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Jayter Silva de Paula Professor Livre-Docente e Chefe do Setor de Glaucoma Departamento de Oftalmologia, Otorrrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP

O glaucoma é uma neuropatia óptica progressiva e multifatorial, caracterizada pela perda de células ganglionares da retina (RGCs) e atrofia do nervo óptico, frequentemente associada à elevação da pressão intraocular (PIO). Embora as terapias atuais se concentrem predominantemente na redução da PIO, muitos pacientes continuam a apresentar progressão da doença mesmo com controle adequado. Nesse cenário, terapias emergentes que envolvem modificação gênica e uso de células-tronco ganham interesse como alternativas promissoras.

 O que representa a terapia gênica no glaucoma?

A terapia gênica voltada ao tratamento do glaucoma consiste, em geral, na introdução de material genético no olho, geralmente por meio de vetores virais (como, por exemplo, o AAV2), com um dos objetivos primordiais sendo a modificação da expressão de genes envolvidos na degeneração das RGCs ou no controle da PIO. Essa aplicação pode ser realizada por injeção intracameral, intravítrea ou subretiniana (Figura 1) [1,2].

Esse método busca interferir nos mecanismos fundamentais da fisiopatologia glaucomatosa. Uma abordagem consiste em promover a neuroproteção das RGCs por meio da expressão sustentada de fatores tróficos, como por exemplo o BDNF (brain-derived neurotrophic factor) e seu receptor TrkB, e pela inibição de mecanismos apoptóticos e neurodegenerativos (ex.: Bcl-xl, SARM1, NMNAT2) [1,2,4,5]. Também há interesse na modulação da inflamação e da imunidade, com foco em alvos como C3, CRRY e eritropoetina [1,4].

Paralelamente, a redução da PIO por via gênica tem sido explorada por meio da regulação da produção do humor aquoso (ex.: aquaporina-1) ou pelo aumento de seu escoamento via modulação da matriz extracelular (ex.: MMP1, COX2, via RhoA/ROCK) [2]. Vetores como o AAV2, com alta afinidade pelas RGCs e baixa imunogenicidade, são amplamente utilizados [1,3,5]. Outros ensaios com modulação de genes apoptóticos também conseguiram preservar a função retiniana em modelos de pressão elevada. Em humanos, estudos clínicos com vetores virais ainda são incipientes no glaucoma [4,5].

 

Células-tronco e glaucoma

Figura 1

A terapia com células-tronco visa regenerar ou proteger as estruturas neurais da retina por meio da injeção de células com potencial regenerativo, como células-tronco mesenquimais (MSCs) ou pluripotentes induzidas (iPSCs). Essas células podem ser introduzidas no olho por diversas vias, fornecendo suporte trófico ou participando de mecanismos de neuroproteção (Figura 1). Estudos com MSCs, iPSCs e células-tronco neurais demonstraram capacidade de migrar, se diferenciar e promover sobrevivência neuronal em modelos experimentais [6,7]. Além disso, vesículas extracelulares derivadas dessas células parecem replicar parte de seus efeitos parácrinos benéficos, sem os riscos de proliferação descontrolada [6,8]. Alguns resultados positivos incluem integração funcional de RGCs transplantadas em modelos animais, com reconexão parcial com o cérebro e preservação do campo visual em roedores [6].

Em experimento clínico pioneiro com MSCs autólogas injetadas via intravítrea em dois pacientes com glaucoma em estágio avançado, nosso grupo de pesquisa avaliou a função retiniana via eletrorretinograma e documentou estabilidade funcional em um dos casos, embora com complicação importante em outro [9,10]. Esses achados reforçam a necessidade de refinar profundamente os protocolos de preparo e aplicação celular.

 

Críticas e desafios atuais

Apesar do entusiasmo, vários desafios permanecem. A natureza multifatorial do glaucoma dificulta a escolha de alvos terapêuticos universais. O caráter poligênico da doença torna a intervenção gênica mais complexa, pois múltiplas vias moleculares e genéticas estão envolvidas em sua fisiopatologia. Além disso, na terapia celular, a dificuldade de se obter diferenciação eficiente em células ganglionares maduras funcionalmente integráveis e, sobretudo, de reconectar seus axônios até alvos encefálicos constitui um dos maiores gargalos técnicos. A reconstrução funcional de uma via óptica danificada envolve múltiplos passos que ainda não foram plenamente vencidos, mesmo nos modelos animais.

A maioria das abordagens permanece em estágios pré-clínicos, com poucos ensaios clínicos em andamento. Há também preocupações sobre resposta imunológica aos vetores virais, controle da expressão gênica e segurança de longo prazo. Do ponto de vista prático, há carência de estudos que comparem abordagens gênicas ou celulares com terapias convencionais em desfechos clínicos relevantes, tais como diminuição da acuidade visual ou progressão do campo visual. Ademais, os custos e a complexidade dessas terapias são obstáculos para sua aplicação ampla.

 

Perspectivas futuras

Não obstante as limitações, as novas propostas são promissoras. A combinação de edição gênica (ex.: CRISPR-Cas9), vetores mais seguros e células-tronco personalizadas pode permitir terapias mais eficazes e duradouras, inclusive em subtipos como glaucoma de pressão normal ou juvenil hereditário [2,11]. Além disso, a compreensão mais refinada da biologia das RGCs, do microambiente peripapilar e das vias visuais centrais também abrirá novas janelas terapêuticas. A integração de informações poligênicas com plataformas funcionais e tecnologias de sequenciamento de célula única poderá ajudar a identificar alvos terapêuticos mais específicos e personalizados [2,12].

Dessa forma, as terapias gênica e celular representam uma revolução conceitual no manejo do glaucoma. Embora os desafios regulatórios, técnicos e clínicos ainda sejam expressivos, os avanços recentes são encorajadores. No futuro, é possível que o tratamento do glaucoma deixe de ser exclusivamente baseado no controle da PIO e passe a envolver intervenções reparadoras ou preventivas em nível molecular e celular.

 

 

Referências Bibliográficas

  1. Sulak R, Liu X, Smedowski A. The concept of gene therapy for glaucoma: the dream that has not come true yet. Neural Regen Res. 2024;19(1):92-99.
  2. Henderson J, O’Callaghan J, Campbell M. Gene therapy and glaucoma: targeting key mechanisms. Vision Res. 2024;225:108502.
  3. Hauswirth WW. Retinal gene therapy using adeno-associated viral vectors: multiple applications for a small virus. Hum Gene Ther. 2014;25(8):671-8.
  4. Rhee J, Shih KC. Use of gene therapy in retinal ganglion cell neuroprotection: current concepts and future directions. Biomolecules. 2021;11(4):581.
  5. Starr C, Chen B. Adeno-associated virus mediated gene therapy for neuroprotection of retinal ganglion cells in glaucoma. Vision Res. 2023;206:108196.
  6. Rizkiawan DE, Evelyn M, Tjandra KC, Setiawan B. Utilization of modified induced pluripotent stem cells as the advance therapy of glaucoma: a systematic review. Clin Ophthalmol. 2022;16:2851-2859.
  7. Nicoară SD, Brie I, Jurj A, Sorițău O. The future of stem cells and their derivates in the treatment of glaucoma: a critical point of view. Int J Mol Sci. 2021;22(20):11077.
  8. Ciociola EC, Fernandez E, Kaufmann M, Klifto MR. Future directions of glaucoma treatment: emerging gene, neuroprotection, nanomedicine, stem cell, and vascular therapies. Curr Opin Ophthalmol. 2024;35(2):89-96.
  9. Vilela CAP, Messias A, Calado RT, Siqueira RC, Silva MJL, Covas DT, Paula JS. Retinal function after intravitreal injection of autologous bone marrow-derived mesenchymal stromal cells in advanced glaucoma. Doc Ophthalmol. 2021;143(1):33–38.
  10. Vilela CAP, Souza LEB, Siqueira RC, Calado RT, Covas DT, Paula JS. Ex vivo evaluation of intravitreal mesenchymal stromal cell viability using bioluminescence imaging. Stem Cell Res Ther. 2018;9(1):155.
  11. Borrás T, Stepankoff M, Danias J. Genes as drugs for glaucoma: latest advances. Curr Opin Ophthalmol. 2024;35(2):131-137.
  12. Hakim A, Guido B, Narsineni L, Chen DW, Foldvari M. Gene therapy strategies for glaucoma from IOP reduction to retinal neuroprotection: progress towards non-viral systems. Adv Drug Deliv Rev. 2023;196:114781.

 

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