Ah, a pandemia…
É, ela mudou tudo. A epidemia global (em que ainda vivemos!) transformou praticamente todos os setores da economia, bem como valores e hábitos da nossa sociedade. E, claro, por se tratar de uma emergência sanitária era evidente que mudanças na medicina e nas demais áreas da saúde também surgiriam. Com práticas mais que estabelecidas, mas com um interesse constante pela inovação, profissionais da área estão diante de um momento histórico e de quebra de paradigmas. Como dizem alguns futuristas internacionais, “a COVID-19 serviu como um acelerador de futuros”. Ou como bem afirmou o biólogo Átila Iamarino: “o mundo não será mais como antes”. Interessante é pensar que iniciar uma discussão sobre a regulamentação da telemedicina nos tempos pré-pandêmicos era verter em polêmica, não é mesmo?
Gradativamente, com a flexibilização das medidas de proteção e isolamento, a discussão sobre o melhor formato de trabalho e ensino aumentou, variando entre a volta ao presencial, o home office (remoto) e o híbrido (à distância com períodos presenciais).
Há algumas décadas o modelo híbrido, principalmente nas áreas de ensino, já vem sendo discutido e implementado. Espelhado em tantos casos de sucessos de ensino à distância (EAD), a educação na saúde também já vinha se beneficiando do modelo mesmo antes da chegada da COVID-19 em 2020, mas ganhou força mesmo após as instituições serem obrigadas a procurar alternativas ao ensino tradicional. Segundo censo do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), de 2009 a 2019, a modalidade EAD teve um salto de 378,9% nas matrículas, um aumento de 4,7 vezes. Nos cursos presenciais o crescimento foi de apenas 17,8%.
A Coordenadora do Curso de Especialização da Fundação Altino Ventura, Bruna Ventura, não tem dúvidas: as atividades que não demandam contato direto com o paciente, principalmente, são as mais beneficiadas pelo formato híbrido. “Avaliar e laudar exames, por exemplo, isso tudo eu posso fazer de casa. Hoje atendo pacientes de todas as regiões do Brasil e inclusive da América Latina. Majoritariamente as primeiras consultas são feitas todas online, por um sistema específico e interligado com o nosso prontuário eletrônico, seguindo as normas da LGPG (Lei Geral de Proteção de Dados) e garantindo segurança aos dados dos pacientes. No entanto, sabemos que, para o médico, o atendimento assistencial presencial nunca deixará de existir”, comenta. Com relação às áreas administrativas do Hospital e ao ensino na Fundação, Bruna também elenca cenários positivos. “O home office tem sido muito importante para os colaboradores mesclarem momentos presenciais e em casa”, destaca. Vale lembrar ainda que o trabalho remoto evita a necessidade de estar em espaços com grande aglomeração, como ônibus e metrôs, especialmente em horários de pico.
Outro dado relevante vem de um levantamento do Google: em 2020 a busca por instituições de ensino que ofereciam cursos à distância aumentou cerca de 130%. É importante lembrar também que o EAD no país se tornou uma opção viável de graduação para uma parcela da população que não tinha acesso ao ensino superior, seja por estar longe do campus universitário, seja por falta de renda para arcar com os custos.
Para o Diretor Superintendente do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, Luiz Vicente Rizzo, há áreas que são mais afeitas para o modelo híbrido que a área médica. “Nosso serviço de estatística, por exemplo, hoje conta com estaticistas que moram em outros estados. Na ponta não tem à distância, você pode ficar remoto se sua atividade é de suporte. No entanto, não tem como implantar um stent de forma remota, nem com o 5G”, detalha. Rizzo reforça ainda que, “muito do que você aprende da cultura de uma instituição, e a cultura é muito importante para as grandes instituições, você aprende no convívio. Os seres humanos requerem presença. A vantagem é que para o colaborador, especialmente os mais jovens, isso (o modelo híbrido) apresenta um sistema que se adapta ao pensamento geral desta geração. Talvez seja irreversível”.
É também a opinião de Maria Auxiliadora M. Frazão, Diretora do Departamento de Oftalmologia da Santa Casa de São Paulo e Coordenadora da Comissão de Ensino do Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO). “A pandemia de fato serviu como catalizador de muitas mudanças que já vinham acontecendo. O ensino à distância foi uma das áreas mais impactadas. Seu poder de alcance e praticidade são indiscutíveis e muito provavelmente não teremos volta”, declara.
Casos de sucesso na oftalmologia
Com relação ao ensino na oftalmologia, Bruna também acredita ser bem interessante a aposta no ensino à distância. “A ampla maioria de nossas aulas já estão gravadas, disponíveis online no Google Classroom, e nossos residentes acessam de onde e na hora em que quiserem, puderem. Então não tem mais quem está rodando na emergência não pode assistir aula e perdeu”., explica. Esse método permite ainda, lidar com a diversidade de alunos, respeitando suas prioridades e estilo e tempo de aprendizagem, por exemplo.
O professor afiliado da UNIFESP e editor-chefe do International Journal of Retina and Vitreous, Gustavo Barreto de Melo, a pandemia de fato contribuiu para uma rápida progressão das tecnologias e para o desenvolvimento desses modelos inovadores de trabalho e educação. “Foi uma evolução rápida e de qualidade para os serviços que podem ser executados remotamente e, no melhor dos cenários, no modelo híbrido”, avalia. “Existem algumas situações em que distância vai impedir a realização de determinadas atividades. No entanto, hoje já se sabe que remotamente um cirurgião pode controlar um robô e realizar uma cirurgia. Entretanto, na realização de exames e interpretação de imagens, principalmente na oftalmologia, é possível chegar a uma conduta para o caso mesmo com o médico atuando remotamente.”
Para Melo a principal vantagem do modelo é unir o melhor dos dois mundos. “É a possibilidade de reunir pessoas de diversos lugares do mundo, aulas teóricas, sem a necessidade de sair de casa. A complementação presencial é determinante, afinal a relação médico-paciente é essencial. As grandes desvantagens, contudo, se referem à dependência e disponibilidade de tecnologia, internet de qualidade e a perda da relativa das relações interpessoais”. Nessa junção de modelos, presencial e remoto, a produtividade também ganha, segundo o médico. Ele, que também é retinólogo no Hospital de Olhos de Sergipe e coordena, como voluntário, o Projeto Iluminar, leva prevenção da retinopatia diabética ao sertão sergipano por meio do uso da Inteligência Artificial embarcada no retinógrafo portátil Eyer. “Essa é uma perfeita combinação do modelo híbrido de atendimento”, exemplifica.
Outro exemplo vem do próprio CBO, que vem investindo bastante em ensino à distância e em ações de apoio na formação e informação de oftalmologistas, conforme contou Maria Auxiliadora à Universo Visual. “A plataforma de gestão de ensino e aprendizagem do CBO oferece cursos nas diferentes subespecialidades, onde todos os alunos de cursos credenciados têm acesso. Temos cada vez mais nos aproximado destes cursos com objetivo de apoiar a formação cada vez melhor, dentro do que se entende como necessário para uma prática ética e tecnicamente satisfatória. Publicamos em 2021, a matriz por competências em oftalmologia que deve servir de diretriz para formação do especialista em todo território nacional , informa a Coordenadora da Comissão de Ensino.
A potência da flexibilidade
“No ensino tem coisas que dá para fazer e outras que não dá. Simples assim. Novamente, ensino prático é presencial. A grande vantagem é que um cara fora dos centros de excelência pode ter aulas com gente excelente à distância. O exemplo disso para mim é a pós-graduação senso estrito. Nenhuma aula teórica precisa ser presencial. As atividades de aquisição de dados, para tese ou dissertação precisão ser presenciais. No caso da residência médica ou multiprofissional, não há impacto mensurável visto que estas são atividades iminentemente presenciais”, explica Rizzo.
Bruna destaca um outro ponto sobre a questão das pesquisas. “A gente também consegue se reunir com pessoas de todo mundo, o que é muito para a pesquisa. A facilidade de dar aulas e webinars várias vezes por semana, por exemplo. Sem essa possibilidade, seria impossível dar uma aula na Califórnia num dia e outra em São Paulo no dia seguinte , diz. Ao mesmo tempo, para ela, o presencial continua tendo muitas vantagens. “As trocas de experiência nos bastidores, o networking, isso é insubstituível , conclui. E Rizzo corrobora. “Os congressos médicos creio que serão mistos daqui para a frente. Enquanto haja um atrativo para a frente presencial, a possibilidade de assistir à distância é muito atrativa economicamente tanto para os participantes como para os organizadores. Penso que enquanto for possível haverá sempre alguma coisa presencial em congressos médicos, mas a tendência de ter muita gente à distância deve progredir tanto pelas razões econômicas quanto uma questão ambiental que será cada vez mais discutida”, reforça.
Os desafios
Rizzo acredita que todo mundo ainda está tentando se ajustar. “Quando não havia escolha era uma coisa, agora o balanço entre necessidades institucionais e trabalho à distância como retenção de pessoal fica mais complicado. Penso que ainda vão uns anos para haver um padrão a ser seguido, os resultados de alguns meses ou até anos não será preditivo de desempenho a longo prazo”, expõe.
“É um desafio, sem dúvida. Existem limitações, principalmente no que tange a avaliação de aspectos comportamentais e de conduta perante pares, grupos de inserção e pacientes. O aprendizado por modelo tem-se mostrado importante no desenvolvimento da capacidade de ampliação do raciocínio médico e respostas as sociedades médica e civil. Há muito já se sabe que a única fonte inesgotável de riqueza é o conhecimento e que existe escassez no mercado para o número de médicos que estão se formando. Muitas empresas e grupos estão oferecendo ensino a distância, alguns sem campo de prática. Acho ainda cedo para indicar quais terão sucesso, visto que o objetivo, em resumo, é avaliar como os profissionais respondem às necessidades da sociedade. Reitero: campo de prática, ensino por modelo e avaliação de competências são fundamentais e insubstituíveis na formação do aluno”, encerra Maria Auxiliadora.
Entrevista com Marc Tawil
Marc Tawil é estrategista de Comunicação, Nº 1 LinkedIn Top Voices e três vezes TEDxSpeaker. Colunista semanal de Época Negócios e podcaster da Jovem Pan desde 2019. Em suas palestras, aborda temas como Futuro do Trabalho, Futuro da Comunicação, Web3, Posicionamento Digital, Evolução das Marcas e Sociedade 5.0. Em 2023 publica pela editora HarperCollins Brasil o livro “Seja Sua Própria Marca”.
1) Em sua opinião o modelo híbrido de trabalho e ensino veio para ficar?
Sem dúvida que sim. Precisamos entender, contudo, que o hibridismo vai muito além do “presencial X virtual”. Esta dicotomia caminha junta também nas relações amorosas, nas habilidades (skills) do mundo trabalho, na forma como compramos e vendemos, fazemos esporte, nos entretemos e até nos relacionamentos. Repare que se trata de uma tendência que se cristalizou, mas não foi algo criado pela pandemia. O mundo já caminhava a passos largos para esta nova realidade.
2) Como lidar com a distância em profissões que exigem tanto da prática (como as áreas da saúde, por exemplo)?
Este é um desafio permanente: como gerir, capacitar, qualificar, controlar e, claro, colher os resultados de algo tão sensível à distância? Na minha opinião, a saída está na tecnologia e em uma abertura de consciência e visão de mundo que permitam abraçar esta tecnologia com uma visão de “e” e não de “ou . Isto significa que somos nós “e” a medicina 4.0; nós e as cirurgias robóticas; nós e as teleconsultas; nós e a ciência de dados. Existe um caminho que vem se desenhando nesse sentido que, a meu ver, as novas gerações compreendem e aceitam melhor.
3) Quais são as vantagens e desvantagens do modelo?
Eu acredito que as grandes vantagens do modelo híbrido estão em melhor qualidade de vida; economia de tempo gasto no trânsito; segurança; menor estresse e possibilidade de autogerenciamento. A produtividade também se eleva, quando aprendemos a gerenciar os dois mundos. Existe uma questão de custos também, só que ela vai variar de profissional para profissional e de empresa para empresa. A desvantagem está na perda da socialização, do encontro; risco de maior dependência da tecnologia; risco de problemas de saúde mental, cada vez mais comuns nos últimos três anos.
4) Quem no mercado, em sua opinião, está fazendo isso bem e com sucesso?
Diversos segmentos têm apresentado bons resultados quando falamos em mundo híbrido. O setor de comunicação, por exemplo, aprendeu a trabalhar de forma assíncrona. No Direito, a tecnologia fez com que processos fossem acelerados e inúmeros documentos digitalizados, deixando profissionais se dedicarem ao estudo e à aplicação, e menos a burocracia. Vimos um salto de qualidade em empresas digitais, que passaram a contratar pessoas e qualificá-las ao redor do mundo, com menor custo, maior agilidade, mais diversidade inclusão. Aprendemos com a logística 4.0 e a poluir menos o planeta. Não existe tamanho único nem uma régua para medir os esforços e os resultados conquistados em segmentos múltiplos. O ideal é personalizar.
Fonte: Revista Universo Visual
Autor: Camila Abranches