Por Rubens Belfort Jr.*
Há mais de 80 anos os transplantes de córnea são realizados com alto nível de sucesso e também nessa área nossos cirurgiões sempre despontaram. Mas o recente desenvolvimento tecnológico exige procedimentos mais complexos no enxerto.
Não muito tempo atrás, o globo ocular era enviado inteiro ao centro transplantador, cabendo ao cirurgião, na sala operatória, preparar e utilizar a córnea doada. As cirurgias, portanto, eram obrigatoriamente de urgência, uma vez que o tempo ideal entre o óbito do doador e o transplante não devia ser maior do que 12 a 24 horas.
Na década de 1980, os meios de conservação tornaram-se mais efetivos, permitindo que o transplante fosse realizado até vários dias depois da morte do doador. Dessa forma, e paralelamente ao progresso obtido com o uso de laser, foi possível escolher a melhor córnea doada para cada paciente, com resultados mais satisfatórios e menor risco.
Apesar do envelhecimento da população em geral, a indicação do transplante de córnea no Brasil é muito baixa. De fato, foram feitos apenas cerca de 11 512 transplantes de janeiro a setembro de 2017 (74,5 a cada milhão de habitantes por ano). Como comparação, vale citar que, nos Estados Unidos, realizam-se mais de 200 transplantes de córnea por dia (257 por milhão de habitantes a cada ano).
No Brasil, a doação de córnea é bem recebida pela população. Representa, porém, apenas o início do processo como um todo e que cada vez se torna mais complexo. Nos últimos anos, a tecnologia explodiu e não se trata mais de receber apenas a córnea na solução de conservação.
De acordo com o local exato da doença do receptor, a córnea doada deve ser preparada com antecedência, possibilitando ao cirurgião substituir apenas a parte posterior ou anterior, desta ou daquela maneira e com o formato mais adequado para a recuperação visual. A córnea a ser transplantada é preparada nos bancos de olhos, em condições de assepsia cirúrgica, onde é examinada com microscópio, moldada e cortada, cada vez mais frequentemente com laser de alta precisão, no formato mais adequado para o paciente. Esse procedimento é feito em duplicata para que, no caso de um imprevisto, não seja necessário abortar a cirurgia ou, pior ainda, realizá-la em condições menos favoráveis para o paciente.
Aí que está. No Brasil, certas regulamentações impedem, mesmo em faculdades e centros de excelência, realizar projetos inovadores capazes de melhorar o sistema como um todo. Deixamos, assim, de formar cirurgiões de córnea adequados ao presente e ao futuro, comprometendo gerações que estão por vir.
Dessa forma, somente resta aos jovens cirurgiões aprender as técnicas mais modernas nos Estados Unidos e na Europa. Quando regressam trazendo conhecimentos, terminam frustrados. É um desperdício de recursos financeiros e intelectuais.
Estamos cada vez mais próximos de uma situação em que, por obrigação ética, com vistas à realidade nacional e colocando sempre o paciente em primeiro lugar, teremos de explicar a eles e mostrar vantagens da realização dessas cirurgias no exterior. E, se for o caso, enviá-los para lá.
Como mandar pacientes ao exterior para realização de cirurgias é muito caro, talvez esses procedimentos sejam também judicializados. Assim como vários outros tratamentos no Brasil.
A judicialização é sempre indesejável, mas previsível em muitos casos. Por vezes, é a única maneira de garantir direitos individuais.
Claro que as causas da judicialização precisam ser bem entendidas para combatermos seus excessos, que levam à piora na assistência e à desestruturação do sistema coletivo. Por outro lado, o que fazer com uma família desesperada ao ver uma criança caminhar para uma deficiência visual? Ou com um idoso que sonha em enxergar seus últimos anos de vida?
Veja: não estou apenas me referindo ao Sistema Único de Saúde (SUS) e aos convênios mais populares. A falta de recursos e a regulamentação inadequada no Brasil impedem o recebimento de córneas bem preparadas por tecnologia adequada a todos os centros em atividade. Sim, todos.
E, se córneas de alta qualidade já são disponibilizadas por bancos de vários outros países, por regulamentação internacional esses centros são proibidos de atuar no Brasil. Assim, mais recursos e liberdade de atuação são fundamentais para conseguirmos superar essas barreiras e a ambliopia nacional.
A falta de investimento em pesquisa está trazendo prejuízos enormes, com repercussões dramáticas que comprometem o futuro da medicina brasileira também nesta área. Ela também mostra que, quando alguém defende a pesquisa e as universidades, está também defendendo melhoria das condições de vida e da saúde da população. A falta de investimento custa um preço muito caro. Impagável.
*Rubens Belfort Jr é presidente do IPEPO Instituto da Visão, membro titular da Academia Nacional de Medicina e da Academia Brasileira de Ciências, professor titular de oftalmologia, Escola Paulista de Medicina, Unifesp
Fonte: Saúde Abril