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Também conhecido como fundoscopia ou oftalmoscopia, o exame de fundo de olho tem como objetivo analisar o estado dos vasos sanguíneos do olho. Dessa forma é possível avaliar alterações que podem auxiliar, dentre outros, na identificação de diversas doenças sistêmicas, sendo as mais comuns a diabetes e a hipertensão arterial. Segundo o Professor Afiliado do Departamento de Oftalmologia e Ciências Visuais da Escola Paulista de Medicina (UNIFESP), Fernando Korn Malerbi, a avaliação se baseia na análise de determinadas alterações na retina, na coroide, no nervo óptico e nos vasos retinianos.

Daniel Ferraz

De acordo com Daniel Ferraz, Diretor de Inteligência Artificial e Aprendizado de Máquina da Rede D’Or São Luiz, “os olhos funcionam como uma janela para vermos os vasos do corpo. Através deles conseguimos ter uma ideia de como estão os outros vasos, inclusive aspectos do envelhecimento e de algumas doenças, como a diabetes, a pressão alta ou mesmo uma maior probabilidade de vir a ter um acidente vascular cerebral (AVC)”.

A tecnologia de imagem avançada, como a tomografia de coerência óptica (OCT), tem desempenhado um papel significativo na melhoria da detecção de doenças sistêmicas por meio do exame de fundo de olho. “A tomografia de coerência óptica tem auxiliado na avaliação de doenças sistêmicas que inicialmente não causam alterações detectáveis clinicamente ao exame de fundo de olho. A própria diabetes leva a um afinamento de determinadas camadas da retina, correspondentes à retina interna, antes de levar a alterações visíveis ao exame da retina. Outro exemplo que vem ganhando destaque nas pesquisas corresponde à Doença de Parkinson, que pode levar a alterações na espessura da retina, medida pela OCT”, diz Malerbi. “Em minha prática clínica, costumo analisar em imagens de OCT a espessura da camada de células ganglionares para avaliar dano tecidual inicial em pacientes com diabetes que ainda não desenvolveram sinais clínicos de retinopatia. Acredito que tal avaliação contribui na avaliação das complicações microvasculares do diabetes”, comenta o Professor Afiliado.

O especialista da Rede D’Or São Luiz lembra que demência e esclerose múltipla são outros dois exemplos de doenças sistêmicas que podem vir a ser investigadas por meio de um exame de OCT, às vezes mesmo antes do aparecimento de sintomas específicos. “Esse fato permite que o tratamento seja iniciado em fases precoces, estabilizando a doença e evitando a progressão de sintomas”, salienta.

Em geral, segundo os especialistas, um médico oftalmologista com boa formação é capaz de identificar os sinais clínicos ao exame de fundo de olho que auxiliam na detecção de doenças sistêmicas. “Existem situações específicas que exigem habilidades especiais dos médicos, como por exemplo o exame fundoscópico em recém-nascidos. Adicionalmente, certas condições, como presença de opacidade de meios, podem prejudicar uma adequada avaliação do segmento posterior ocular”, relata Malerbi.

Uso da Inteligência Artificial
A inteligência artificial (IA) também tem sido usada na interpretação de imagens do fundo de olho. Resultados de um estudo recente publicado pelo The Lancet apontam que um algoritmo de aprendizagem profunda baseado em imagens de retina pode detectar a doença de Alzheimer com boa precisão, mostrando seu potencial para rastrear a doença. Os pesquisados acreditam após a validação, o teste e a integração com o pipeline de aprendizagem profunda, esse modelo poderá ser implementado para a triagem da doença de Alzheimer.

Caio Regatieri

Caio Regatieri, Professor Adjunto do Departamento de Oftalmologia, Chefe do setor de retina da Escola Paulista de Medicina (UNIFESP), já usa a IA em sua prática diária. “Consigo laudar mais rápido os exames normais. Aplico a IA nos exames em que ela aponta normalidade. Nos pacientes em que a IA aponta algum problema específico, eu invisto mais tempo para avaliar esses exames de uma maneira mais específica. Os maiores desafios para uso da IA hoje são as questões éticas e da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados). No Brasil ela é uma ferramenta de auxílio diagnóstico, ainda não está legalmente autorizada”, explica o especialista que também é Diretor Científico do Grupo Opty.

Uma pesquisa publicada pela Med-X, explorou a viabilidade de usar recursos de toda a superfície ocular para construir modelos de aprendizagem profunda para avaliação de risco e detecção de diabetes tipo 2 (T2DM). Foi realizado um estudo observacional e multicêntrico usando imagens oftálmicas da superfície ocular para desenvolver a OcularSurfaceNet. O sistema de aprendizagem profunda foi treinado e validado com um conjunto de dados multicêntrico de 416580 imagens de 67151 participantes e testado independentemente usando 91422 imagens adicionais de 12544 participantes e pode ser usado para identificar indivíduos com alto risco de T2DM. Em geral, as descobertas sugerem que a estrutura de aprendizagem profunda usando imagens da superfície ocular pode servir como um kit de ferramentas para triagem não invasiva e de baixo custo em larga escala da população em geral na avaliação de risco e identificação precoce de pacientes com diabetes mellitus tipo 2.

Fernando Malerbi

“A inteligência artificial tem ganhado destaque na identificação de algumas doenças que acometem a retina, e o principal exemplo é o da retinopatia diabética. Já existem sistemas automáticos aprovados pela FDA, a agência regulatória dos Estados Unidos, que detectam a presença de retinopatia diabética sem a supervisão humana. Acredita-se que o principal benefício de tais ferramentas seja proporcionar a ampliação do acesso ao rastreamento de doenças que podem levar a cegueira. No entanto, há enormes desafios para sua implementação, que compreendem até mesmo questões éticas e regulatórias. Dentre os desafios, podemos mencionar a formação de bases de dados robustas e representativas, estabelecimento de classes de risco, validação clínica, adoção pelos usuários, definição de responsabilização em casos de erros do algoritmo, implementação no fluxo de trabalho e fatores econômicos como custo-efetividade”, detalha Malerbi.

Doenças sistêmicas
“Pacientes com determinadas doenças sistêmicas apresentam certas alterações que podem ser observadas ao exame de fundo de olho; tais alterações não estão presentes em indivíduos saudáveis. No caso de certas alterações associadas a doenças vasculares, estudos demonstraram que pacientes que apresentam tais alterações possuem maior risco de desenvolver eventos adversos cardiovasculares. Uma situação relativamente comum em nossa prática clínica é, por meio do exame de fundo de olho, descobrir que um paciente é portador de hipertensão arterial sem que ele ou ela tivessem ciência e mesmo relatando medidas normais da pressão arterial. Nesses casos, geralmente a monitorização ambulatorial da pressão arterial termina por confirmar o diagnóstico”, detalha Malerbi.

Danierik Danelon, 30 anos, conta que aos 21 descuidou bastante do seu tratamento da diabetes tipo 1 (descoberta aos 9 anos). Apesar disso, continuava a fazer anualmente o exame de fundo de olho. Ao longo desse tempo, teve uveítes recorrentes e descobriu aos 24 a retinopatia diabética. A partir daí iniciou todos os tratamentos com laser, injeção e atualmente, considera ter uma vida normal mesmo com uma pequena limitação por conta da perda de parte da visão.

Ferraz explica que algumas doenças sistêmicas se manifestam através de alterações vasculares, ou seja, existe dano visível nos vasos da retina. “Em pessoas com essas doenças, podemos ver alterações como vasos mais sinuosos, borrados ou até mesmo “estourados”, indicando acometimento em diversos graus da doença de base. Já vi em consultórios vários casos de pacientes diabéticos e hipertensos que só descobriram essas doenças depois de fazerem exame de fundo de olho de rotina”.

A prevalência global de diabetes está aumentando constantemente, com uma alta porcentagem de pacientes que desconhecem o status de sua doença. A crescente prevalência de diabetes em todo o mundo é impulsionada por uma complexa interação de fatores socioeconômicos, demográficos, ambientais e genéticos. O Brasil é o 5º país em incidência de diabetes no mundo, com 16,8 milhões de doentes adultos (20 a 79 anos), perdendo apenas para China, Índia, Estados Unidos e Paquistão. A estimativa da incidência da doença em 2030 chega a 21,5 milhões. Esses dados estão no Atlas do Diabetes da Federação Internacional de Diabetes (IDF). O rastreamento do diabetes é de grande importância na medicina preventiva e pode se beneficiar da tecnologia de aprendizagem profunda. No caso da diabetes, Malerbi entende que o primeiro elemento evidente clinicamente a ser considerado corresponde ao surgimento de microaneurismas retinianos. Já no caso da hipertensão arterial, a atenção deve estar voltada para alterações nos vasos retinianos; na suspeita de emergência hipertensiva, devem ser buscadas também alterações no nervo óptico. “Em relação a distúrbios hematológicos, pode haver uma série de alterações a depender da doença em questão; no exemplo da leucemia, podem estar presentes certas alterações que são denominadas ‘manchas de Roth’, entre outras alterações”, explica.

A paciente Eliane Andrade Bichuette Jacomo, 71 anos, sempre soube que tinha tendência a degeneração macular pelos dois lados da família e era alerta aos sinais. Há 11 anos, descobriu uma mancha ao maquiar os olhos e partiu para uma consulta médica determinante. Desde então, em todos os meses passa pelo OCT e recebe injeção quando necessário. A partir daí, seus irmãos também passaram a se cuidar com regularidade e seu caso é um incentivo também para sua rede de amigos, que passou a dar atenção a necessidade do cuidado com os olhos. Graças a sua disciplina e cuidado contante, hoje Eliane pode trabalhar normalmente, inclusive no computador.

Prevenção
Justamente por possibilitar a detecção de doenças em fase assintomática, o exame de fundo de olho se encaixa no contexto da medicina preventiva. “Acompanhei o caso de uma paciente jovem que apresentou em ambos os olhos um importante aumento de tortuosidade dos vasos da retina; após investigação sistêmica, foi feito diagnóstico de mieloma múltiplo. Após o tratamento específico, o paciente apresentou boa evolução”, compartilhou Malerbi.

“É o exame de fundo de olho de rotina que fornece a ‘pista’ para algumas dessas doenças na maior parte dos casos. Em pacientes que já têm o diagnóstico de doenças sistêmicas, a avaliação anual do fundo de olho é ainda mais importante para rastrear de forma preventiva a instalação de alterações que podem culminar com diminuição da visão”, comenta Ferraz.

Engajamento e conscientização dos pacientes
Malerbi acredita que na estratégia de apresentar aos pacientes uma fotografia de suas próprias retinas para que eles possam identificar as estruturas e assim compreender a possibilidade de se extrair informações relevantes através do exame de fundo de olho. “Os pacientes devem ser orientados no sentido de que o exame de fundo de olho é uma modalidade diagnóstica não invasiva que pode revelar diversas informações relevantes sobre o estado de saúde em geral; e que é um exame fundamental no acompanhamento de determinadas condições clínicas”, diz.

Os pacientes idosos e aqueles que têm antecedentes de doenças crônicas devem ter um acompanhamento multidisciplinar – com a colaboração de clínicos gerais, nutricionistas e, claro, oftalmologistas – a fim de uma orientação constante sobre a importância do cuidado com os olhos e, principalmente, da realização do exame de fundo de olho. Regatieri reforça também a força das campanhas divulgadas pela mídia e também por personalidades, tais como a última realizada por Tiago Leifert sobre o retinoblastoma.

Ferraz conta que 90% dos pacientes saem da consulta médica com pelo menos uma dúvida. “Como abordamos essa lacuna? Há hoje várias plataformas de educação para os pacientes que usam a transformação digital para serem escaláveis – um exemplo é a IUNO, que explica, em linguagem acessível, a importância de realizar exames periódicos de fundo de olho”, conclui.

A inteligência artificial tem sido uma ferramenta de apoio na avaliação do fundo de olho. Vários algoritmos têm sido testados e validados no mundo todo, alguns para doenças específicas e outros com escopo mais amplo. É interessante observar que ela permite não apenas ajudar o médico no diagnóstico de uma determinada condição, mas também servir como ferramenta de rastreio de pacientes. Em lugares onde o acesso ao oftalmologista é restrito, por exemplo, o uso de algoritmos de IA pode ajudar a determinar qual é a urgência que um determinado paciente tem de ser examinado por um especialista. Isso permite “organizar a fila” e evitar que pacientes com danos agudos tenham comprometimento irreversível de sua visão porque não tiveram avaliações em tempo oportuno.

O nosso grupo usa a ferramenta SELENA, desenvolvida em Singapura e que já foi validada no território brasileiro, com aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Por meio de uma foto simples do fundo de olho onde não há necessidade de dilatação da pupila (uso de colírios), um operador com formação técnica consegue, em tempo real, que o algoritmo avalie o paciente para a presença de três alterações: glaucoma, retinopatia diabética e degeneração macular relacionada à idade. Se houver suspeita de alguma dessas condições, o paciente será referenciado ao médico especialista para posterior confirmação. O interessante desse algoritmo é que ele permite a detecção precoce de lesões no fundo de olho e tratamento imediato, evitando assim a perda visual irreversível.

Temos estudos que foram publicados esse ano que, usando IA e tomografia de retina, conseguiram prever o desenvolvimento de doenças como Alzheimer e Parkinson. Com o advento de equipamentos com resolução cada vez melhor, o uso de grandes bases de dados mundiais e o desenvolvimento de modelos com IA generativa, a tendência é que haja um aumento das condições detectáveis e também uma antecipação dos achados, permitindo tratamentos cada vez mais precoces. No horizonte da evolução tecnológica, a medicina personalizada também será contemplada com grandes avanços da inteligência artificial, viabilizando tratamentos individualizados e específicos para essas condições.

O acesso ao oftalmologista ainda pode ser restrito em algumas áreas, bem como a disponibilidade de aparelhos específicos. Nesse contexto, os algoritmos de inteligência artificial podem ser um grande aliado, pois são escaláveis, não requerem especialistas para a operacionalização, apresentam custo baixo e são capazes de otimizar a fila de pacientes para a avaliação com o médico oftalmologista.

Daniel Ferraz, Diretor de Inteligência Artificial e Aprendizado de Máquina da Rede D’Or São Luiz

Camila Abranches

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