Paulo Schor – Diretor de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da Unifesp e Professor Chefe do Setor de Óptica Cirúrgica da Escola Paulista de Medicina.
Revendo criticamente a estratégia de atendimento médico, temos quase sempre profissionais jovens e energéticos nas linhas de frente. Nos prontos-socorros, nos programas de fronteiras, sendo pioneiros em cidades nascentes, nos plantões de pronto-atendimento.
O Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica (PROVAB), que visa levar mais saúde à ponta, conferindo vantagens na pontuação para ser aceito nos programas de Residência Médica, atrai exatamente esses jovens, que vão trabalhar em locais distantes, com grande demanda de preceptoria e teleapoio. Numa primeira leitura, nada mais justo socialmente que os recém-formados (especialmente de Universidades Públicas) exerçam a profissão favorecendo as camadas que têm menor acesso à saúde. Numa leitura mais profunda, esses jovens encontram uma realidade para a qual não foram preparados, onde há responsabilização intensa e carência de suporte de especialidades.
Em grandes hospitais encontramos as equipes de retaguarda. São pessoas experientes, de prontidão, acionadas a distância, caso necessário. Na linha de frente encontramos médicos um pouco menos jovens que os primeiros (em geral se requer residência médica) ouvindo queixas diversas de grande número de pacientes. O treinamento em serviço, que se recebeu até então, é colocado à prova, com maior demanda por parte dos pacientes, e pressão da administração por resultados com menos desperdício. Caso seja necessário, é chamada a equipe de plantão, com custo pessoal e monetário envolvido. O estresse do sistema é óbvio, e refletido em enorme contingente de depressivos e rotatividade entre os médicos plantonistas. Novamente temos as pessoas inapropriadas em locais inapropriados, provavelmente porque há uma leitura corrente e mais rasa, de que se economizam recursos contratando-se os menos experientes.
Na sociedade víamos grupos de especialistas se reunirem e montarem clínicas para atender planos de saúde. A competição com empresas tradicionais e centros maiores desloca esses arranjos para o interior, ou para as franjas de grandes cidades. Agora temos especialistas ainda jovens, unidos, de modo “liberal”, em todas as demandas de determinada especialidade. Brincávamos que os médicos só se instalavam em cidades onde houvesse restaurante que servisse comida japonesa. Na verdade, nos instalamos onde há uma rede de proteção e conforto. Onde as dúvidas médicas sejam divididas e resolvidas. Fazer o que se sabe é muito fácil! Difícil é consertar o avião em pleno voo.
Escrevo que “víamos” esses arranjos, pois essa realidade está mudando rapidamente. A “liberalidade” se transforma em trabalho corporativo, e grandes conglomerados verticalizam o atendimento, criando protocolos de conduta que permitem o planejamento monetário, diminuindo aparentemente a importância da experiência clínica individual. Agora (teoricamente) importa menos ainda a vivência médica na linha de frente.
A justificativa social, a economia de recursos e os protocolos escondem a nova função do médico, e chamar a atenção para o futuro é responsabilidade de quem já passou por todas essas etapas, como estudante, médico ou gestor.
Convido aqui a uma reflexão. O que aconteceria se colocássemos os médicos mais experientes, e, portanto, com maior poder de raciocínio lógico complexo (com processamento mais poderoso, pois detentores de mais dados), na linha de frente do atendimento?
O custo inicial aparentemente aumentaria, mas a maior eficiência, com menos tempo para se chegar a diagnósticos e realizar cirurgias, e menos demanda de exames subsidiários, tenderiam a minimizar tal impacto inicial. Vale lembrar que há um contingente grande de médicos com menor volume de atendimento em consultório ou substituídos no sistema de saúde, que estão disponíveis, e têm exatamente a característica de carregar em cima do pescoço uma engrenagem cerebral funcionante e experiência de sobra, e pela lei da oferta e procura, não seriam tão “caros assim.
As complicações certamente diminuiriam em relação à medicina “liberal”, provavelmente se igualando à medicina “protocolizada”, mas mais importante, o ecossistema de saúde se formaria de modo mais sólido, com referências locais que atrairiam os mais jovens.
Essa provocação se opõe ao modelo atual, onde casos mais complexos são vistos por médicos mais experientes. Onde se “esperam” complicações e se oferece correção. Muito se fala de medicina preventiva, na forma de saneamento básico e vacinas. Não seria uma forma de prevenir a inversão de posições?
As máquinas já substituem funções que o ser humano desempenhava há séculos. Seu poder computacional é completamente desconhecido, mas a computação em nuvem com bilhões de dados já é suficiente para identificar lesões específicas ou realizar uma ação mecânica (um passo cirúrgico) pontual. O sistema completo bate à nossa porta, e maximizar nosso maior recurso, a massa cinzenta, parece ser nossa única opção inteligente. Após isso, nos restam a empatia e o comprometimento, que nunca serão compartilhados da mesma forma com os “in-humanos .
Fonte: