Neste episódio do Programa RX – Por dentro da sua próxima receita médica!, realizado em 3 de fevereiro de 2022, conheça mais sobre a história do médico pediatra Olaf Kraus de Camargo. O pediatra realizou treinamento na Alemanha com foco em desenvolvimento socioambiental pediátrico e neurologia infantil e foi também, na Alemanha, professor de medicina social em Nordhausen.
É, ainda, codiretor do CanChild Centre for Childhood Disability Research (Ontário, Canadá), além de ter tido uma passagem importante como diretor médico e CEO de um centro de pediatria social em Pelzerhaken, Alemanha. Compartilhando suas diversas experiencias, o especialista nos leva a pensar que as próximas interações dos pacientes serão direcionadas a aspectos integrados. Ele aborda, também, a importância da responsabilidade social na área da saúde, respeitando sempre o perfil funcional do indivíduo, que é composto por características orgânicas, facilidades e limitações em seu dia a dia, além do contexto em que vive. Confira a seguir a entrevista completa realizada pelo oftalmologista Paulo Schor.
Paulo Schor: Hoje eu vou conversar com um grande amigo, o Olaf Kraus de Camargo, que se formou na faculdade de Ribeirão Preto junto comigo e começou a carreira na Faculdade de Medicina da Bahia (UFBA). Tem origem alemã e era conhecido como o alemão baiano que veio para Ribeirão Preto. Nós fizemos juntos o discurso de formatura da nossa turma, e no discurso falamos de uma coisa que eu vou querer explorar bastante neste bate papo, que era o aspecto da sociedade como determinante do comportamento das pessoas. Eu tenho a impressão de que fui por esse caminho e que ele só foi por esse caminho.
O Olaf teve, ainda, uma passagem que eu gostaria muito depois de conversar com ele, na Organização Mundial de Saúde (OMS), onde fez parte de um grupo que tratava das funcionalidades e reabilitação de crianças. Olaf, é um prazer enorme ter você aqui, acho que a gente tem bastante a conversar, principalmente numa época em que está havendo uma contraposição entre cuidar de um e cuidar de todos. Eu queria, então, entrar nessa questão com você para a gente tentar explorar um pouco, não dessa dicotomia, mas sim da necessidade das duas coisas juntas.
Olaf Kraus de Camargo: Muito obrigado por essa introdução, Paulo, é um prazer enorme falar com você. Bom, a parte social que você mencionou, eu entrei, na verdade, completamente por acaso. Depois que terminei minha residência em pediatria no Brasil, como sou de origem alemã, queria ter a opção de poder trabalhar na Alemanha também. E pelas regulamentações do CRM equivalente no país, eu tinha que achar algum emprego ou alguém que me supervisionasse, pelo menos por um ano, para trabalhar lá. Dessa forma, eu estava bastante aberto a todas as áreas da pediatria, não tinha nenhuma área definida do que ia fazer. Eu gostava muito de neonatologia e cuidados intensivos, mas daí surgiu um emprego em um centro social pediátrico, que é algo comum na Alemanha, deve ter uns 200 centros agora lá, cada cidade de médio para grande porte tem um ou mais desses centros, e eu não tinha nenhuma ideia o que era isso e o que iria fazer lá.
Mas fui contratado para trabalhar nesse centro e também para continuar fazendo plantões em pediatria geral do hospital local. Tenho duas observações a fazer, a primeira foi que a parte de cuidados agudos me deixava bastante perplexo, porque as crianças que eu via internadas em Ribeirão Preto, a gente ia ver na unidade de emergência e mandava depois para casa. Eu falava “por que essas crianças estão aqui numa cama, com soro etc? Isso dá para fazer oral” E isso não me satisfazia muito. Por outro lado, na parte de pediatria social, eu via crianças que tinham déficits no seu desenvolvimento, na fala, motricidade, comportamento e assim por diante, que é uma área que eu não tinha treino nenhum dentro da minha residência no Brasil. Era um trabalho completamente novo.
Havia pais bastante desesperados, porque esses déficits de desenvolvimento levam a dificuldades na escola. E o sistema escolar na Alemanha é bastante seletivo, porque por volta dos dez anos de idade, dependendo da sua nota na escola, isso vai determinar se você vai para o ginásio, uma escola normal ou para uma escola mais simples e assim já está determinado se a sua carreira será acadêmica, de mão de obra qualificada ou de mão de obra simples. Dessa forma, os pais, compreensivelmente, ficavam bastante preocupados quando viam que a criança não estava conseguindo acompanhar já no começo. E para mim, fazia bastante sentido aprender e poder ajudar essas famílias.
Alguns pediatras alemães, no final do século 19, fizeram uma observação de que crianças que crescem em condições mais pobres, com mais dificuldades, geralmente também têm dificuldades no seu desenvolvimento. Isso já era percebido naquela época. E um dos fundadores da pediatria social alemã dizia que todo pediatra que leva seu trabalho a sério, antes de tudo tem que ser um médico social, essa é a parte fundamental, e essa visão – e como o social interfere com o desenvolvimento – passou a fazer parte de vários interesses meus dali por diante. O grupo que eu fazia parte na OMS, chamado Functioning and Disability Reference Group (FDRG), dedica-se a descrever a funcionalidade humana, que é definida ou descrita por um instrumento que em português se chama CIF (Classificação Internacional da Funcionalidade).
Esse instrumento foi desenvolvido exatamente com o propósito de melhor descrever os aspectos, além do biológico, que compõem a saúde de um indivíduo. E esses aspectos são o corpo, as estruturas do corpo, as funções do corpo, mas também sobre o que você faz como indivíduo. A pessoa participa de uma sociedade através de atividades, então, por exemplo, ela lê o jornal e desenvolve ideias sobre política, a situação do país e assim por diante. E tudo isso é determinado – e aí entra a parte social – pelo contexto em que essa pessoa vive. Ela pode, por exemplo, ter uma boa visão, pode ter habilidade de ler, mas pode, talvez, não ter acesso ao jornal, à internet ou à banda larga. E com isso, o ambiente a sua volta limita sua participação na sociedade. Então, mesmo tendo um corpo funcionando bem, a funcionalidade de como ela está inserida na sociedade, pode estar limitada por outros fatores. Isso, na verdade, é a maior parte do que eu faço em ensino, pesquisa, publicações, tudo em volta desse conceito de funcionalidade.
Schor: Sensacional, porque você sai da história da doença e parte para o comportamento, que está muito mais perto, eu imagino, da felicidade das pessoas. Se as pessoas conseguem fazer as coisas, elas têm mais autonomia sobre suas vidas. E esse determinante social que a gente aprende na escola como parte da definição de saúde, quando você coloca desse jeito, fica absolutamente claro que não dá para ter as terapêuticas e não ter condição disso acontecer. Eu queria que você comentasse um pouco sobre o suporte das pessoas e das famílias e, principalmente, o reconhecimento dos grupos de pacientes que se apoiam, porque a sociedade médica está muito pouco preparada, principalmente no Brasil, pa ra fazer esse tipo de suporte.
Eu sei que você trabalha bastante com a sociedade de pacientes também, mas em doenças que são até agora incuráveis. E eu tenho a impressão de que teremos que fazer uma discussão bem profunda em relação ao recurso, que é limitado. Quanto de recurso vai para uma doença que seja rara e precisa de muito dinheiro versus uma doença muito prevalente que precisa de menos investimento. De qualquer jeito, temos esse outro aspecto que é quase algo de suporte mesmo, de acolhimento, de apoio, e que é muito útil. Quer comentar um pouco disso? Como é que essa organização social é incorporada no tratamento dos pacientes?
Kraus: Eu acho que você está se referindo mais a pesquisa, certo? Isso é uma coisa que foi muito inovadora para mim. Eu estou no Canadá agora há 13 anos e ouvi o podcast com a Mariane e com o Tavinho, nosso colega. E vocês estavam falando, principalmente a Mariane, que temos que cocriar e codesenhar para haver inovação. Isso está incorporado também na pesquisa aqui, você desenha o seu projeto de pesquisa já com pacientes participando, organizações de familiares ou de pacientes, com membros representantes na sua equipe de pesquisa e depois, quando finalmente consegue publicar alguma coisa, eles são coautores.
Há um engajamento já desde o começo da ideia, que é muito importante. Importante pelo respeito, pela dignidade dos pacientes, mas, principalmente importante, e isso vocês abordaram no podcast, para o uso do que você desenvolve. Se você desenvolve algo sem perguntar quem irá usar, já desde o começo você corre o risco de desenvolver algo que depois ninguém usará. Por exemplo, no campo que eu trabalho tem adultos com autismo que falam “não quero ser curado disso, eu sou diferente, funciono diferente, tem gente que tem problema com meu comportamento, eu não sou fácil, sei disso, mas não quero me curar”. Portanto, há uma outra relevância se você já engaja as pessoas desde o começo para inovação.
Schor: Isso é de novo fantástico, é uma visão completamente pacientocêntrica, design centrado no usuário, a última instância. Em relação a paciente fazer parte do desenho de pesquisa, a primeira crítica que a gente escuta, e que para mim não faz sentido, mas eu gostaria de ouvir sua opinião, que tenho certeza é parecida com a minha, é que paciente não tem que palpitar, paciente tem que tomar a droga e pronto. Comenta um pouco disso, dessa educação. No seu último paper, entendi que isso é sobre cultura e engajamento, de educar os pacientes em relação a isso. Não é que nós médicos nascemos com o dom do entendimento e as outras pessoas todas do mundo são completamente ignorantes, dá para conversar sobre isso. Qual é a sua resposta a essa crítica rasa, no meu entender?
Kraus: Olha, eu ouço essa mesma crítica também, e mais no Brasil do que aqui, e eu acho que ela indica uma necessidade de reforma no currículo mesmo. Temos que criar médicos de uma maneira diferente do que fomos criados. Nós aprendemos uma visão um pouco diferente, provavelmente por trabalhar em diferentes lugares, observar diferentes perspectivas e começar a questionar como fomos treinados. Eu lembro de épocas em que eu, provavelmente, não era muito pacientocêntrico ou mãecêntrico ou paicêntrico, dizendo “tem fazer isso, tem que ser desse jeito e pronto”. Não, não é mais desse jeito, precisamos compartilhar as decisões com o paciente. Isso também é algo que temos que aprender a fazer, claro, não é também fazermos um diagnóstico e no final dizer “bom, agora você escolhe que cirurgia você quer ou que fio que você quer que use na sutura”.
Não é isso, é você engajar o paciente desde o começo no que que você está fazendo. O aluno de medicina será avaliado e ele tem que explicar tudo o que ele está fazendo para o paciente. Saber citar perfeitamente os reflexos, fazer um fundo de olho, auscultar, fazer tudo isso perfeito, mas sem explicar ao paciente o por que está fazendo, não vai ter uma boa nota. Esse é um aspecto importante, acompanhar o paciente e levar ele com você desde o começo equivale também a dizer “olha, estou boiando agora, eu não sei, nunca vi isso, vou ter que ler, estudar, ligar para um colega etc”. Isso tudo faz parte e, com isso, você gera uma base para depois poder chegar também nas opções terapêuticas e falar “bom, nós vimos isso e aquilo, te expliquei isso e agora temos essas opções”. Então, essa interação com o paciente, com a mãe, com o pai, é fantástica e precisa acontecer.
Schor: Perfeito, acho que isso é o sumário da cocriação que você diz que a Mariane estava comentando no podcast dela, do desendeusamento do médico, que, na pior das hipóteses, terá menos processo, porque o paciente será seu cúmplice. Eu não quero um consumidor, eu quero um cúmplice, quero alguém que se comprometa com o resultado do tratamento tanto quanto eu. E o que você está falando é cultural, acho que é mais do que educação, é quase emocional. E nós vamos precisar trazer o paciente ou a mãe ou a família para coisas que realmente não sabemos.
Por exemplo, há algumas discussões sobre doença crônica e eu sei que tem algumas universidades fazendo essa discussão sobre como lidar com o paciente crônico. O que é paciente crônico? Os estudantes perguntam. É o paciente que sabe mais do que você sobre a doença dele. E isso é tão sensacional e a gente presta tão pouca atenção. Eu no consultório o tempo todo tento dar autonomia ao paciente, porque não quero ter o monopólio de todas as decisões pequenas da vida dele. Mas eu acredito que é um trabalho emocional que temos que fazer dentro da gente e dos estudantes que vêm para fazer uma medicina um pouco mais integrada com o paciente.
Mas Olaf, em relação às particularidades da pediatria, e quem está fora da pediatria tem essa dificuldade grande de entender, como é que funciona o paciente pediátrico nesse engajamento? paciente/mãe? Quando você consegue botar o paciente na jogada? Porque a família imagino que você coloca bastante. Eu tendo a não imbecilizar as pessoas e acho que o que você está falando é muito isso. As pessoas têm a capacidade de entender, se você explicar ela vai entender e se ela entender vai te ajudar nas decisões. Como funciona isso nas crianças de um jeito mais prático?
Kraus: Depende de cada criança, mas sempre que possível eu incorporo isso no atendimento, eu falo com a criança sobre o que nós vamos fazer e o por que vamos fazer, para que serve uma medicação etc. Isso me lembra um paciente que eu inicialmente vi por causa de dificuldades motoras, acompanhei por vários anos e ele foi desenvolvendo uns padrões que a gente vê em autismo de alta função (Asperger). Ele se dava bem com outros alunos, tinha algumas amizades, mas nada muito desenvolvido. Certos diagnósticos te dão alguns benefícios, e aqui, se você tem um diagnóstico de autismo, pode acessar certos serviços, e pensando mais para o futuro, para universidade, tudo talvez seja um benefício.
Eu falei para ele “com tudo o que você está apresentando, provavelmente preenche os critérios diagnósticos para autismo de alta função. Você já leu sobre isso? conhece?” “Ah sim, já ouvi”, ele respondeu. Ele tinha uns treze anos na época. Dessa forma, algumas pessoas se beneficiam em ter uma etiqueta, porque conseguem outros serviços, é mais fácil para serem aceitos em certos lugares e tudo mais. Mas claro que depende da criança, não é toda criança que você pode fazer isso, mas esse menino tinha capacidade suficiente de entender e de fazer uma autorreflexão e conseguiu fazer essa decisão junto comigo.
Schor: Isso é ouro. O que você está passando é uma visão completamente diferente da visão que a gente tenta chegar e acho que tem um salto no tempo e de qualidade que é quase inimaginável. Não é só você explicar para o paciente, é não subestimá-lo, não se isolar e não isolar o paciente. Não dá para você falar que a droga resolve, independentemente de qualquer coisa. Há uma responsabilidade da sociedade organizada e, ao meu ver, do Estado, em fazer uma diminuição da desigualdade, fazer uma distribuição onde não chega a iniciativa privada, ter um patamar ou uma rede de bem-estar social, que vocês têm aí e que aqui está longe de conseguir. Na Europa, conseguimos um pouco mais, mas acho que é prestar atenção, respeitar e dar importância a outros atores que não somente a “cura”, a cura é mais complexa do que parece. Para finalizar, você poderia falar um pouco dessa contextualização do papel, talvez social, do Estado, da comunidade organizada, onde que essa turma entra na próxima receita médica?
Kraus: Eu acredito que isso leva de volta ao conceito de funcionalidade que eu mencionei da CFI. A Classificação Internacional da Funcionalidade, além de ser um conceito de você pensar e ver a pessoa de maneira holística, também é uma classificação com códigos, com números, com qualificadores, que permite, realmente, descrever de maneira bem granular ou menos granular o perfil funcional de uma pessoa. Eu gosto de chamar de “funcionomix”. Cada pessoa tem o seu perfil de funcionalidade que é composto das características orgânicas dela, composto das coisas que ela gosta de fazer, ou é bom em fazer, e as coisas que ela tem dificuldades em fazer, e o contexto em que ela vive e que pode ser facilitador ou pode ser uma barreira para a participação dessa pessoa, tudo isso faz o perfil.
A responsabilidade social em saúde é realmente desenvolver um sistema no futuro que capte as diferentes funcionalidades de uma população, identifica as necessidades, onde é necessário intervir para melhorar a participação de cada um. Pensa, por exemplo, uma cidade que tem um certo orçamento e está com muitas ruas esburacadas ou calçadas esburacadas, se você tem um perfil de funcionalidade da sua população, dos seus bairros, onde é que estão morando essas pessoas que têm dificuldades de mobilidade, então, vamos alocar o dinheiro ali.
Hoje em dia, o dinheiro vai para onde tem o lobby mais forte, é no bairro chique, no shopping. Lá onde tem pessoas que precisam de uma calçada boa e que precisam de um asfalto intacto, porque elas têm dificuldade de ser locomover, o dinheiro não vai. Não é gastar mais, mas gastar de maneira mais inteligente e mais adequada às necessidades das pessoas, e a gente só vai poder fazer isso na hora que conseguirmos captar esses dados. E são dados muito mais ricos do que dados somente de diagnóstico, que é importante, mas não dá muito para gerenciarmos em cima disso, em cima de funcionalidade poderíamos gerenciar muito melhor o dinheiro que temos e que sempre é limitado.
Schor: Adorei o “funcionomix” e a gente precisa ir atrás de “funcionometria”. E é verdade, acho que é uma caracterização e uma proposta factível. Não é uma coisa de sonho, é bem factível, e que pode, de fato, ser mostrada para os políticos.
Kraus: Verdade, e quem pode gerar esses dados são as próprias pessoas. Elas, com tecnologia, podem descrever qual o seu perfil funcional, quais as coisas em que têm dificuldade e criar dados com isso.
Schor: Olaf, agradeço muito sua participação. Tinha certeza que você iria trazer insights completamente fora da caixa, tenho muita saudade das nossas conversas, tenho certeza que a gente vai conseguir papear muito mais. Obrigado!
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