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Cesar Lipener – Chefe do Setor de Refração e lentes de Contato da EPM/Unifesp; Ex- Presidente da SOBLEC ( Sociedade brasileira de Lentes de Contato, Córnea e Refratometria)
Natália Araújo – Médica colaboradora do Setor de Refração e lentes de Contato da EPM/Unifesp

A ortoceratologia (Orto-K) é conhecida por nós há muitas décadas, mas muita coisa mudou nos últimos 20 anos e, principalmente, na última década. Seu conceito básico atual é alterar a curvatura corneana de maneira controlada e previsível,  com a finalidade de melhorar a acuidade visual não corrigida ao possibilitar a redução temporária da miopia através do uso  de lentes especialmente idealizadas com essa finalidade.

O que talvez não seja ainda tão bem divulgado no Brasil é o conhecimento sobre a grande evolução do método, com destaque para a eficácia, rapidez e predictibilidade dos resultados que as novas lentes da chamada “Ortoceratologia Moderna” – ou “Acelerada” ou “Avançada”, como é mais conhecida em outros países – aliadas ao avanço topográfico trouxeram na atualidade.

Além de sua mais tradicional indicação de corrigir temporariamente a miopia, há um ampliado leque de aplicações de interesse, com destaque por ser uma das estratégias no controle da progressão da miopia em crianças e adolescentes.

Como veremos mais adiante, a Ortoceratologia pode ser uma opção para aqueles pacientes que não podem ou não querem ser submetidos a uma cirurgia refrativa, ou tem alguma restrição em relação ao uso de lentes de contato tradicionais. Nestes casos, a Orto-K se insere  como um método alternativo,  seguro e reversível.

Assim, é com este objetivo que discorreremos sobre o que há de consolidado na Orto-K e o que se aprimorou e está disponível a todos.

Um breve histórico

Embora suponha-se que o processo de manipular o olho para mudar os erros refrativos tenha se iniciado há muito tempo, com um jovem chinês que colocava sacos de areia sobre os olhos para pressioná-los e mudar seu poder refrativo, os relatos oficiais do início da Ortoceratologia datam da década de 1940, quando descobriu-se o fenômeno do remodelamento da córnea com lentes de vidro.

Diversos nomes na história contribuíram para o desenvolvimento da técnica, tendo se destacado George Jessen, na década de 1960, por desenvolver o primeiro modelo de Orto-K com material de PMMA, chamando-o de “Orthofocus”.

A lógica era adaptar lentes tão planas quanto possível para reduzir a altura central da córnea e consequentemente, a miopia.

Assim, a Ortoceratologia foi descrita pela primeira vez em 1962, no segundo congresso mundial de lentes de contato.

Por que a primeira geração não obteve sucesso?
·         As lentes utilizadas eram de desenho tradicional com curvaturas mais planas, o que dificultava controlar sua centralização – necessária para obter bons resultados – ocasionando astigmatismo com-a-regra e visão insatisfatória, mesmo em miopias modestas;

·         Apesar das tentativas com lentes de maior diâmetro, os resultados ainda eram imprevisíveis pelo posicionamento instável;

·         A adaptação era “rule-of-thumb”, ou seja, sem método científico definido e a partir da experiência empírica do profissional, sendo necessárias várias tentativas, um grande número de lentes e de tempo para alcançar o objetivo;

·         O material não era permeável ao oxigênio, trazendo preocupação com a duração do uso e alterações para a fisiologia da córnea.

Em resumo: as lentes não possuíam desenho adequado, eram instáveis, com resultados imprevisíveis e incontroláveis, além dos materiais não apresentarem boa transmissibilidade de oxigênio.

O que evoluiu e alavancou a ORTO-K AVANÇADA:
·         Na década de 1980 foi desenvolvida a primeira lente em geometria reversa (Wlodyga/Stoyan) e a adaptação era baseada na relação da altura sagital lente/córnea;

·         A partir de 1990, a ceratoscopia computadorizada tornou-se disponível, possibilitando obter resultados reprodutíveis através dos mapas de poder de curvatura da córnea, levando-se em consideração o conceito da excentricidade;

·         O desenho da lente somado às medidas da córnea e o desenvolvimento de cálculos facilitaram a adaptação, com melhor controle do posicionamento da lente, resultados satisfatórios e muito mais rápidos, alcançando a correção já no primeiro par de lentes;

·         Surgiram novos materiais para as lentes RGP, de alta permeabilidade ao oxigênio, podendo ser feito o uso noturno, em vez do diurno, sem haver hipóxia;

·         Estudos mostraram que o risco de complicações com as lentes de Orto-K eram os mesmos das lentes convencionais, com baixíssimas intercorrências até mesmo em crianças e adolescentes, como mostram os mais recentes sobre controle da miopia, por exemplo.

Mediante este novo cenário, a FDA aprovou em 1994 a primeira lente para Orto-K (OK-Contex) e diversos modelos também se tornaram disponíveis em outros países conforme liberação de seus respectivos órgãos reguladores.

Mais tarde em 2000, foi formada a Academia Americana de Ortoceratologia (OAA) para dar apoio e promover informações científicas de qualidade sobre a técnica, bem como sociedades semelhantes formaram-se em outras regiões do mundo.

Já no Brasil, a primeira lente disponibilizada para Ortoceratologia foi a BE Retainer (Be Free, Mediphacos LTDA), em material Boston XO, que utilizava um programa computacional preditivo para auxiliar na adaptação e informar sobre a alteração refrativa. Posteriormente, esta lente foi descontinuada, estando disponíveis hoje as marcas: Smart Lens CRX (Solótica) e Paragon CRT & CRT Dual Axis (Coopervision).

Como funciona e quais os princípios?

A aplicação das lentes durante o sono de qualidade, em média 8 horas por noite, visa remodelar a superfície corneana de forma programada para alcançar boa visão sem correção durante todo o dia, após a remoção das lentes pela manhã.

Para tal, a anatomia básica das lentes de geometria reversa é composta de quatro curvas, conforme a figura a seguir:

  1. Curva Central Posterior (mais plana que a córnea);
  2. Curva Periférica Posterior ou Curva Reversa (mais elevada);
  3. Curva de Estabilização ou Zona de Apoio (mais plana);
  4. Curva Periférica de Acabamento.

É possível notar que a curva central mais plana forma um “degrau” em relação à curva reversa. Em consequência, uma fina camada de filme lacrimal entre as regiões posterior da lente e central da córnea (de 7µm) e uma camada periférica mais espessa (de 55µm), contida no reservatório de lágrimas sob a curva reversa criam um gradiente de pressão.

No centro é exercida uma pressão positiva sobre o filme lacrimal e a superfície da córnea, induzindo ao aplanamento, enquanto sob a curva reversa há uma pressão negativa, que promove o remodelamento no sentindo do centro para a periferia.

Embora os mecanismos de mudança corneana ainda não sejam plenamente compreendidos, acredita-se que a pressão positiva exercida pela curva central comprime as células epiteliais, promovendo a redistribuição de seu conteúdo fluídico de célula a célula, através de pequenos complexos de proteínas juncionais que ligam células adjacentes. Isto resulta em células menores no centro e aumentadas na média-periferia.

Também já foi demonstrado que o tempo de uso e a curva posterior são os fatores determinantes para a modificação do epitélio.

Com as lentes atuais, obtemos efeitos bastante rápidos, podendo ocorrer a redução de quase 50% da ametropia já no primeiro dia após o seu uso. De forma geral, o tratamento máximo é alcançado entre duas a quatro semanas. Durante este período em que há grau residual, comumente são fornecidas lentes de contato gelatinosas descartáveis ao paciente, para que o mesmo possa realizar normalmente suas atividades até alcançar a correção esperada.

O paciente deve ser orientado quanto ao manuseio, higienização e cuidados com as lentes. Deverá ser acompanhado inicialmente após um, sete e trinta dias após o primeiro uso, com avaliação da acuidade visual, refração, biomicroscopia e mapas topográficos diferenciais axiais e tangenciais, que evidenciem a progressão e centralização do tratamento respectivamente, devendo-se manter seguimento a posteriori.

Sendo um tratamento transitório, a regressão completa de seus efeitos ocorre em um período de 30 a 90 dias após a suspensão do uso.

Figura: à esquerda, mapas tangenciais e à direita mapas diferenciais axiais após 2 semanas de tratamento.

Quais são as indicações?

  • Correção da Miopia, em alternativa ao uso de óculos e lentes convencionais (LCG ou RGP);
  • Esportistas, principalmente aquáticos, ou que atuam em ambientes que possam interferir na qualidade do uso de lentes (areia, saibro, esportes de contato, etc);
  • Uso ocupacional (policiais, bombeiros, militares, pilotos, mergulhadores);
  • Intolerantes a outros tipos de lentes;
  • Contra-indicações à cirurgia refrativa (adolescentes, alterações corneanas);
  • Pacientes que podem operar, mas não fazem a cirurgia por questões financeiras ou por terem medo do procedimento;
  • Pacientes que vão prestar concursos para cargos, geralmente públicos, nos quais não podem usar óculos;
  • Controle da Miopia.

Tão importante quanto indicar é saber selecionar bons candidatos à adaptação. É possível adaptar à partir dos 6 anos de idade, mas sabemos que há contraindicações, como: miopia > -6 a 8 DE; astigmatismo > 2,5DC ou contra a regra ou oblíquo ou limbo-a-limbo ou maior do que a miopia ou lenticular; córnea irregular ou ectásica ou pós-refrativa; doenças de superfície ocular não compensadas. Independente disto, é importante individualizar os casos.

A aplicação do método considerada melhor e mais eficaz é em olhos saudáveis na redução da miopia leve a moderada, embora os mais novos modelos já ofereçam possibilidade de correção até -6DE a -8DE, além de astigmatismo até -2,50 DC.

Também é possível programar monovisão através da hipocorreção do olho não dominante para corrigir a presbiopia, por exemplo.

Modelos específicos para corrigir hipermetropia e presbiopia seguem em desenvolvimento.

Orto-K no controle da miopia

Acredita-se que a progressão da miopia é atribuída ao alongamento do comprimento axial do olho, associado ao da profundidade da câmara vítrea. Assim, controlar estes alongamentos é a chave para o controle da miopia.

Estudos prévios com lentes gelatinosas bifocais foram os primeiros a demonstrar que ocorre diminuição significativa na progressão da miopia quando uma lente concêntrica de centro para longe cria um desfoque miópico simultâneo na retina, reduzindo relativamente o desfoque hipermetrópico periférico, responsável pelo estímulo ao alongamento ocular.

Por conseguinte, o mesmo conceito é aplicado à Orto-K: o aplanamento central com o encurvamento da media-periferia pela curva reversa cria um defócus miópico periférico que neutraliza o defócus hipermetrópico encontrado nos míopes.

Isto posto, a partir de 2003, começaram a surgir diversos relatos de que a Orto-K apresentava potencial controle da miopia em crianças e adolescentes, chegando a taxas de redução da progressão de em média: 60% (Reim et al); 47% (LORIC – ambos miopia e alongamento axial) e 57% (CRAYON). Mais recentemente em 2015, foi publicado um estudo em larga escala, longitudinal e multicêntrico com duração de três anos chamado SMART, que corroborou os mesmos resultados anteriores de sucesso na redução da progressão da miopia através das lentes de remodelamento corneano noturno.

Assim, a Orto-K tem sido plenamente reconhecida como estratégia eficaz para o controle da miopia, estando inserida inclusive nas recentes Diretrizes da SBOP/SOBLEC (2022), com uma das opções no protocolo de tratamento, equiparada ao uso da atropina em baixas concentrações e aos outros métodos ópticos, como óculos de defocus  Stellest (Essilor) ou Miyosmart (Hoya) e a lente de contato 1day Mysight (Coopervision).

É de suma importância atentar-se que retardar a miopia pode gerar impactos enormes e positivos para milhões de pacientes, minimizando o risco de complicações oculares como degeneração macular, catarata, glaucoma, buracos e rasgos na retina, além de descolamentos, ao manter-se a miopia mais baixa.

Lentes disponíveis

  Smart Lens CRX

(SOLÓTICA)

Paragon CRT e CRT Dual Axis

(COOPERVISION)

Potencial de Correção MIOPIA =< -8,00

ASTIGMATISMO =< -1,75

MIOPIA =< -6,00

ASTIGMATISMO =< -1,75

Apoio tórico Sim Sim (Dual Axis)
Curva Base 6,6 a 9,0 mm 6,5 a 10,5 mm
Diâmetro 10,6 a 11,2 mm 9,5 a 12 mm
Caixa de Prova Lentes de teste Lentes definitivas (stock)
Calculadora/ Software Sim Sim

Embora a Ortoceratologia seja um procedimento mais praticado pelo especialista por requerer algum tempo e experiência com a técnica, mostra-se mais acessível e mais simplificado do que jamais foi. Dispomos de exames topográficos acurados, calculadoras e lentes com toricidade, borda e diâmetro personalizáveis, que já demostraram elevada eficácia, rapidez e segurança. As indicações não são apenas estéticas ou ocupacionais tendo-se comprovado seu uso médico para retardar a miopia.

A Orto-K já faz parte do arsenal mais importante a ser oferecido ao paciente moderno e atualizado do nosso dia-a-dia.

Referências bibliográficas:

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