O oftalmologista Paulo Schor entrevistou, no dia 24 de junho de 2022, no Programa RX – Por dentro da sua próxima receita médica!, o cientista Ernesto Goulart, que conta em detalhes nesta conversa o trabalho realizado com engenharia tecidual, projeto financiado pela NASA, com o objetivo de responder à pergunta “qual é o efeito da microgravidade na diferenciação, ou seja, na produção de uma célula a partir das células-tronco até uma célula pulmonar?” Outro ponto de destaque abordado no bate-papo foi sobre transplante de órgãos suínos geneticamente modificados em humanos. Vale a pena conferir estes e outros assuntos discutidos na entrevista realizada com o pesquisador, que você lê abaixo na íntegra.
Paulo Schor: Olá, eu hoje vou conversar com o Ernesto Goulart e é uma conversa que eu protelei durante algum tempo do melhor jeito possível, mas eu curti essa espera para falar com o Ernesto, porque eu o conheci em um evento muito interessante, que é ainda inédito ou muito pouco realizado no país, em que pessoas interessadas, com uma base científica forte, reúnem outras pessoas muito interessantes, com produções científicas mais fortes ainda e investem para que isso vá à sociedade. Portanto, tem tudo a ver com o que vamos oferecer em termos científicos para a sociedade.
O Ernesto tem uma formação sólida em Universidades Federais. Ele fez Farmácia Industrial na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), depois fez mestrado na mesma faculdade e, posteriormente, doutorado na USP, estagiando em produção na Temple University (EUA). Aí ele trabalhou com uma coisa que eu vou querer que ele conte um pouquinho para nós, que é microgravidade, uma vez que a gente está no tempo das missões espaciais. Agora ele está como pós-doc em um dos laboratórios mais prestigiosos do Brasil, na USP, desenvolvendo produtos e trabalhando com tecnologias que são muito promissoras. Ernesto, muito obrigado por aceitar o convite. Acho que a gente tem um papo grande pela frente.
Ernesto Goulart: Paulo, muito obrigado pela oportunidade. É um prazer falar com você.
Schor: Ernesto, eu acho que a gente pode começar pelo fim. Muita gente que nos ouve não tem a densidade da função de um pós–doutor, e isso quem está na universidade sabe bastante bem qual é a função de um pós–doutor. E quando a gente anda por laboratórios de ponta ou por outros lugares do mundo, os pós–doutores são chamados de lebczares, que são os czares dos laboratórios. Eu sei que você é o lebczar do seu laboratório, mas eu queria que você falasse um pouquinho disso. Tem dois lados, né? tem o lado bom do pós–doutorado, mas quando a gente começa a ter muito pós–doutor no sistema, quer dizer que o sistema não está absorvendo os pós–doutores para serem professores. Por outro lado, os pós–doutores em lugares onde existe a carreira de pesquisador são fundamentais para o funcionamento do laboratório e, principalmente, no teu caso, para a tradução do laboratório para fora dele, porque você é jovem e, diferente dos docentes de mais tempo de carreira, não está mais próximo da aposentadoria, você está mais próximo da formação. Eu queria que você falasse um pouquinho disso.
Goulart: Com certeza, Paulo, eu acho que a gente precisa começar revendo como é a formação de um cientista. Creio que tudo começa quando um aluno, ainda em graduação, normalmente faz um programa que chamamos de iniciação científica, que é o primeiro contato de uma pessoa com a carreira, com a profissão de um cientista, em que ele vai aprender desde a filosofia básica da ciência, como estruturar um projeto, como estruturar uma pergunta. Acredito que uma das coisas mais importantes no mundo do cientista é a estruturação de uma boa pergunta e de uma metodologia, para você entender como que vai responder àquela pergunta. E depois vem o mestrado e o doutorado, caso a pessoa realmente tenha aptidão e interesse em seguir nessa profissão.
O mestrado e o doutorado ainda são estágios meio que de treinamento, mas já de execução de projetos relevantes cientificamente. Dessa forma, eu gosto sempre de falar, Paulo, que os nossos alunos de graduação e de pós-graduação são realmente a mão de obra da ciência, quem de fato está ali na bancada fazendo, executando os experimentos que irão gerar os resultados publicados em artigos científicos etc. Depois desse período, o cientista está formado, ele tem já uma base sólida para liderar projetos, para liderar grupos e tudo mais. Toda essa formação do cientista é voltada para ele se reingressar de volta na academia ou procurar oportunidades no setor privado, também desenvolvendo pesquisas.
E aí entra o pós–doutorado, que é um período em que o cientista já formado tem uma oportunidade de continuar executando um projeto, liderando uma equipe agora, ainda dentro de uma estrutura de uma universidade, com todo o acesso aos recursos necessários para executar esse período. É um momento em que você não tem um prazo, você não recebe um diploma nem nada, mas você está ali com a oportunidade de desenvolver a linha de pesquisa que escolheu, e com o apoio de um outro cientista mais sênior, como se fosse um advisor, uma pessoa ali para te ajudar a ingressar nesse período, é o primeiro passo realmente para o cientista se fixar em algum lugar, conseguir uma oportunidade, seja dentro da academia ou dentro do setor privado, que agora vem cada vez mais crescendo pelos investimentos em startups, em negócios privados e também pela diminuição das oportunidades no setor público dentro das universidades.
Schor: Eu queria começar falando sobre essa tua colocação da pergunta para a resposta, que você coloca muito bem em relação a pesquisador e pesquisa (perguntas de pesquisa). E você, nitidamente, por estar envolvido em startup e ter fundado e mentorado startup, depois vai falar disso também, porque eu acho importante para a gente entender de onde vem o produto que a gente consome, porque ele não nasce na farmácia, ele nasce em outro lugar. Mas você foi para a resposta e isso é algo que eu tenho visto, não sei como é a tua visão, sendo procurado pelos pós-graduandos, que chegam para fazer pesquisa querendo que o seu doutorado não seja um papel na parede. Vários querem e aí a gente explica que não é bem assim que funciona, que não é por isso que ele vai fazer pós-graduação, mas muita gente quer ter relevância, que é o que você falou. Como você vê a passagem da relevância para esses ingressantes e como é que para você apareceu a relevância ou já nasceu dentro de você querer fazer algo que tivesse uma entrega, que fosse algo escalonável?
Goulart: É uma ótima pergunta, Paulo, eu vejo a importância da pesquisa básica e a também da pesquisa aplicada, ambas são importantes. A pesquisa básica é o que gera o conhecimento para você conseguir desenvolver uma aplicação. Então, elas têm que andar sempre juntas, isso depende muito do perfil. Por exemplo, tenho alunos que eu vejo que têm um perfil excelente para desenvolver pesquisa básica, para tentar descobrir as coisas que a gente ainda não sabe da natureza. Outras pessoas têm uma vocação maior com o que a gente já tem de desenvolver produtos, serviços, bens, com base naquele conhecimento que já foi desenvolvido ou que já está bem amadurecido. Eu sempre tive uma vocação e um interesse maior pela pesquisa aplicada, para o desenvolvimento, como você falou muito bem, de algo que a gente consiga ver chegando lá na ponta, lá no paciente, lá no consumidor final daquela tecnologia. Então comigo foi bem isso. Na verdade, desde o começo da minha formação, sempre busquei desenvolver projetos aplicados e isso foi uma motivação também bem pessoal.
No começo da minha formação científica eu perdi o meu tio por causa de hepatite C e ele nem chegou a ficar muito tempo na fila de espera de transplante antes de falecer, e eu vi a dor realmente das pessoas que ficam em fila de espera para transplante de órgãos e na época eu conversei com algumas pessoas sobre se é possível resolver o problema das filas de espera para transplante de órgãos e a maioria das pessoas fala que sim, que é possível, mas que a gente nunca vai conseguir isso na nossa vida, talvez nas próximas gerações. E com esse perfil meu de pesquisa aplicada, eu propus desafiar essa noção de que na nossa geração não íamos conseguir superar esse problema, e a partir dali eu comecei a dedicar todos os meus esforços realmente para isso, para desenvolver tecnologias que possam algum dia zerar ou, quem sabe, diminuir ao máximo uma fila de espera para transplante de órgãos. Acho que cada um tem uma motivação e, como formador de equipes, acho que a gente tem que tentar explorar o potencial de cada um e a vocação de cada um, e a minha vocação, meu potencial, vejo que é mais nesse sentido.
Schor: Vamos falar um pouquinho de ciência? Eu queria começar falando sobre como ler ciência e você é uma pessoa ótima para conversar sobre isso. E eu queria voltar na história da individualização para a gente poder generalizar. Você tem um artigo publicado em 2020, citado num periódico importante e que tem um fator de impacto dez. Antes de começarmos esta conversa, nós estávamos fazendo um “esquenta de motores” falando o que isso quer dizer e como é que poderíamos traduzir isso para quem está nos ouvindo, porque estamos muito numa era, o que é ótimo, de informação livre, e a informação livre nem sempre é uma informação que tem a segunda linha, o segundo parágrafo disponível para as pessoas lerem, geralmente é só o primeiro.
E eu queria que a gente explorasse aqui com um pouco mais de tempo e profundidade o que é essa segunda linha de jornal de alto impacto, citado muitas vezes. A gente falou bastante de líder de grupo, você é o primeiro autor desse artigo, então você é o líder dessa pesquisa, mas você tem muitas pessoas junto com você nesse artigo. Também queria que você explicasse um pouco por que artigos de altíssimo impacto publicados em revistas como as que você já publicou, como a Nature e por aí vai, têm muitos autores e que isso não é demérito. Então fala um pouco sobre isso, porque isso não é óbvio, é relativamente difícil, mas eu sei que você se consegue explicar.
Goulart: Perfeito, Paulo, olha, a ciência é extremamente colaborativa, e o que eu quero dizer com isso é que para a gente conseguir responder à pergunta que eu comentei lá atrás, precisamos estabelecer uma metodologia para conseguir respondê-la da forma com que, cientificamente, aquilo tenha um valor, tenha um reconhecimento. Para isso, muitas vezes, Paulo, a gente tem que recorrer a diversas abordagens, diversos experimentos para responder àquelas simples perguntas, mas para termos certeza da resposta, porque a resposta é aquilo realmente que estamos vendo, que analisamos e que é aquilo mesmo, isso aumenta muito a complexidade do desenvolvimento daquele projeto. Então, por causa disso, temos que recorrer a diversos expertises.
Temos que conversar, por exemplo, com uma pessoa de outra área que vai fazer um experimento x e nisso a gente cria uma rede de colaboradores, pessoas que sabemos que são referências em determinados experimentos e em determinadas análises, e a gente estabelece uma colaboração. O que determina, por exemplo, que um trabalho tem uma relevância um pouco maior, não necessariamente é a pergunta, mas às vezes até a forma como você conseguiu responder a ela, com o grau de profundidade com que você conseguiu respondê-la, e hoje, com o avanço da tecnologia, as ferramentas para aumentarmos essa complexidade de ter cada vez mais segurança da nossa resposta avançam muito e é muito difícil uma pessoa, um grupo só, conseguir dominar todas essas tecnologias, dessa maneira, temos que cada vez mais ser colaborativos.
Por isso que em jornais de impacto maior, você tem vários autores, porque foram vários experimentos realizados, várias técnicas utilizadas e o grau de confiança no resultado aumenta significativamente. Os jornais de alto impacto normalmente têm isso. E impacto, quando dizemos isso, é porque nós, como cientistas, criamos um sistema de métricas para avaliar o quanto aquele trabalho foi realmente relevante, qual é o impacto dele. E a gente avalia o impacto de um trabalho científico pelo número de citações que ele teve. As revistas que publicam esses artigos fazem uma média com base no que cada um desses artigos que ela selecionou para publicar foram citados, portanto, uma revista que tem um fator de impacto dez é porque, em média, os artigos delas são citados no mínimo dez vezes. É uma métrica que a gente estabeleceu para avaliar o processo editorial daquela revista. Então, aquela revista é uma publicação que exige mais – exige mais experimentos, mais quantidade de informações e segurança naqueles resultados – para publicar algo, e por isso é uma revista com um fator de impacto maior. Resumidamente, é isso. Espero ter sido claro, não é tão fácil de explicar.
Schor: Foi super claro e isso desvia a gente absolutamente dos achismos e de algo como “tal pessoa falou tal coisa”. Uma definição de cientista, pelo menos do que entendemos por cientista, é a pessoa que sabe o que está falando da área dela profundamente. Isso é muito legal e no mundo de hoje é quase fora de moda, mas é bem importante a gente ter essa profundidade. Mas vamos falar um pouquinho da microgravidade que me interessou muito e eu queria saber o que é essa história da microgravidade e das células pulmonares, então conta um pouco do que você foi fazer lá em Temple.
Goulart: Quando eu cheguei nos Estados Unidos, o laboratório que eu trabalhei era um departamento, na verdade, de bioengenharia, e eu fui trabalhar lá e, mais especificamente, com a engenharia tecidual. A possibilidade de produzirmos tecidos e órgãos humanos em laboratório, no local que eu trabalhava, tinha um recurso, um financiamento da NASA para desenvolver pesquisas utilizando os biorreatores que a NASA desenvolveu ali no final da década de 80, início da década de 90. E por que a NASA desenvolveu biorreatores? Experimentos, sejam eles os mais diversos possíveis de serem executados na estação espacial, têm um custo muito alto, porque você tem que levar aquele material para lá, testar aquilo na estação espacial, ver o efeito da microgravidade na ausência quase total de gravidade em um sistema biológico, por exemplo, o que vai acontecer com uma planta que vai para o espaço? O que vai acontecer com o ser humano se ele viver no espaço um dia?
Todas essas perguntas, a NASA sempre tentou e outras agências sempre tentaram também responder, porque a gente visualiza que um dia pode ser que a nossa civilização vá explorar o espaço, outros planetas adjacentes. Então, a NASA, por conta disso, desenvolveu alguns biorreatores, que são sistemas de cultivo de células humanas e tecidos humanos que mimetizam a gravidade espacial. Basicamente, o biorreator que eu trabalhei era um “biorreatorzinho”, em que eu colocava células humanas dentro e ele ficava rodando bem devagar, só que sem gerar turbulência no líquido que envolve aquelas células, como se aquele tecido estivesse constantemente caindo. Dessa forma, não temos o efeito da gravidade, o vetor gravitacional é anulado. E o que eu tentei responder nessa pesquisa especificamente foi qual o efeito da microgravidade na diferenciação, ou seja, na produção de uma célula a partir das células–tronco até uma célula pulmonar.
Imagina–se que no futuro a nossa civilização precisará se reproduzir no espaço, mas o que isso irá impactar, por exemplo, na embriogênese, ou seja, na formação de um embrião que está sendo formado no espaço? E outras perguntas surgiram durante a execução do nosso projeto, o que é muito comum, porque a gente começa com uma pergunta e no meio do caminho já se abrem outras e, a partir destas, abrem-se mais outras perguntas e por aí vai, é muito normal isso em ciência. Mas nós observamos que a microgravidade tem um efeito muito benéfico para a diferenciação das células e isso é interessante, porque nos nossos sistemas hoje de estudo desses tipos de células, a gravidade está ali o tempo todo tendo um impacto naquela célula e a microgravidade simula muito melhor o desenvolvimento embrionário do que o nosso sistema tradicional. As células, portanto, conseguem se desenvolver até melhor no sistema de microgravidade, foi o que observamos no nosso trabalho.
Schor: Isso é ultrainteressante. Primeiro, é muito gostoso ouvir o detalhamento de como a coisa acontece e é genial essa sacada de que você vai “rodando” e, no fim, a gravidade se anula. Você trabalha muito com áreas de bioengenharia, e eu acho que agora vale a pena dar uma mergulhada nisso. Você coloca que tuas áreas de interesse e tuas áreas de produção incluem células–tronco, xenotransplante, terapia celular, terapia genética, medicina regenerativa, e essas coisas estão muito na moda, o que é bom e ruim ao mesmo tempo. É bom porque atrai atenção e interesse de investidores, e sabemos que é preciso um investimento grande para isso acontecer. E, por outro lado, acaba sendo banalizado. Mas te trazer aqui não foi por acaso, teve um propósito grande, que é falar com quem conhece profundamente do assunto, ver o que existe de realidade no mundo da pesquisa e o quão longe você acha que isso está da aplicação.
E eu queria começar com a história dos porquinhos. Nas pesquisas que a gente faz e, principalmente, pesquisas aplicadas, temos muita coisa que será produzida e que irá demorar para ser produzida e custará muito para ser produzida. E tem muitas coisas que precisam ficar em segredo. A gente não deve contar para todo mundo, porque senão quem está investindo nisso perde o interesse de investir, porque depois não vai poder vender. E isso eu acho que é uma explicação legal para quem está nos ouvindo, porque eu vou querer que você fale de vez em quando “olha, disso eu não posso falar”; mas do que você pode falar, conta um pouco para nós desse seu super projeto dos porquinhos e do xenotransplante e também da startup que você está cofundando.
Goulart: Como eu comentei anteriormente, um dos meus objetivos pessoais e profissionais é realmente zerar a fila de espera para transplante de órgãos, e eu desenvolvi diversas tecnologias com o nosso grupo que avançam nesse sentido, que tornam isso um desafio que a gente consegue hoje observar como sendo possível de superar. Mas precisamos de uma alternativa o mais rápido possível para essas pessoas, porque elas estão morrendo na fila de espera para transplante, e há sete anos mais ou menos, desde a popularização das técnicas de edição genética com o CRISPR e tudo mais, que o xenotransplante, que é o transplante de órgãos ou tecidos entre diferentes espécies, tornou-se possível, porque o xenotransplante é algo que a medicina há muito tempo vislumbrava, como pegar um tecido de um porco e transplantar em humano.
Há relatos desses experimentos desde o começo do século 20, só que isso sempre fracassou porque não conhecíamos nada sobre imunologia de transplantes, absolutamente nada sobre isso. E desde a popularização dessas técnicas de edição genética, modificar o genoma de suínos ou outros animais – o suíno é o mais interessante para essa aplicação, por diversos fatores – para tornar os órgãos deles compatíveis para o transplante em humanos, tornou-se uma realidade muito rapidamente e desde 2017 o nosso grupo tem trabalhado para isso. A gente começou com um investimento de uma empresa privada, montamos um laboratório dentro da Universidade de São Paulo, e cofundamos uma startup para desenvolver essa tecnologia e gerar esses suínos, essas linhagens de animais geneticamente modificadas, para que a gente consiga utilizar os órgãos deles em transplantes de seres humanos, que é o xenotransplante.
Eu não posso entrar em detalhes sobre qual o gene que está sendo modificado, isso eu não posso porque é segredo da empresa e dos nossos investidores, mas o que a gente tem feito é realmente tornar o órgão do suíno “invisível ao sistema imune daquele paciente. Hoje, eu, você e todos os que estão nos ouvindo temos anticorpos contra as células de suínos normais, mas modificando geneticamente aquela célula, podemos tornar aquele órgão invisível àqueles anticorpos. Então, é essa é a abordagem e já existem experimentos recentes realizados nos Estados Unidos com abordagens semelhantes, mostrando que a evasão do sistema imune, a fuga do sistema imune é possível e funciona, o que é bastante motivador.
Schor: a tecnologia é sensacional, a gente consegue fazer uso dela para fazer, por exemplo, isso que você está falando, que é a edição, e acho também que vale a pena te perguntar isso, porque eu sei que você tem uma capacidade didática fantástica. A edição significa mudar alguma coisa que já está produzida e editar código genético está muito próximo de criação da natureza. Conta como é que a gente edita código genético e tira um pouco desse medo, que foi plantado por falta de conhecimento profundo, de que isso irá nos tornar algo que nós não entendemos, não reconheçamos mais, que é editar código genético.
Goulart: Paulo, editar um código genético é realizar qualquer alteração no DNA de uma espécie, qualquer que seja essa alteração, por exemplo, a remoção de um fragmento, a inativação de um gene ou até mesmo a inserção de um gene ou a troca de letrinhas. Eu brinco bastante que a edição genética nada mais é do que uma cirurgia no DNA. Curioso até isso, porque na nossa prática de genética, temos bastante contato com médicos, nós damos aula para a Faculdade de Medicina da USP, de genética médica, e muitos médicos sempre nos falam “olha, eu sempre gostei muito de genética, sempre fui apaixonado por genética, mas não é uma especialidade que eu quero fazer, porque eu não tenho como tratar o paciente.” Isso é dito porque você tem como mitigar os efeitos daquela doença genética, mas você não consegue tratar o paciente porque o problema está no DNA. Só que agora, nós temos como fazer isso. Hoje, a gente tem como ir lá no DNA, fazer uma cirurgia e corrigir aquilo.
Portanto, a ferramenta existe, ela precisa ainda passar por diversos testes de segurança e de efetividade para inúmeras aplicações que podem ser utilizadas, mas hoje a gente de fato tem isso num horizonte muito mais próximo. Erradicação de algumas doenças genéticas, eu acho que está muito próximo de acontecer e isso é realmente fantástico. Modificar a sequência do nosso DNA é ao mesmo tempo um potencial de impacto na saúde humana gigantesco, mas também abre uma certa preocupação. Não posso modificar o DNA para aumentar a altura de alguém ou mudar a cor do olho, cabelo, não é para isso que a gente está desenvolvendo essa tecnologia. Portanto, existem limites éticos que estão sendo discutidos, estão sendo implementados, dentro da academia e com a sociedade. Eu acho que essa discussão não pode ser limitada à academia, ela tem que abranger toda a sociedade e essas discussões estão acontecendo, certos limites já foram colocados para que realmente não caminhemos nesse sentido, que não é um sentido bom para a nossa sociedade e para a nossa espécie.
Schor: E esse limite ético não se limita a novas tecnologias. Você está me falando de cirurgião, e eu me apresento de vez em quando como médico cirurgião, só para falar que eu também opero, mas você faz uma cirurgia muito mais complexa do que a minha e muito mais moderna. Esse limite ético não é muito diferente, mas quando vamos formar o médico, não colocamos ele numa prova de limites morais. A gente acha que ele não vai fazer bobagem e depois pune se ele fizer. Portanto, são dois lugares muito distantes e, a meu ver, muito mais frouxos do que o que está sendo conversado hoje em termos de genética. E se discute hoje especificamente para que vai ser usada a cirurgia genética, a cirurgia celular, mas não se discute isso do ponto de vista médico geral, então eu acho que está muito mais protegido do que parece. E você me lembrou de um experimento que a gente fez algumas décadas atrás com córnea de tubarão. Olha só que coisa mais maluca, a córnea do tubarão não tem algumas camadas da córnea humana, para tirar água de dentro da córnea, especificamente, como é que ela se mantém transparente? Porque ela tem uma estrutura intracelular, um esqueleto, que mantém ela sempre sem distensão, ela é como se fosse uma ponte que não consegue inchar, fica toda travada dentro dela mesma
Dessa forma, seria um tecido interessante para colocar nas pessoas, porque você depende só de uma camada, fundamentalmente, e ela ficaria transparente para sempre. Mas claro que a gente tem o problema da imunogenicidade da córnea do tubarão, que a gente não suportaria, mas pode ser um tecido que já está no jeito para transplantar e que eu acho que com a tecnologia, com bons cirurgiões que a gente passa a ter do ponto de vista genético, e como você falou as perguntas se multiplicam e as possibilidades se multiplicam também. Ernesto, eu estou ultrassatisfeito com as explicações, eu acho de verdade que isso é um avanço grande em relação ao que a nós temos, ao que vai aparecer, mas tem que ter investimento. É aquela história de que ciência é investimento, não é gasto, aí queria deixar aberto para você colocar as últimas considerações, caso você queira falar um pouco de medicina regenerativa, que é algo que você tem falado bastante também, de células-tronco.
Goulart: Obrigado, Paulo, e até pegando o gancho da sua fala, essas discussões éticas têm que ser pautadas com base na técnica, com base nos princípios morais, mas elas não podem, de forma alguma, evitar o progresso da nossa sociedade, da humanidade. No começo da década de 1990, os transgênicos foram altamente criticados, diziam que aquilo iria modificar o DNA da espécie humana. E a gente sempre falou que isso estava longe de ser verdade e que não existia nenhuma conexão com a realidade, e hoje, pelo menos na minha opinião e de alguns outros colegas, a gente vê que conseguimos alimentar uma população humana muito por causa da existência dos transgênicos, e que eles se mostraram 100% seguros. Eu acredito que a ciência vai evoluindo e a ética tem que caminhar junto com o desenvolvimento tecnológico, um não pode ultrapassar o outro. Dessa maneira, se a pressão sobre essas discussões éticas é superior à questão técnica, isso não é bom e o contrário também não é bom.
Sobre a medicina regenerativa, Paulo, eu sou um entusiasta, a minha motivação para isso é muito grande, eu realmente acredito que com as técnicas atuais de bioimpressão 3D, que é a impressão de órgãos, utilizando sistemas de manufatura aditiva, parecido com aquelas técnicas de produção de materiais com impressão 3D de plásticos, hoje em dia já se consegue imprimir tecidos e órgãos utilizando essas tecnologias e combinando–as com tecnologias de células–tronco. Por exemplo, eu posso pegar uma célula da sua pele ou do ouvinte e em 90 dias, a partir daquelas células da pele, conseguir produzir todas as células necessárias para montar um fígado humano ou montar um coração humano. Existe todo um protocolo já estabelecido, e é formidável pensarmos que isso é real. E o nosso grupo tem se dedicado bastante a isso. A gente já mostrou que é possível, sim, fazer essas abordagens com o fígado e outros grupos já demostraram em outros órgãos e assim sucessivamente.
Dessa forma, eu acredito muito que vamos conseguir superar esse desafio de produzir órgãos em laboratório, de zerar as filas de espera e isso tudo só é possível graças a um investimento em ciência e tecnologia, na formação dos cientistas, na montagem de laboratórios. E não é uma ciência barata de ser feita, ela é cara sim, mas os benefícios no final superam significativamente os custos. Temos que valorizar mais a ciência, o investimento em ciência de alto impacto no Brasil. Hoje, o Estado de São Paulo tem o privilégio de ter a FAPESP apoiando, e não só com recursos financeiros, mas com excelência em gestão, porque não é só o dinheiro que faz a ciência de qualidade, é a gestão também, a forma com que você aplica e controla os gastos. E o Estado de São Paulo é bastante privilegiado pela existência da FAPESP, a gente espera que isso se multiplique no nosso país e que o Governo Federal também continue apoiando e apoie cada vez mais a ciência, porque reduzir investimento em ciência terá um impacto no futuro da nossa sociedade, do nosso país.
E não só em investimento público, mas também em investimento privado, porque a gente desenvolveu o conhecimento na Universidade de São Paulo, mas é a Universidade de São Paulo que vai levar isso lá para o hospital e para o paciente. Aquela tecnologia que eu e outros colegas desenvolvemos precisa passar por vários testes de segurança, efetividade e desenvolvimento de protocolos de produção e tudo o mais, que é caro e que não é o papel da universidade desenvolver, é ali que entra o setor público para, assim, desenvolver um produto que possa ser comercializado e que vai ser rentável, mas que no final das contas, quem se beneficia mais é o consumidor final daquele produto, que vai ter, então, aquela doença sendo possivelmente tratada e, quem sabe, até curada. É uma conexão que tem que ser cada vez mais incentivada, que tem que ser cada vez mais facilitada; esse diálogo, essa translação ciência e setor privado tem que acontecer cada vez mais no nosso país. Eu acho que esse é o segredo para o desenvolvimento tecnológico do nosso país.
Schor: Não podia ter sido melhor a nossa conversa, de verdade, Ernesto. Primeiro porque você coloca muita luz em cima do que está acontecendo e você coloca um farol em relação ao que vai acontecer e coloca um pouco de prazo, já está acontecendo. A conversa é muito mais hoje, pelo que eu entendo, de ajustar os passos regulatórios para que isso seja feito de um modo adequado do que fazer com que exista essa possibilidade. E você coloca isso muito claramente. A iniciativa privada levando isso para frente a partir da universidade, mas com quem consiga entender, pensar, modificar, dar as soluções para os problemas que irão acontecer, no financiamento da iniciativa privada com aplicações tão específicas, e você mostrou isso já algumas vezes e tem publicado sobre isso.
Você realmente consegue desdiferenciar uma célula de pele e transformar isso em uma célula que pode ser modificada em um ambiente, e aí essa importância de você trabalhar com ambientes sem gravidade, porque sabemos da importância do ambiente local na diferenciação da célula. São muitas variáveis que entram em jogo e você está dominando como um super alquimista várias delas, todas elas, e eu acho que é uma delícia te ouvir e, com certeza, não é só uma esperança, é legal a gente ver que tem um pensamento em frente para o bem de um e para o bem de todas as pessoas e você está liderando isso, então, obrigado de novo. Parabéns pelo trabalho, Ernesto.
Goulart: Obrigado, Paulo, um prazer falar com você. Agradeço novamente o convite e que essa mentalidade, nessa cultura que é muito clara também em você, de comunicar ciência, de mostrar a relevância da ciência e também da necessidade de a gente estabelecer uma estrutura de translação mais funcional da ciência brasileira para o mercado, para o desenvolvimento de produtos, eu acho que isso tem que ser ecoado, tem que ser multiplicado. E eu fico muito feliz de participar, de contribuir um pouquinho, bem singelamente, para que esse discurso seja reverberado. Obrigado!
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