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O Podcast RX – Por dentro da sua próxima receita médica!, do dia 18 de outubro de 2021, teve como convidada a gerente médica de cuidados com os olhos da Allergan (empresa AbbVie), Christina Joselevitch, graduada em Medicina Veterinária e Zootecnia, com mestrado em Psicologia – Neurociência e Comportamento pela Universidade de São Paulo USP) e Ph.D. em Medicina – Neurociência pela University of Amsterdam. 

O oftalmologista Paulo Schor conversou com a médica, que mora na Alemanha, para saber como é o desenvolvimento dos estudos clínicos em relação a novas propostas terapêuticas. “Os avanços científicos não caem do céu, não são milagres, a ciência é algo que tem uma base estabelecida e nós rezamos por essa igreja, a igreja da razão, que é onde estamos inseridos”, ressaltou Schor. Confira, a seguir, o episódio completo do podcast com a especialista. 

Paulo Schor: Hoje vou ter a honra de conversar com uma amiga de longa data, de congressos de oftalmologia e de medicina básica, que é a Christina Joselevitch. Chris, obrigado por ter aceitado o convite, seja muito bem-vinda! Você pode começar contando um pouco para nós como foi o seu percurso, de ir da medicina veterinária e zootecnia para a produção científica? 

Christina Joselevitch: Bom, esse percurso foi uma coincidência, porque eu sempre fui uma pessoa muito curiosa e sempre gostei muito de estudar. Entrei na faculdade já querendo ser oftalmologista, até pela minha história, porque eu

nasci cega de um olho. E no primeiro ano de faculdade eu fui fazer estágio em anatomia e um professor me perguntou: O que você quer aprender?”. E naquela hora que ele fez a pergunta, minha agenda caiu no chão e dentro dela havia uma reportagem de jornal sobre olho elétrico, que eram experimentos que estavam sendo feitos na época e que hoje em dia já foram até aplicados em pacientes, sobre chips que estimulam as células da retina eletricamente e fazem as pessoas cegas enxergarem  

E eu falei para o professor: Eu gosto de olho”, e aí ele disse é isso, então, você vai estudar olho”. Daí eu comecei no primeiro ano de faculdade a fazer

pesquisa com olho, primeiro anatomia, depois histologia, fisiologia,

e fui avançando, e gostei tanto que acabei não virando oftalmologista, mas ficando na pesquisa mesmo e gostei demais. Também vi a necessidade de querer um dia realmente curar doenças, porque curar é restabelecer a saúde, e ainda temos uma compreensão muito limitada de como o corpo funciona em situações normais. Dessa forma, eu acabei virando uma estudiosa de como o olho funciona, uma fisiologista.  

 

Escute o episódio completo acessando aqui. 
Schor: Você disse que sempre foi curiosa, que é uma característica do cientista, então eu queria saber como foi essa transição para a área tecnológica e de inovação? Você tem um background científico e acadêmico muito grande, estuda coisas muito específicas e, aparentemente, muito distantes da prática. Fala um pouco, então, desse universo da pesquisa indo para o lado do desenvolvimento tecnológico e da inovação, como isso acontece?  

Christina: Isso acontece através da colaboração de muitas pessoas. O cientista básico dificilmente conseguirá sozinho trazer a pesquisa dele para a prática, para isso ele precisará de outros cientistas que irão aplicar o conhecimento que ele gera. Existem pesquisadores que fazem o que chamamos de ciência translacional, que é pegar essa ciência básica e aplicar a perguntas específicas. Por exemplo, em um determinado processo fisiológico (expressão de um gene), vai haver uma pessoa que irá estudar como esse gene se expressa e outra que irá estudar quais drogas influenciam na expressão desse gene.  

E vai ter também uma outra pessoa que vai falar assim: Ah, será que eu posso usar essa droga em um modelo de doença e verificar como a alteração da expressão desse gene influenciará nessa doença?”. Essa é a história, por exemplo, dos corticosteroides aplicados a várias doenças retinianas, eles alteram a expressão de vários genes. E aí vamos precisar de muitas pessoas que levarão esse conhecimento para a prática clínica, incluindo também os pacientes, que serão os voluntários para participar dos estudos clínicos. 

 

Schor: Você fez estudos com peixes e com diversas outras espécies animais. Conta para nós como é o caminho disso, quais são as etapas do desenvolvimento de uma droga, dos estudos clínicos? 

Christina: O desenvolvimento de uma droga passa por várias etapas antes de chegar em um paciente, ou seja, na prática clínica. Temos a fase de desenvolvimento que acontece in vitro. Aliás, primeiro existe o computador, uma modelagem toda para fazer um screening, uma seleção de moléculas que possivelmente poderiam agir em uma determinada condição. Daí essas moléculas serão sintetizadas e testadas em culturas celulares, isto é, são células que expressam a substância, ou o receptor ou qualquer outra coisa que a pessoa queira testar.  

Nessa fase são testadas 2 mil, 3 mil substâncias e acabam sendo selecionadas cinco ou seis candidatas. Quando essas candidatas (drogas) emergem, aí começa a fase pré-clínica, que é quando essa droga será testada em modelos animais, porque infelizmente não existe uma cultura celular que replique a complexidade de um organismo, e não podemos testar direto em seres humanos. Dessa forma, serão testadas em termos de segurança (diversas doses), depois será avaliada a farmacocinética da droga, que é quanto tempo que ela permanece no organismo 

Além disso, vamos avaliar a farmacodinâmica da droga, que é depois que ela entra no organismo, como que o metabolismo dessa medicação funciona, como ela sairá do organismo; depois ela será testada pelo seu efeito propriamente dito. Posteriormente, vem a etapa em que serão usados modelos animais para a doença de interesse. Na oftalmologia, temos o glaucoma, por exemplo, e uma série de outras doenças que afetam os olhos, e existem modelos animais com essas patologias, como a miopia, na qual existe um peixinho que, naturalmente, apresenta essa condição, e durante a década de 1970, ele foi muito utilizado para estudar como é que acontece esse crescimento exacerbado do olho. Usamos, dessa forma, modelos animais para saber qual é o efeito das drogas.  

Passada a fase pré-clínica, sabemos que essa droga é segura, sabemos o que acontece com ela quando entra no organismo e que ela age na doença de uma maneira interessante em modelo animal. Não podemos traduzir isso diretamente para o ser humano, porque, obviamente, existem similaridades entre um camundongo e um ser humano, mas um camundongo não é um ser humano, isto é, temos uma série de particularidades inerentes a nossa espécie. Primeiro na fase clínica serão testadas várias espécies animais e a gente começa com peixe, que é para estudar a segurança da droga, depois passamos para o camundongo, o coelho, o cachorro e o macaco. Passamos, assim, por todas as etapas necessárias. E depois do macaco, começam os estudos em seres humanos, que são os estudos clínicos com voluntários. Nessa fase, teremos os estudos de fase 1, que são para investigar novamente farmacocinética, farmacodinâmica e segurança em seres humanos.  

E daí partimos para a fase 2 do estudo, que é para começar a testar os efeitos da droga vs. controle, ou seja, dos pacientes que têm a doença, metade deles irá receber a droga e metade não, e então observamos nesses pacientes se a droga exerce o efeito positivo que ela demonstra em estudos animais. Em caso positivo, avança-se para a fase 3, na qual precisamos comprovar que essa nova droga é superior às que são utilizadas comumente na rotina clínica. Para uma droga ser lançada no mercado, ela tem que ser igual ou superior à que já existe no mercado. Passadas todas essas etapas, aí sim a droga passará a fazer parte da prática clínica. Estamos falando aí de dez ou quinze anos de trabalho, entre a modelagem dessas moléculas no computador até os estudos clínicos em seres humanos e a aprovação da droga. 

Escute o episódio completo acessando aqui. 
Paulo: E o que você está fazendo atualmente na Allergan que poderíamos esperar de avanço cientifico? 

Christina: Eu não estou mais fazendo pesquisa, mas estou envolvida na busca de soluções de uma outra maneira, que é ensinar as pessoas. Como gerente médica, o que eu faço são apresentações, treinamentos, organização de eventos para médicos, educação continuada. Mas estou descobrindo ainda esse trabalho, porque acabei de começar; por exemplo, essa semana eu estou preparando um treinamento dentro da empresa sobre as doenças da retina causadas por diabetes etc., e as terapias atuais existentes. Em termos de drogas em desenvolvimento, eu participo do processo educando, porque é preciso um esforço muito grande de muitas pessoas e nem todas elas sabem exatamente qual a sua parte nesse processo.  

Não temos só pesquisadores no desenvolvimento de uma droga, também pessoas envolvidas, por exemplo, em estudar a viabilidade da droga no mercado. Vou dar um exemplo bem claro: tem uma medicação agora nos Estados Unidos, da Allergan, para presbiopia, na qual estão sendo feitos estudos clínicos, já existem pacientes sendo recrutados para essa droga nos Estados Unidos, e eu pensei nossa, eu compraria essa medicação para me ver livre dos óculos.” Aqui na Alemanha, essa droga não teria a mínima chance, porque os seguros de saúde não pagariam por ela e os pacientes não comprariam, por isso aqui ela não teria mercado, mas nos Estados Unidos sim. Dessa forma, temos pessoas participando desse processo que fazem exatamente esses estudos, mas elas precisam também receber treinamento para entender todo o processo. 

Essa é, portanto, minha função atual na Allergan, sou uma representante científica dentro da empresa para a comunidade médica, no intuito de fortalecer os laços entre os médicos e a empresa. Por exemplo, uma coisa que as pessoas não sabem é que as indústrias fazem muitas parcerias com hospitais, com universidades e com clínicas particulares, justamente para desenvolver esses estudos clínicos, pois elas não fazem tudo sozinhas, precisa haver uma parceria. O desenvolvimento de uma droga requer inúmeros pesquisadores de universidades trabalhando junto à empresa, dessa maneira, precisamos ter na empresa pessoas que também conversem com esses pesquisadores e entendam quais são as questões que eles trazem, para podermos oferecer uma solução que atenda às necessidades dos pacientes. 

 

Paulo:  Perfeito, e você tem total lugar de fala, porque entende muito profundamente das questões que os pesquisadores levantam e sabe que não é algo banal. Você é a pessoa certa no lugar certo e eu quero te agradecer muito pelo bate papo. Acho que esse seu dom de se comunicar e de se fazer presente é ótimo. Tomara que muitas pessoas consigam nos ouvir. Obrigado pela nossa conversa 

Christina: Eu que agradeço o convite!

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