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Por Christye Cantero
Uma extensão territorial de 8.514.876 Km2, que ocupa 48% da América do Sul e reúne grande diversidade de paisagens, climas, topografia, fauna e flora. Assim é o Brasil. Este país de dimensões continentais tem na variedade um ponto favorável quando o assunto é pesquisa. “A diferença marcante e positiva do Brasil em relação a outros países é que aqui há uma grande diversidade tanto de clima quanto de população entre as regiões. Isso permite um estudo ainda mais completo em áreas distintas da medicina”, explica Marcony Santhiago, docente da pós-graduação da Universidade de São Paulo (USP) e professor adjunto da University of Southern California (USC).
De fato, a pesquisa científica produzida no Brasil é reconhecida em todo o planeta. Em agosto, o ranking produzido pelo Centro de Estudos em Ciência e Tecnologia da Universidade de Leiden, na Holanda, com base no banco de dados Web of Science, classificou a USP como a oitava melhor universidade do mundo em produção científica, de modo geral, mesma posição alcançada em 2018. Outras universidades do país também foram muito bem ranqueadas o que mostra que é possível fazer pesquisa de alto nível no Brasil. 
Recentemente, Santhiago fez parte de um estudo sobre o percentual de tecido alterado (PTA) como fator de risco para ectasia pós-cirurgia refrativa. “A maior parte dessa pesquisa foi conduzida no Brasil e foi reconhecida internacionalmente. Há muitos outros grandes exemplos e inúmeras pessoas contribuindo para a pesquisa no Brasil”, ressalta. 
Mauro Campos, diretor médico do Grupo H.Olhos e chefe do Departamento de Oftalmologia da Escola Paulista de Medicina – Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), comenta que, como em qualquer país desenvolvido na área de ciência e pesquisa, as especificidades de cada país ou centro de pesquisa geralmente estão concentradas em áreas onde pesquisadores locais são especialistas ou a localidade recebe um número significante de casos de uma doença específica.  “No Brasil, em oftalmologia, historicamente tivemos pesquisas relacionadas à toxoplasmose ocular, pois a doença é endêmica em várias regiões do país. Outro exemplo marcante recente é o Zika. A associação entre Zika e microcefalia foi inicialmente demonstrada no Brasil. As descrições sobre as lesões oculares vieram logo a seguir. Infecção também sempre foi uma área de grande produção acadêmica no Brasil”, explica. 
Ele destaca ainda os estudos liderados por experts, profissionais que se dedicam a determinadas áreas por toda a vida, como glaucoma, córnea, cirurgia refrativa, retina, entre outras. “Temos exemplos brilhantes na oftalmologia e em várias áreas da medicina. Nestes casos, tais experts precisam formar sucessores, pois é uma modalidade de pesquisa não sustentável. O ideal, em qualquer país ou mesmo centro de pesquisa, é termos pesquisadores de diferentes especialidades, formando uma equipe multidisciplinar e diversificando as pesquisas, mas revelando interações entre as áreas. A gestão institucional da pesquisa atual deve focar neste aspecto”, aponta.
De acordo com Campos, desde a regulamentação da pesquisa clínica pelo ex-ministro Adib Jatene e pela reestruturação da Capes, consolidação do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e fortalecimento das fundações estaduais de fomento à pesquisa, como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o crescimento da pesquisa médica no Brasil é substancial. “Mesmo a pesquisa em áreas básicas, mas que repercutam na prática médica, tem sido fortalecida com conceitos como interdisciplinaridade, nucleação, medicina translacional, internacionalização e intercâmbio de professores visitantes. Destaco também aspectos da vida moderna, como acesso ao inglês e a internet, que impulsionaram a produção científica nacional”, completa.
E agora?
Recentemente, uma notícia impactou muitos alunos de universidades brasileiras:  o corte de 3.474 bolsas de estudo oferecidas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgão ligado ao MEC (Ministério da Educação), a estudantes de mestrado, doutorado e pós-doutorado. A estimativa do órgão é que as suspensões, que segundo o Capes é de bolsas “ociosas”, tragam uma economia de R$ 50 milhões por ano. Apesar de temporário, responsáveis por projetos científicos em diversas áreas veem a continuidade das pesquisas em risco. 
E esse bloqueio acaba também afetando a área médica. “Devido ao pouco valor dado à pesquisa no Brasil e à grande dificuldade de os pesquisadores de dedicação exclusiva sobreviverem decentemente, grande parte da mão de obra consiste em alunos de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado. Se esses alunos não receberem bolsas, por menores que sejam, não há como fazer as pesquisas andarem”, responde o oftalmologista Max Damico, professor livre-docente da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Ele comenta ainda que uma das principais particularidades da pesquisa no Brasil é que ela se dá, quase que exclusivamente, em instituições públicas. “Ou seja, depende de verbas governamentais e estão sujeitas a inúmeros fatores descolados do mérito da pesquisa, que deveria ser o norte dos investimentos”, explica.
Marcony Santhiago ressalta que o investimento em produção científica vai muito além do que se consegue medir em números. “Esse bloqueio, principalmente em cursos que têm nota 3 e 4, levará a uma consequência muito grave que será a concentração ainda maior em áreas mais favorecidas economicamente”, revela. Um segundo problema, segundo o oftalmologista, é que para se fazer pesquisa é necessário ter pessoas bem treinadas e com tempo disponível. “Bolsas como a Capes possibilitam que essas pessoas tenham disponibilidade para atuar na pesquisa durante um longo período. Fui bolsista da Capes no doutorado e do CNPQ no pós-doutorado e essas bolsas realmente contribuem para que tenhamos uma produção científica contínua”, afirma.
Campos destaca que houve um grande estímulo à pesquisa desde a década de 1990 até poucos anos atrás. Mas hoje, a situação é preocupante. “A sociedade precisa definir o que acredita ser importante para seu desenvolvimento. Não entendo como poderemos nos manter relevantes em pesquisa se não houver apoio da sociedade e sensibilização de gestores públicos e legisladores. As declarações recentes de nossos governantes apontam a pesquisa no Brasil como inverídica, desnecessária, dispendiosa e politicamente enviesada. A ciência é um dos principais valores de qualquer sociedade”, observa o oftalmologista.  
Não há dúvida sobre a importância da pesquisa científica não apenas na área da medicina, mas em qualquer segmento. “Na medicina tudo evolui ao testar hipóteses para tentar, de alguma forma, melhorar o dia a dia dos pacientes, seja em diagnóstico, conduta ou tratamento. E a pesquisa é um grande pilar para melhorar o conhecimento em diversos assuntos e é fundamental na nossa profissão. Sem ela, não saímos do lugar”, comenta Carolina Gracitelli, professora afiliada do Departamento de Oftalmologia da Escola Paulista de Medicina – Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “A pesquisa nos atualiza e faz com que pensemos o tempo todo em como melhorar a prática clínica e cirúrgica”, completa. 
Entraves
Como observamos, a principal dificuldade para os pesquisadores no Brasil é o financiamento. Mas a falta de verba é só uma delas. Segundo Mauro Campos, outro problema é o regramento excessivo e a morosidade burocrática. “A permissão para realizar ou não uma pesquisa médica depende da necessária e importante aprovação pelos comitês de pesquisa, tanto o Conselho Nacional de Saúde (Conep) quanto os diversos Comitês de Ética em Pesquisa. Acontece que estas estruturas são lentas e excessivamente burocráticas. Sabemos que não há democracia sem burocracia, mas as sociedades modernas desenvolvem a confiança mútua. No Brasil, vivemos um movimento contrário. Aqui é a desconfiança mútua que é cultuada , ressalta.
O oftalmologista ainda levanta outro ponto que requer discussão que é a gestão institucional de pesquisa.  “Nenhuma universidade ou instituto se financia sem planejamento. Centros de pesquisa precisam de gestão moderna, responsável e eficiente. Otimização de recursos, metas, treinamento constante e renovação de recursos humanos, além de temas de pesquisa que precisam atender as demandas sociais , finaliza.
E não para por aí. Além da verba e da burocracia, Max Damico destaca a pequena participação da iniciativa privada e os impostos sobre a importação de materiais permanentes e de consumo. “É fundamental que isso seja melhorado”, aponta o professor da FMUSP.
Marcony Santhiago completa que outro ponto importante é o alto custo das pesquisas que envolvem média e alta complexidade. “Manter laboratório de pesquisa básica ativo e com produção contínua é muito caro. O custo de espaço material e das pessoas qualificadas envolvidas é muito alto”, comenta. 
Para finalizar, Carolina Gracitelli completa que outro entrave para o avanço das pesquisas é que não é permitido pelo Comitê de Ética retribuir o tempo do paciente gasto na pesquisa com verba. “Isso dificulta conseguir voluntários para a pesquisa”, revela e acrescenta mais um fator, a falta de tempo que os médicos têm. “O médico se divide entre o consultório particular, as cirurgias e a pesquisa. Como há dificuldade de uniformizar e fazer tudo num mesmo lugar, se torna difícil organizar o tempo”, conclui.
São entraves que os pesquisadores precisam superar para fazer o Brasil conquistar um lugar de destaque na produção científica mundial. “Apesar de todas as dificuldades, conseguimos produzir pesquisas de alto nível em medicina, de modo geral, e em oftalmologia, em particular”, finaliza Santhiago. 

Fonte: Universo Visual

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