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Por definição, a diferença de intensidade luminosa entre áreas vizinhas se chama “contraste”. Vivenciamos esse fenômeno do nascimento à morte. Na oftalmologia e ciências visuais tentamos entender, quantificar e manipular o conceito aplicado, principalmente quando existe interferência (destrutiva) na qualidade da vida (relacionada a visão).
Várias alterações oculares causam diminuição do contraste, transformando a percepção do didático branco e preto em cinza escuro e cinza claro. A luz dispersa por lentes opacas ou deformadas, como na catarata ou astigmatismo não corrigido, trazem queixas de má visão, inicialmente qualitativa, e depois quantitativa, com fácil identificação por exames simples como os testes de acuidade visual em alto contraste.
Não temos mecanismos eficientes de compensação para aumentar o contraste, como fazemos nas fotografias digitais, e exames mais específicos como testes de baixo contraste podem diagnosticar o início dessas descompensações ópticas, nas interfaces oculares.
Hoje em dia contamos com sofisticados equipamentos que medem e apresentam a qualidade do nosso sistema óptico, mas não sabemos precisar que pacientes terão queixas subjetivas frente a números exatos, ou seja, a interpretação da imagem, a diferença entre ver e enxergar, ainda é pouco entendida pela oftalmologia.
“Brincamos” de criador quando determinamos esses limites, e nosso bom senso frequentemente é traído pela diversidade da vida real de cada paciente. Estou aqui marcando terreno longe das linhas extremas da visão normal ou subnormal. Escrevo sobre a sutileza, os detalhes, onde “mora o diabo”. Nessa arena se colocam pacientes mais jovens, com menores opacidades cristalinianas, baixas ametropias, ou mesmo ceratocones subclínicos. São pacientes cujo sistema visual, do ponto de vista matemático, está comprometido, mas cuja significação clínica precisa ser cuidadosamente acessada, principalmente quando seu “conserto envolve procedimentos que inexoravelmente carregam algum risco.
A óptica cirúrgica lida exatamente com esse tema, e cada vez mais se aproxima da neurociência e das humanidades, para entender as pessoas e seu pensamento, já que a visão é exatamente um sentimento, produzido por um dos órgãos dos sentidos, que muda com o tempo e tem nuances que mudam tudo.
À primeira vista, ter o maior contraste possível pode parecer ótima ideia, e esse parece ter sido o resultado da evolução em olhos de crianças, adolescentes e adultos jovens emetropes, porém nossa equação não para nos 40 anos, outrossim continua e se complica a partir do início da presbiopia. Além do tempo, adicionamos a sutil variação da distância de foco, que acaba por colocar em xeque o bom senso. Preferimos a “high definition” em uma distância fixa, ou toleramos algum grau de embarçamento para enxergar o computador e o celular? E que tal tentar prever o futuro incluindo nesse algoritmo a multifocalidade das lentes intraoculares? Ou mesmo a monovisão em qualquer estratégia visual? A partir de qual estágio de degradação da visão aceitamos (nos resignamos) a confusão óptica, e paramos de nos queixar ao oftalmologista?
A humanidade nos dá algumas pistas interessantes para reflexão. Talvez escolhêssemos o maior contraste possível se estivéssemos sempre do lado privilegiado (com mecanismos compensatórios como a acomodação funcionando a todo vapor), mas quando se paga um preço alto (por exemplo a presbiopia) da violência, desumanidade, egoísmo e imoralidade aceita-se um contraste menor, em troca de navegar em água mais calmas. Fora dos extremos de desigualdade ou comunismo, balançaríamos nos tons de cinza ?!
Vejam o exemplo da iniciativa que estudantes da Universidade Utrecht lançaram, em 2016; o movimento “Dare to be Grey” (http://www.daretobegrey.com/). Com o mote de abrandar os debates sobre refugiados na Europa, eles dizem não à polarização e sim à composição. De intenção pura, se lido em termos quase matemáticos, torna-se um exemplo da complexidade de nossa sociedade, ao olharmos por outros ângulos essa opinião, a princípio de ótimo senso.
O outro olhar é lançado pela discussão crítica que minha querida irmã e seu brilhante colaborador Egbert explicitam no capítulo “Claiming Greyness: Dutch Coloniality against Polarization” (http://tiny.cc/xgsmsz), e dá conta de aspectos necessários da polarização, principalmente quando há ainda há grande desbalanço entre os extremos. Nesses casos a identificação dentro do próprio grupo (polo) fortalece a estabilidade social duradoura, pois inclusiva, e de participação paritária.
Viver não é para amadores, e a complexidade deve sempre ser levada em conta, mesmo sem estar “na cara”. Ver o mundo como ele é, e não de maneira artificial, definindo inicialmente os extremos (no caso, de privilégio e preconceito), nos ajuda a enxergar movimentos e suportar tensões. O cinza no caso seria o abrir todas as janelas e tirar o telhado da casa ao assistir um filme. A luz branca invadiria a cena, roubando a legitimidade do negro. Precisamos ter efetivamente uma equipotência, para entender teórica e praticamente nossos contrastes.
Voltando lentamente às ciências visuais, trago as grades senoidais, ou listras de diferentes espessuras, que se muito próximas e finas, são percebidas como “cinza , e não atraem atenção de recém-nascidos no clássico teste dos cartões de teller. Ao afastar e engrossar as barras, os bebês passam a perceber o contraste e olham preferencialmente para esses alvos. Aqui o mono-tom também não interessa, ou como diria o texto bíblico: “Seja quente, ou seja, frio, não seja morno que eu te vomito”.
É fascinante construir sobre saberes clássicos, e a mistura explosiva pode ser necessária antes da zona de conforto. Eu pessoalmente gosto do conceito eternizado por Fernando Pessoa: “Tudo quanto vive, vive porque muda; muda porque passa; e, porque passa, morre. Tudo quanto vive perpetuamente se torna outra coisa, constantemente se nega, se furta à vida.”

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