bolsa desce pelo bulbo apenas por ser grande demais, hiperfuncionante. Nestes casos, suturas compressivas transconjuntivais podem ser posicionadas nas laterais da bolsa para restringir o fluxo.
Em alguns casos a restrição ao fluxo posterior é tão intensa que a bolsa filtrante desce sobre a córnea, gerando desconforto e uma estética muito ruim. Nestes casos, a parte corneana pode ser simplesmente dissecada e excisada. Pessoalmente, nestes casos, sempre associo o agulhamento à ressecção da parte corneana da bolsa, pois é importante atuar na causa. Se o que faz a bolsa descer pela córnea é a restrição posterior ao fluxo, é necessário resolver esta situação, permitindo que o humor aquoso se difunda para a conjuntiva mais posterior. Aqui entra o papel do agulhamento na remodelação destas bolsas.
Outra situação frustrante é quando ocorre o vazamento espontâneo de humor aquoso pela bolsa, gerando o Sinal de Seidel positivo. Esta é uma situação de grande risco para infecções. Muitos casos de endoftalmite ocorrem em bolsas assim. O vazamento precoce, nos primeiros dias, ocorre geralmente por algum erro de técnica durante o fechamento da conjuntiva. Estes vazamentos aumentam o risco de falência de nossa cirurgia, pois não permitem a elevação da bolsa, ocasionando a aderência da conjuntiva à esclera. Felizmente, na maioria dos casos, esses vazamentos são temporários e de resolução espontânea. Raramente é preciso voltar ao bloco cirúrgico para refazer a sutura conjuntival. Em alguns casos, pode ocorrer um vazamento um pouco mais tardio, após os primeiros dias ou semanas, por aderência da conjuntiva sobre o flap escleral ou pela formação de um anel de restrição conjuntival. Como o humor aquoso não consegue se difundir para a região correta, ele acaba vazando por alguma região mais frágil da sutura. Nestes casos, o agulhamento pode ser muito útil, ao romper o anel de restrição ou ao permitir a elevação da bolsa e a correta difusão do humor aquoso. É interessantíssimo observar a resolução imediata do vazamento logo após o agulhamento, assim que a bolsa filtrante se eleva e se difunde. Há também aqueles casos de vazamento ainda mais tardio, que surgem após meses ou anos. Estes pacientes geralmente apresentam bolsas finas e isquêmicas e o humor aquoso acaba percolando através da parede da bolsa. O agulhamento pode ser útil também nesses casos, pois pode ajudar o humor aquoso a se difundir para áreas mais saudáveis da conjuntiva, reduzindo a pressão sobre a área isquêmica. Mas aqui também, às vezes, é necessário ressecar a parte isquêmica da bolsa e avançar a conjuntiva saudável.
Em alguns casos, nossas TRECs ficam hiperfuncionantes, o que resulta em hipotonia, com todas as suas consequências, tais como câmara anterior rasa, descolamento de coroide e maculopatia hipotônica. Existem muitas técnicas cirúrgicas para se tratar a hipotonia, desde injeção de sangue autólogo na bolsa até a revisão aberta da cirurgia com eventual enxerto de esclera sobre o flap escleral. Atualmente, minha técnica de eleição tem sido as suturas transconjuntivais13-15, suturando o flap escleral e/ou fazendo-as compressivas sobre o flap, no formato de um X. A técnica é rápida, simples, eficaz, preserva o funcionamento da cirurgia e permite a fácil remoção das suturas no pós-operatório, quando necessário.
Como pudemos observar, existem muitas maneiras de melhorar os resultados de nossas trabeculectomias, resgatando seu funcionamento ou simplesmente tornando as bolsas mais elegantes, seguras e confortáveis. Cirurgião e paciente devem ser eternos parceiros no cuidado pós-operatório. Só assim podemos continuar construindo estas pequenas obras de arte que são nossas cirurgias e cumprir nossa missão na luta contra a cegueira pelo glaucoma.
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Fonte: Universo Visual