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Falta do uso de equipamento de proteção, acidentes, quedas, queimaduras com produtos químicos, crianças que se machucam com objetos pontiagudos. A lista de fatores que contribuem para a entrada de pacientes com traumas oculares nos serviços de emergência é grande. Essas lesões constituem a principal causa de cegueira entre pessoas com menos de 50 anos. 
“O olho é a comunicação com o mundo. Apesar de representar 0,1% do nosso corpo, um estudo aponta que durante as guerras os olhos são responsáveis por 10% dos traumas”, declara Emerson Castro, membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Trauma Ocular e oftalmologista do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo. “Fui chefe da Oftalmologia do Hospital das Clínicas (na capital paulista) por cinco anos e era o setor que mais atendia no HC inteiro, representando 15% de todos os atendimentos do hospital”, diz. 
E os casos de trauma são os mais variados. Séculos atrás, a falta de equipamento de proteção nos olhos levou à morte o rei da França Henrique II. Em 1559, durante um duelo sobre cavalos em que os cavaleiros ficavam paramentados com armadura e elmo, Gabriel de Montgomery, capitão da guarda escocesa, atingiu o olho do rei com uma lança. “Henrique II estava com o visor levantado e a espada de madeira furou a órbita dele. Morreu por um trauma ocular. Desde aquela época o ser humano tem dificuldades em seguir regras”, conta Castro.
Normas que, segundo Castro, são fundamentais para o atendimento de trauma ocular. “Felizmente, há muitas regras em pronto-socorro e isso dá suporte para tudo”, diz. A base delas é o Advanced Trauma Life Support (ATLS), um conceito de gerenciamento de trauma criado nos Estados Unidos no final dos anos 1970. Em 1976, o médico ortopedista James Stimmer pilotava seu avião e sofreu um acidente. Na ocasião, o atendimento hospitalar recebido por ele e sua família na pequena cidade próxima ao acidente foi sofrível. “Ele ficou apavorado com o atendimento que recebeu. Transferiu toda a família para um hospital grande nos Estados Unidos. A partir dessa experiência criou o ATLS”, explica. 
Graças a essa ferramenta, o tratamento do trauma evoluiu significativamente nos últimos 40 anos. “Existem regras, tem a preparação, a triagem do paciente, o exame primário, além de saber a história, que é importante para verificar se o traumatismo ocular foi de acidente de alto impacto. Se a pessoa caiu da laje, por exemplo, tem de avaliar a circulação. Descartou o risco de vida, parte para o exame secundário e aí sim entra o oftalmológico. O médico tem de estar com tudo isso em mente. A triagem é fundamental”, explica. “O mais importante do atendimento de trauma ocular é pensar o que fazer com o paciente para minimizar a ocorrência de mais lesões, riscos de infecção, trauma psicológico da vítima e da família, e minimizar os aspectos legais”, completa Castro. 
No dia-a-dia do Pronto Socorro
Francisco José de Lima Bocaccio, professor do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Chefe do Serviço de Oftalmologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), relata que a maioria dos atendimentos na urgência do Hospital de Pronto-Socorro de Porto Alegre, referência de trauma em oftalmologia, são em homens com idade produtiva, variando entre 17 e 60 anos. “São obreiros em serralheria, construção civil e demais funções de trabalho pesado. Experiência que se confirma, ainda hoje, em nossas aulas práticas com os alunos do sétimo semestre da graduação. Em menor número estão os acidentes domésticos envolvendo crianças. O que nos chama a atenção são os casos de maus tratos infantis, evidenciados durante a história e confirmados nos achados de fundo de olho na síndrome da criança sacudida (shake baby)”, revela.
Bocaccio  comenta que as complicações mais comuns dos casos recebidos em pronto-socorro são as decorrentes de hifemas graus III e IV, como glaucoma pós-traumático, hemorragias vítreas isoladas ou associadas a descolamentos e ou rupturas da retina, cataratas traumáticas com ou sem luxação do cristalino. “Em sua maioria, esses casos acarretam acentuada baixa da acuidade visual, causando prejuízos socioeconômicos para os pacientes em particular e à sociedade em geral. O longo tempo de recuperação visual, o custo do tratamento aliados à ausência ao trabalho, ao encosto e aposentadorias precoces promovem o aumento da carga horária e do volume de trabalho dos demais funcionários”, afirma o professor da UFRGS.
Pedro Antonio Nogueira Filho, oftalmologista e chefe do Pronto-Socorro do Grupo H. Olhos/Vison One, e vice-presidente da Sobreto (Sociedade Brasileira de Emergência e Traumatologia Ocular) aponta que no pronto atendimento as ocorrências são as mais variadas possíveis. “Vão desde o acometimento das pálpebras até lesões profundas e que comprometem o polo posterior do globo ocular. Sejam traumas contusos por trauma direto ou mesmo aqueles atrelados a lacerações, perfurações e/ou roturas das estruturas dos olhos”, diz. 
O médico explica que para classificar os traumatismos oculares foi criada a BETT (Birmingham Eye Trauma Terminology), reconhecida e endossada por organizações internacionais, como a Academia Americana de Oftalmologia, a Sociedade Americana de Trauma Ocular e suas mais de 30 afiliadas em todo o mundo, a Sociedade Americana de Especialistas em Retina, a Sociedade Internacional de Trauma Ocular e a Retina Society. 
“A BETT fornece uma plataforma que padroniza a descrição dos tipos de lesões oculares, independentemente da nacionalidade, do local de prática ou treinamento do oftalmologista. Uma vez estabelecida a classificação das lesões traumáticas, o grupo responsável pela sua criação avaliou mais de 2.500 olhos a fim de analisar possíveis achados clínicos e epidemiológicos que pudessem estar correlacionados com o prognóstico visual do paciente após seis meses”, comenta Nogueira Filho. Dessa forma foi criado o Escore de Trauma Ocular (Ocular Trauma Score – OTS). “Os escores do OTS variam de 1 (lesão mais grave e pior prognóstico ao final de 6 meses) a 5 (lesão menos grave e melhor prognóstico ao final de 6 meses). Cada pontuação se associa a uma gama de potenciais acuidades visuais previstas após 6 meses da lesão”, completa.
De acordo com o chefe do pronto-socorro do Grupo H.Olhos, análises estatísticas evidenciam que tal escore apresenta acurácia de 80%. “De acordo com os estudos, os principais fatores relacionados ao pior prognóstico visual após seis meses são baixa da acuidade visual prévia (logo após o trauma) e presença de defeito pupilar aferente no olho lesionado”, informa. 
Outro fator que apresentou importante valor prognóstico foi a zona ocular acometida pelo trauma. Ele explica que de acordo com o BETT, o trauma contuso pode acometer três diferentes zonas: zona I (lesões superficiais da conjuntiva bulbar, esclera e córnea), zona II (cristalino e segmento anterior) e zona III (retina, vítreo, úvea e nervo óptico). Nos casos de trauma aberto, a zona I caracteriza-se pelo acometimento da córnea e limbo, zona II corresponde aos 5 mm do limbo até 5 mm da esclera e a zona III, distância na esclera maior que 5 mm a partir do limbo. Traumas que acometem a zona III estão relacionados a um pior prognóstico. 
“Diante disso, é possível perceber não apenas a importância de uma anamnese e exame clínico no manejo do trauma ocular, como também da adequada e padronizada classificação do trauma, uma vez que esta será mandatória na conduta e, portanto, no prognóstico do caso. Certamente, não há dúvidas do quão importantes foram estudos como BETT e OTS na história do trauma ocular”, aponta Nogueira Filho. “O conhecimento aprofundado das lesões potenciais é fundamental para garantir um diagnóstico rápido, para evitar mais danos aos olhos e para preservar a capacidade visual”, completa.
Desafios 
Para Bocaccio, um dos principais desafios da especialidade de trauma oftalmológico é amplificar a conscientização da sociedade para a prevenção dos traumas e acidentes. “Conscientizar o empregador e o empregado quanto ao necessário uso e melhoria da qualidade dos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). A má qualidade dos óculos de proteção – vedação inadequada – embaçamento e as condições inadequadas de higiene e ventilação, nos confinados ambientes de trabalho, induzem ao não uso dos mesmos propiciando o acidente”, comenta o professor da UFRGS. 
Ele comenta ainda que é preciso melhorar e ampliar os conhecimentos das pessoas que trabalham nos serviços de emergência e que não são oftalmologistas de plantão, com orientações das condutas no primeiro atendimento e da importância do encaminhamento precoce ao especialista. “É relevante lembrar que a exaustiva e abundante lavagem da superfície ocular, mesmo com água corrente, imediatamente após uma queimadura química poderá representar um melhor prognóstico visual para o paciente”.
Castro também ressalta a importância da conscientização e lembra que 90% dos traumas são preventivos. “Sabemos que 50% dos traumas infantis acontecem dentro de casa. Além disso, há vários casos em que no trabalho o sujeito usa proteção e em casa vai fazer um serviço parecido e se machuca. O rei que morreu tinha o elmo e não estava usando. O cinto de segurança já estava em vigência há 15 anos e todo dia tinha olho furado no pronto-socorro pela falta de uso do cinto. É preciso haver um trabalho de conscientização”, endossa. 
O médico também aponta que a notificação de trauma ocular deveria ser compulsória para minimizar os riscos, e também ter um sistema integrado para identificar o que acontece em cada região. “O fabricante de um jogo de varetas foi notificado depois de várias crianças se machucarem. Há esportes, como o hóquei, em que os praticantes não usavam protetor e acabavam sofrendo traumas oculares. Por isso a importância da epidemiologia, para monitorar e ter intervenção preventiva”, exemplifica Castro. 
Outra questão que é um gargalo se refere à formação dos alunos. “Os alunos não têm pronto-socorro no hospital. Tem PS, mas é referenciado. Só recebe tiro no olho, descolamento, e assim não pega a experiência necessária para dar diagnósticos assertivos. Pronto-socorro é onde o médico aprende e pega experiência”, diz Castro. Ele cita o caso de uma paciente que passou por dois médicos e a diagnosticaram com esclerite e estava tomando imunossupressor. “Quando a atendi, pedi para que tirasse a máscara e percebi que ela tinha rosácea. O diagnóstico correto era blefarite. O corticoide piorou a rosácea. Bastava ter olhado o rosto da paciente”, exemplifica. Em outra ocasião, o médico atendeu uma paciente com olho vermelho que estava sendo tratada como uveíte e na verdade o que tinha era glaucoma agudo. “Pronto-socorro é uma escola. O aluno aprende na faculdade o diagnóstico diferencial de olho vermelho e quando vai para o PS, recém-formado, não sabe o que é. Daí a importância da prática”, finaliza Castro.

Fonte: Revista Universo Visual

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