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Por José Vital Monteiro
Professor Associado do Departamento de Oftalmologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Milton Ruiz Alves é um dos mais respeitados pesquisadores das áreas de córnea, cirurgia refrativa, refração, lentes de contato e superfície ocular do país. Nos últimos meses, suas constantes apresentações em congressos, encontros e simpósios começaram a ganhar um tema de destaque: a miopia e o controle de sua evolução pelo uso de colírio de atropina a 0,01%. Somadas às atividades acadêmicas, Ruiz Alves também atua ao nível institucional no Conselho Brasileiro de Oftalmologia (do qual já foi presidente de 2013 a 2015), no Conselho Federal de Medicina (através da Câmara Técnica de Oftalmologia), entre outros, para que a medicação seja liberada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Nesta entrevista, Ruiz Alves apresenta as razões para esta dedicação.
Revista Universo Visual – A miopia é um problema de saúde pública que está se transformando em epidemia?
Milton Ruiz Alves – Talvez nos faltem estudos e estatísticas confiáveis para estabelecer um consenso desta ordem. Entretanto, um estudo publicado na revista Archives of Ophthalmology, em 2009, mostrou que a prevalência da miopia nos EUA aumentou de 25% em 1971/72 para 41,6%, em crescimento de 17% em 30 anos. Porém, o mais preocupante é que a prevalência da miopia moderada, entre -2 e -7,9 dioptrias, cresceu de 11,4% para 22,4%, isto é, praticamente dobrou durante período equivalente e a alta miopia (maior de -8 dioptrias) passou de 0,2% para 1,6%, isto é, aumentou oito vezes.
Outros estudos, realizados com metodologias e graus de rigor diferentes, exibiram tendências semelhantes, o que indica que a prevalência da miopia está crescendo de forma preocupante e que aqueles que estão ficando míopes estão ficando míopes com graus maiores. A alta miopia representa, hoje, a terceira causa de cegueira no mundo e, no Japão, já é a primeira causa de cegueira unilateral. Pesquisa entre uma amostra de universitários chineses indicou que 95,5% deles são míopes e quase 20% têm miopia maior do que -6 dioptrias.
UV – E qual a relação entre alta miopia e cegueira?
Alves – Dados epidemiológicos ligam a alta miopia a uma variedade de doenças oculares, como maculopatias, descolamento de retina, catarata, degeneração da retina e glaucoma. Em algumas patologias, a taxa de riscos apresentada pela alta miopia é equivalente ou até maior à mesma taxa apresentada por hipertensão, tabagismo e doenças cardiovasculares.
UV – Causas para o aumento da incidência da miopia?
Alves – Ainda estão sendo discutidas, mas mesmo na Ásia, estudos mostram que na zona rural a incidência é menor do que nas cidades. Tudo indica que condições ambientais de acesso à tecnologia, de demanda de atividades que usam a visão de perto, a diminuição da exposição ao sol e a ambientes externos de recreação contribuam decisivamente para este aumento. Especula-se também sobre efeitos da alimentação e outras coisas, mas tudo indica que, fundamentalmente, seja o resultado de uma expressiva mudança comportamental, que aumenta o risco de aparecimento mais precoce da miopia. A miopia evolui com maior velocidade até o final da puberdade e início da idade adulta. Desta forma, a miopia que aparece mais cedo vai parar de evoluir com grau mais elevado. Com isso, o olho cresce mais e o crescimento do olho pode provocar o esgarçamento da retina, distúrbios circulatórios e outras condições patológicas.
UV – Como o problema está sendo enfrentado pela medicina?
Alves – Basicamente de três maneiras: óculos e lentes de contato que têm graus diferentes no centro e na periferia, ortoceratologia e uso de colírio de atropina com concentração de 0,01%. Além disso, médicos e autoridades vêm estimulando cada vez mais os pais a incentivarem as crianças a realizar atividades de recreação ao ar livre e ficarem expostas à luz solar e, por outro lado, a desencorajarem o uso de aparelhos eletrônicos, como iPad, iPhone, tablets antes dos três anos de idade.
UV – Analise cada uma das alternativas.
Alves – Há pesquisas generalizadas para encontrar meios de retardar a progressão da miopia. Uma das vertentes destas pesquisas volta-se para o uso de óculos e lentes de contato desenhadas ou confeccionadas com o centro tendo um grau diferente da periferia. Com lentes normais para miopia, a visão de detalhes é feita na mácula, ao passo que na periferia, como a curvatura da retina é diferente da curvatura da lente, a imagem é formada atrás da retina, provocando o que chamamos de defocus hipermetrópico, que serve de incentivo para o crescimento do olho e aumento da progressão da miopia. Com lentes de graus diferentes no centro e na periferia, a visão de detalhes continua sendo formada na mácula, mas a visão periférica forma-se na frente da retina, eliminando o defocus hipermetrópico, tendo um papel importante na redução da progressão da miopia, algo em torno de 30% ao ano. No entanto, a Food and Drug Administration (FDA) dos EUA não liberou nenhuma dessas lentes e, de maneira geral, os laboratórios que as fabricam só conseguiram comercializá-las na Ásia.
 
UV – Ortoceratologia?
Alves – Consiste em fazer a criança dormir com lentes de contato rígidas que comprimem a córnea, que fica com a parte central mais plana, fazendo com que a imagem se forme na frente da retina, eliminando o incentivo para o crescimento do olho. Certos estudos clínicos indicam que a ortoceratologia retarda a progressão da miopia em torno de 50% por ano. Porém, é a alternativa mais problemática. Fazer uma criança dormir com lentes de contato é um convite à infecção ocular, que pode ser potencialmente perigosa. E ela teria que fazer isto durante anos. Portanto, isso eventualmente poderia ser alternativa para famílias de alto poder aquisitivo, sem qualquer viabilidade em termos de saúde pública. No Brasil, nenhuma dessas lentes foi aprovada pela ANVISA, não são fabricadas e sua utilização necessita de protocolos clínicos.
UV – Finalmente, o uso de colírio de atropina?
Alves – Em 2000, em Taiwan, a sociedade local de oftalmologia e o Ministério da Saúde criaram um programa nacional de saúde ocular, que foi até 2007. Começaram usando colírio de atropina com concentração muito forte, a 1%. As crianças ficavam com a pupila dilatada, perdiam a capacidade de ler e de realizar várias atividades. Depois começaram a usar outras concentrações, até chegar à concentração de 0,01%. Deve-se levar em conta que o programa atingiu 50% das crianças do país. Mais tarde, houve a comparação entre as crianças de Taiwan e as de Singapura, que não utilizaram a medicação e foi constatado que em Taiwan houve redução de 50% na progressão da miopia. Isto é bastante. Vamos pegar o exemplo de uma criança de sete anos com um grau de miopia que tenha progressão anual média de 0,75 dioptrias. Em sete anos esta criança vai ter miopia de 7 dioptrias. Se esta mesma criança for submetida ao tratamento farmacológico, depois de sete anos ela vai ter miopia de 3,5 dioptrias, o que significa que estará fora das complicações associadas à alta miopia, que podem levar à perda visual irrecuperável. É o que temos de mais efetivo em termos de saúde pública. Nessa concentração, temos o melhor resultado no controle da progressão associado com o menor índice de complicações: a grande maioria das crianças não precisa de óculos para leitura, não apresenta fotofobia, não atrapalha o dia a dia, as atividades escolares ou a recreação e o índice de complicações e de efeitos colaterais é muito baixo.
UV – Quais os fundamentos da atuação do colírio de atropina na redução da progressão da miopia?
Alves – O medicamento atua em células da periferia da retina que vão sinalizar para a esclera ficar mais dura, retardando o crescimento do olho. A atropina é uma das medicações mais usadas em Oftalmologia. No passado era usada como cicloplégico, para possibilitar o exame ocular em crianças e para auxiliar no tratamento da ambliopia. Também é utilizada como medicação para tratar uveítes quando existe inflamação do músculo ciliar. Enfim, é uma medicação usada há muito tempo na Oftalmologia e bastante conhecida em termos de limites e segurança. O tratamento para reduzir a progressão da miopia consiste em instilar uma gota do colírio à noite até a estabilização da miopia, o que geralmente ocorre no início da vida adulta.
UV – O que falta para esse tratamento ser adotado no Brasil?
Alves – Fizemos um parecer na Câmara Técnica de Oftalmologia do CFM, que deve ser aprovado pela plenária da autarquia ainda este ano. A partir de então, a ANVISA se manifestará e normatizará o uso de colírio de atropina a 0,01% da redução da progressão da miopia. Hoje, o tratamento só está disponível através de protocolos de estudo, depois da assinatura de termos de consentimento livre e esclarecido. Atualmente só temos atropina em concentrações de 0,5% e de 1% e os médicos não podem manipular a atropina nas clínicas e consultórios, assim como não podem orientar os pais a fazerem essa manipulação em casa. Não podemos esquecer que uma dose de 20 gotas de atropina a 1% pode ser letal para uma criança de cinco anos. Depois da liberação da ANVISA, as farmácias de manipulação e os laboratórios passarão a fabricar os colírios de atropina na concentração adequada e os médicos poderão orientar e educar os pais das crianças que começarem ficar míopes aos cinco ou seis anos. Associado a isto, os médicos devem recomendar aos pais que estimulem as atividades das crianças ao ar livre e com exposição à luz solar e evitarem o acesso a smartphones, iPads, iPhones e tabletes que exigem o uso da visão para perto. No passado, as mães se esforçavam para nos tirar das ruas e dos campinhos para que fôssemos para casa fazer a lição ou tomar banho e comer. No futuro, as mães terão que se esforçar para tirar as crianças de dentro de casa, da frente das traquitanas eletrônicas, para poderem usufruir de uma brincadeira de bola, ou andar de bicicleta para poderem ter exposição ao sol em atividades externas.

Fonte: Universo Visual

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