No Podcast RX – Por dentro da sua próxima receita médica! do dia 17 de outubro de 2022, o oftalmologista Paulo Schor conversou com Gabriel Liguori, fundador e CEO da TissueLabs, startup brasileira de biotecnologia que atua na fabricação de órgãos e tecidos em laboratório, atualmente com uma unidade na Suíça, onde foi criado um hub de empresas de engenharia tecidual e impressão 3D. A repercussão desta entrevista passou por três vertentes: pela medicina, patentometria e TRL (Technology Readiness Level).
Schor conta que Liguori estudou medicina em uma prestigiosa universidade de São Paulo, a USP, mas depois não deu continuidade ao que era esperado que fizesse, que é a residência médica, indo direto para a área de pesquisa. “E isso tem várias leituras, a primeira é que as pessoas são livres para escolher o que querem; a segunda, é que se elas estiverem em um ambiente de pesquisa, podem escolher, eventualmente, uma área que não seja residência médica”, explica o oftalmologista. O terceiro aspecto é o fato de haver uma porcentagem crescente médicos que não faz residência médica. “E a residência, para quem é pouco familiarizado, é o momento em que o médico se especializa e adquire técnicas e ferramentas para cuidar de doenças específicas”, esclarece.
O cirurgião comenta que, no caso de Liguori, seria a cardiologia, para cuidar de doenças do sistema circulatório e do coração. “Entretanto, ele não é um médico que aprendeu a fazer cineangiocoronariografia, cateterismo e transplante de coração. Ele é um médico que aprendeu a fazer insumos para impressão 3D de órgãos e outras coisas. ‘Ah, então, não serviu para nada a faculdade médica dele!’ Serviu sim, serviu muito”, avalia Schor, ressaltando que a faculdade serviu para o empreendedor entender que o que está fazendo tem alguma utilidade para alguém. “Ele aprendeu a ler as pessoas”, acrescenta o especialista, enfatizando que, no seu modo de entender, a faculdade de medicina, se for tomada no seu sentido mais humanístico, como disse Adib Jatene, “serve para que ‘a gente goste de gente’, para entender as pessoas”, pontua.
Ele observa que é por isso que, especificamente a advocacia, é uma “abertura de cabeça” para o lado humanístico e da relação entre as pessoas, enquanto a engenharia o é em relação às coisas e não às pessoas. Segundo o oftalmologista, essa migração dos médicos mais jovens para áreas que não são de execução chama muito a atenção e tem sido foco de investimento de diversas empresas educacionais e que oferecem mestrados em business e administração (denominados de MBAs), para que os médicos jovens possam exercer gestão em novas empresas, as startups, que são as empresas iniciantes, nas quais esses médicos viram diretores ou iniciam como gerentes e depois viram CEOs dessas empresas.
“E temos visto também jovens médicos virando gestores de fundo de investimento em saúde e, no meu modo de entender, isso é muitíssimo rico, porque traz essa multidiversidade de olhares para áreas que são técnicas e que precisam de olhares diferentes”, avalia, explicando que a parte técnica é adquirida, mas que o olhar demora um pouco mais para ser assimilado. “Mas eu acho que isso é algo muito impactante na trajetória do Gabriel e eu gostaria de expandir um pouco essa conversa e deixar uma provocação”, afirma o cirurgião, questionando se ministro da saúde tem que ser médico, se não tem que ser alguém também com uma visão mais holística, maior do que a questão da saúde, e não alguém que saiba apenas resolver o problema da doença. “Vamos depois pensar sobre isso”, recomenda.
Outro aspecto sobre a carreira do fundador da TissueLabs é que uma parte de sua empresa foi para a Suíça, que resolveu fazer um investimento focado. “Eles identificaram na bioimpressão 3D um grande nicho de crescimento tecnológico e potencialmente escalável e fizeram um hub, isto é, uma junção de várias empresas que tinham esse mesmo foco”, destaca, informando que isso requer um primeiro investimento e o que não falta na Suíça é dinheiro. “Mas eu queria salientar que ter dinheiro não é o mais importante, mesmo porque o que o país faz é diminuir impostos, facilitar a entrada, do ponto de vista diplomático, de vistos e por aí vai, para que a empresa se instale lá e, claro, o benefício disso é enorme no futuro”, aponta.
Ele comenta que, inicialmente, os contribuintes da Suíça poderiam questionar o por que Liguori está investindo no país e não os filhos deles. “A explicação disso é porque o Gabriel, a longo prazo, provavelmente dará emprego para os filhos deles e, talvez, essa pessoa futuramente seja dona da empresa do Gabriel. Como existe confiança no futuro e estabilidade nos passos, os cidadãos acabam comprando essa ideia”, enfatiza. E ele pergunta como que as pessoas poderiam, eventualmente, ter algo parecido em outros locais. “Existem algumas ferramentas, isso não é por acaso que acontece. E eu queria chamar a atenção para duas palavras. A primeira é cientometria e a segunda é patentometria. A primeira tem a ver com o que se pesquisa atualmente no mundo de alta relevância. E aí tem uma pegadinha, o que seria de alta relevância? Alta relevância pode ser só o que dá muito dinheiro, mas em geral não é”, esclarece o oftalmologista.
Schor destaca que quando se pesquisa alguma coisa no mundo e muita gente pesquisa e publica e depois muitas pessoas citam a publicação, isso tem uma importância real. “Dessa maneira, não é só porque está rodando muito dinheiro, mas está rodando muito dinheiro porque é muito importante”, analisa, salientando que a cientometria no Brasil é pouco praticada. “Sabemos pouco o que os outros fazem, embora as ferramentas estejam disponíveis e existem pessoas especializadas nisso. E por que isso é tão importante? Exatamente para podermos priorizar o pouco recurso que temos”, informa o especialista. Ele diz que a partir da identificação de áreas de interesse na pesquisa, pode-se ir um pouco mais a fundo e olhar para as patentes dessas áreas.
Patentes, de acordo com o médico, são traduções do conhecimento para a prática; portanto, trata-se de um contrato, mas um contrato para executar uma certa tarefa a partir de um conhecimento teórico. “Assim, eu olho para a patente daquela área que eu achei na cientometria e vou verificar quais as referências bibliográficas que foram citadas nessas patentes. E, então, irei identificar se os meus grupos (nacionais) têm relevância naquele tema e vou chamar esses grupos para fazer o hub que a cientometria identificou como importante a nível mundial”, relata. Mas, para ele, existe um caminho e que não precisa ser o de dar pouco dinheiro para muita gente e depois ver o que acontece.
“Pode ser um caminho um pouco mais direcionado, porque se for somente esse, nós fechamos as portas para as boas ideias que não estejam nesse radar”, pontua, mencionando a última vertente da repercussão da conversa com Liguori, que é o TRL, que significa o nível de maturidade tecnológica. “Isto é, quando eu começo a desenvolver uma solução, eu tenho na minha cabeça uma ideia e aí eu tenho um TRL 0. Não tenho nada para entregar, minha maturidade tecnológica não é nenhuma, é uma ideia que eu tenho”, explica o médico, ressaltando que, conforme essa ideia vai passando por fases, na qual é testada inicialmente em um computador e verifica-se que ela faz algum sentido, daí é uma ideia válida. “Portanto, nós vamos do TRL 0 para o TRL 1 e os testes continuam”, completa.
Segundo o especialista, a classificação do TRL varia muito de área para área. “E quando se vai para a área da saúde, não se espera que alguma coisa passe do TRL 1 para o TRL máximo, que é 9, do dia para a noite. TRL 1 significa que eu descobri no computador uma configuração molecular que pode inibir a formação de catarata. Ótimo, agora eu quero um colírio que induza a diminuição ou impeça o aumento, o crescimento da catarata”, afirma, salientando que, certamente, isso não será alcançado rapidamente. “Talvez eu nunca consiga, mas na pesquisa médica, na pesquisa em saúde, o avanço no TRL é um grande marco, é um grande indicador, é onde nós devemos mirar para poder acompanhar e dar o sucesso ou abandono de uma pesquisa”, observa, mencionando que não necessariamente é o produto final.
De acordo com Schor, o produto final, inúmeras vezes, depende de uma conjunção de fatores, dentre os quais uma indústria para fazer com que haja escala naquela produção pequena, a Anvisa ou o FDA (ou outra agência regulatória) para fazer a regulação, ensaios clínicos com grande número de pacientes, diversas populações, preço, absorção tecnológica, enfim, várias questões que o empreendedor não controla. Na opinião do oftalmologista, essa diferença da inovação em saúde e em outras áreas, principalmente digital, é muito importante. “E aí o Gabriel teve uma grande sacada, que foi a de não construir um coração artificial, o que significaria no TRL 1 ter a ideia de construir um coração artificial até entregar esse coração no hospital”, esclarece.
Ele comenta que Liguori até poderia querer chegar nesse ponto a longo prazo, com muitos parceiros, muitos bilhões de dólares envolvidos, porém a ideia era começar produzindo líquido para impressoras 3D que fazem tecidos biológicos ao redor do mundo e depois fazer o bico dessas impressoras 3D, o plástico que reveste essas impressoras. “Coisas mais simples, mas que com isso ele consegue avançar no TRL de pequenas soluções”, revela. Dessa forma, segundo o especialista, o empreendedor consegue capitalizar a empresa. “E ele tem uma agenda relativamente declarada de fazer órgãos, mas isso é a longo prazo”, prevê.
Para ele, é preciso ter muito claro a importância do nível de maturidade tecnológica em inovação na saúde e passar isso para a sociedade, de que a entrega de soluções finais é demorada e depende de múltiplos parceiros e de direcionamento também. “E depende também de médicos que irão para pesquisa, que dependem de instituições fortes, que continuem a fazer a ciência, que antigamente era conhecida também como ciência básica, e que é fundamental”, enfatiza Schor, concluindo que isso é o necessário para que o ecossistema se feche e consiga-se ver o valor do investimento que os pagadores de impostos fizeram ao longo do tempo na melhoria da qualidade de vida das pessoas e das populações.