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Por Flavia Lo Bello
 
Ao contrário dos transplantes penetrantes, nos quais são substituídas todas as camadas da córnea, os transplantes lamelares são aqueles em que apenas uma parte da córnea é transplantada (é substituída apenas a parte doente da córnea, deixando a sadia intacta). As grandes vantagens dos transplantes lamelares de córnea são uma recuperação cirúrgica mais rápida, menor risco de rejeição e uma estabilidade refracional mais precoce.
De acordo com Roberto Pinto Coelho, médico oftalmologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP/Ribeirão Preto, a tendência é que na atualidade quase todos os transplantes de córnea sejam lamelares – anteriores (mais comuns no ceratocone) ou posteriores (mais comuns em distrofia de Fuchs e ceratopatia bolhosa) -, restando poucas indicações para os transplantes penetrantes (perfurações corneanas, por exemplo). “Atualmente, nos EUA, a maioria dos transplantes é lamelar , observa o especialista.
O médico afirma que em países subdesenvolvidos, onde se verifica difícil acesso a serviços de saúde, com necessidade de retornos frequentes e uso constante de colírios com preços inacessíveis, existe grande espaço para os transplantes lamelares, que representam uma excelente opção cirúrgica. “Uma vez que a rejeição é mínima nos transplantes lamelares e o pós-operatório reduzido e simplificado, este tipo de procedimento seria uma ótima opção , opina o especialista.
Conforme explica Ramon C. Ghanem, oftalmologista do Hospital de Olhos Sadalla Amin Ghanem (Joinville SC), o transplante lamelar (TL) de córnea é o termo utilizado para descrever a substituição das camadas anteriores da córnea, preservando as camadas internas, onde se encontra o endotélio. Ele diz que a preservação do endotélio é responsável pela principal vantagem do TL, que é a ausência de rejeição endotelial e descompensação endotelial tardia. “Essas complicações relacionadas ao endotélio são responsáveis por 90% das falências de um transplante penetrante. Assim, o TL tem uma sobrevida muito maior do que o penetrante (convencional), provavelmente durando toda a vida do receptor , avalia.
Ele afirma que o TL é indicado para as doenças da córnea restritas ao estroma, ou seja, é fundamental que o paciente tenha endotélio saudável. Cicatrizes, afinamentos, irregularidades estromais e ectasias são as indicações clássicas desta técnica. “Dentre todas, no nosso país o ceratocone avançado ainda é a principal indicação , destaca, alertando que várias complicações podem ocorrer após o TL. “Estas são similares aos transplantes penetrantes, exceto a rejeição endotelial. Na fase inicial, podem ocorrer problemas na cicatrização epitelial, deiscências incisionais e de pontos, formação de dupla câmara anterior (se houver alguma perfuração intraoperatória) e hipertensão ocular.
Segundo Ghanem, cerca de 10% dos enxertos desenvolvem no primeiro ano rejeição estromal, com edema ou infiltrados subepiteliais. “Ambos os casos respondem bem a corticoides tópicos. Haze de interface pode ocorrer nos casos de dissecção manual. A complicação mais frequente, entretanto, é o alto astigmatismo , aponta o especialista, salientando que o manejo destes casos é muitas vezes complexo, incluindo a realização de incisões arqueadas relaxantes, anéis intraestromais, topoplastia, implante de lentes fácicas e cirurgia refrativa com excimer laser. 

Desenvolvimento dos transplantes de córnea
A médica oftalmologista Verônica Bresciani Giglio, subchefe do Setor de Lente de Contato do HCFMUSP e diretora do Santa Cruz Eye Institute, comenta que desde o primeiro transplante de córnea realizado com sucesso em 1905, os especialistas têm acompanhado um progresso constante nas técnicas cirúrgicas disponíveis. “As principais evoluções foram na introdução e desenvolvimento dos transplantes lamelares de córnea, que possibilitam a substituição seletiva somente da parte doente da córnea, preservando-se o tecido saudável do receptor , revela a médica.
Ela explica que o transplante lamelar pode ser dividido em anterior e posterior. “A ceratoplastia lamelar anterior profunda (DALK) é atualmente a técnica de escolha para o tratamento de patologias da córnea anterior, ou seja, que se limita ao epitélio, camada de Bowman e estroma , destaca, informando que as principais indicações para essa modalidade de ceratoplastia são: ceratocone, distrofias corneanas estromais, ectasia pós-LASIK e cicatrizes anteriores.
Por outro lado, a oftalmologista enfatiza que a ceratoplastia lamelar posterior ou endotelial tem nas técnicas de DSAEK (Descemet Stripping Automated Endothelial Keratoplasty) e, mais recentemente, DMEK (Descemet Membrane Endothelial Keratoplasty) as principais modalidades no tratamento de distúrbios endoteliais, como distrofia de Fuchs e ceratopatia bolhosa. “O progresso contínuo das técnicas de transplante lamelar anterior e posterior tem feito com que vejamos um shift progressivo de preferência a essas técnicas em relação a cirurgias de céu aberto , analisa a especialista.
Ela comenta que este fenômeno é claramente observado nos Estados Unidos, por exemplo. Dados do Eye Bank Association of America demonstram que enquanto em 2005 os transplantes penetrantes representavam 95% das ceratoplastias realizadas no país, em 2014 se restringiam a 42%, tendo sido largamente substituídos por múltiplas técnicas de transplantes lamelares. Fatores que contribuem para essa tendência são: redução do risco de rejeição, menor indução de astigmatismo (sobretudo nos transplantes lamelares posteriores), e maior resistência do globo ocular pós-operatório.
Para ela, o desenvolvimento de instrumental específico, de novas técnicas com bons resultados visuais e uma crescente oferta de tecidos pré-cortados pelos bancos de olhos também facilitaram a propagação dos transplantes lamelares. “É certo que no Brasil também devemos vivenciar essa mesma tendência de transição progressiva para os transplantes lamelares nos próximos anos. No entanto, a curva de aprendizado requerida ainda refreia muitos cirurgiões de adentrarem nos transplantes lamelares , ressalta a oftalmologista, salientando que, além disso, a ceratoplastia penetrante não deverá perder seu espaço tão cedo, sobretudo em lesões que abrangem a parte anterior e posterior da córnea e também manterá sua indicação como técnica de resgate na conversão de transplantes lamelares em eventuais complicações intra e pós-operatórias.
Complicações pós-transplante
Em relação ao DALK, transplante lamelar anterior, Verônica esclarece que as complicações intraoperatórias próprias do procedimento incluem perfuração inadvertida da Descemet. “Fatores como inexperiência do cirurgião, cicatriz corneana profunda e ectasia avançada aumentam seu risco. Dependendo da extensão da perfuração, conversão para ceratoplastia penetrante pode ser necessária para prevenir a formação de dupla câmara anterior no pós-operatório , orienta, salientando que, quando presente, a dupla câmara anterior pode ser abordada com injeção de ar ou gás na câmara anterior e drenagem do fluido.
Ainda, alterações da interface, como haze, infecção e neovascularização, são outras complicações descritas, sendo que a primeira está usualmente associada à dissecção incompleta do estroma. “Em comparação ao transplante penetrante, uma grande vantagem do DALK é o menor risco de rejeição, pois o endotélio receptor não é substituído, permitindo inclusive um desmame pós-operatório de corticoide tópico mais rápido, o que, por sua vez, representa menores taxas de glaucoma secundário , aponta.
Segundo a especialista, a perda de contagem endotelial também é menor no DALK em relação à ceratoplastia penetrante, sendo o principal preditor da sobrevida do transplante. “Pelo fato de se manter a integridade do globo ocular, há menor risco de hemorragia expulsiva intraoperatória e infecção pós-operatória, além de maior resistência a eventual trauma contuso no pós-operatório , avalia. Em relação aos transplantes lamelares posteriores, a médica diz que as complicações mais frequentes são deslocamento do enxerto e falência primária, ambas associadas com a curva de aprendizado do cirurgião e, por esse motivo, com incidências bem variáveis na literatura: 1% a 82% de deslocamento e 0% a 29% de falência primária.
Outras complicações potenciais, de acordo com a oftalmologista, são bloqueio pupilar perioperatório, pelo efeito da bolha de ar na câmara anterior, crescimento epitelial na interface e infecção. “Índices de rejeição são inferiores quando comparados aos da ceratoplastia penetrante, com estudos demonstrando um risco de rejeição em dois anos de 1% no DMEK, 12% no DSEK e 18% no transplante penetrante , comenta, informando que outras vantagens visíveis nos transplantes lamelares posteriores são a minimização da indução de astigmatismo e deiscência da sutura. 
Constante evolução
De acordo com Verônica, as técnicas e instrumentais de transplantes lamelares estão em contínua evolução, objetivando melhores resultados visuais, redução dos índices de rejeição e recuperação mais rápida. “No entanto, esses procedimentos lamelares são tecnicamente mais desafiadores e demandam maior treinamento e tempo cirúrgico , aponta, destacando que a técnica não apurada, levando à irregularidade de interface, pode, inclusive, levar a resultados visuais inferiores aos da ceratoplastia penetrante.
A médica conta que em 2002, Anwar descreveu a técnica “big-bubble para o DALK, que ganhou popularidade entre os cirurgiões e é atualmente a técnica mais empregada no transplante lamelar anterior. Mediante injeção de uma bolha de ar no estroma profundo separa-se o estroma da membrana de Descemet. O sucesso na formação da “big-bubble facilita a clivagem do tecido, formando uma interface regular e sem opacidades. “Contudo, não é incomum haver uma dificuldade em formar uma bolha adequada. Variações da técnica como paqui-bubble , small-bubble e emprego do laser de femtossegundo vêm sendo descritas no intuito de auxiliar o cirurgião, facilitar o processo e, como consequência, aumentar a taxa de sucesso operatória , enfatiza.
Já nos transplantes lamelares posteriores, ela revela que a técnica atualmente mais usada é o DSAEK, Descemet Stripping Automated Endothelial Keratoplasty, cujo tecido doador é preparado através do uso de um microcerátomo. “Uma vez inserido o enxerto na câmara anterior do receptor e desdobrado, adere-se ao estroma receptor usando-se uma bolha de ar. Apesar de minimizar a indução de astigmatismo, nota-se um shift hipermetrópico diretamente relacionado com a espessura do enxerto , diz.
Conforme ressalta a oftalmologista, o DMEK, Descemet Membrane Endothelial Keratoplasty, surgiu como uma nova técnica que propõe um enxerto mais fino, composto apenas da membrana de Descemet e do endotélio, sem estroma posterior. O transplante de menos tecido concede melhor resultado visual pós-operatório, recuperação visual mais rápida e menor risco de rejeição. “No entanto, também é tecnicamente mais desafiador do que o DSAEK, com uma curva de aprendizado mais árdua. É justamente por essa dificuldade técnica que ainda vemos uma maior incidência de DSAEK nos transplantes lamelares posteriores , finaliza Verônica.

Aumentando a segurança e previsibilidade
Foram descritas várias técnicas cirúrgicas para otimizar a dissecção do estroma profundo da córnea receptora com o objetivo de reduzir a formação de opacidades (haze) e irregularidades na interface doador/receptor. Nos transplantes lamelares anteriores o prognóstico visual é melhor quando é feita a remoção completa do estroma da córnea receptora. Na técnica “big-bubble , o estroma e a Dua ou Descemet são separados por meio da injeção de ar no estroma profundo, com o objetivo de formar uma bolha de ar entre as camadas. 
O problema desta técnica, segundo Ramon C. Ghanem, do Hospital de Olhos Sadalla Amin Ghanem (Joinville SC), é a longa curva de aprendizado e a falta de previsibilidade. “Para facilitar o TL, aumentar a segurança e previsibilidade, em 2012 nosso grupo descreveu a técnica “pachy-bubble , que utiliza um paquímetro intraoperatório e um bisturi de diamante calibrado para criar uma incisão profunda na córnea, permitindo a injeção de ar na profundidade correta, aumentando a chance de formação da bolha de ar, passo mais importante da cirurgia , informa o médico, ressaltando que outras alternativas são a dissecção manual e com auxílio de viscoelástico. 

Fonte: Universo Visual

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