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Há 100 anos, na Suécia, nascia Claes Henrik Dohlman. Seria difícil prever que diante de todas as dificuldades vividas na década de 20, surgiria ali aquele que hoje é reconhecido mundialmente como “o pai da ciência moderna da córnea”. O professor emérito de oftalmologia da Harvard Medical School recebeu, em setembro último, mais um reconhecimento: o Prêmio Antônio Champalimaud de Visão 2022.
Lançado em 2006, conta com o apoio da Organização Mundial de Saúde (OMS) e é maior do mundo na área da oftalmologia. Com premiação no valor de 1 milhão de Euros é tido por muitos como o “Nobel da Visão”. Além disso, por ter um júri constituído por cientistas internacionais e figuras públicas proeminentes tem ainda mais credibilidade e é, de fato, um dos mais respeitados pela classe. Nos anos ímpares, o prêmio reconhece o trabalho desenvolvido no terreno por instituições na prevenção e combate à cegueira e doenças da visão, principalmente nos países em desenvolvimento. Nos anos pares é atribuído às pesquisas científicas de grande alcance na área da visão. Na edição desse ano, o médico e cientista Gerrit Melles, do Netherlands Institute for Innovative Ocular Surgery, também teve seu trabalho reconhecido por ter revolucionado o tratamento cirúrgico das doenças da córnea.

Claes Henrik Dohlman, reconhecido mundialmente como o o pai da ciência moderna da córnea

Desafios da córnea
As lesões ou distúrbios da córnea são, há muitos anos, uma das principais causas de cegueira em todo o mundo. As condições que afetam a córnea são complexas na sua epidemiologia e incluem uma série de doenças oculares inflamatórias, infeciosas e genéticas que causam cicatrizes na córnea – a camada transparente na frente do olho que é a estrutura primária para focalizar a luz e serve como proteção e barreira contra lesões e patógenos microbianos.
E essa tem sido a batalha de Dohlman. O médico e cientista transformou a forma como a medicina compreende a córnea tendo desenvolvido diversos tratamentos inovadores. No entanto, é inegável que o maior deles é a invenção da córnea artificial, a Boston Keratoprosthesis (KPro). A ceratoprótese foi criada especialmente para pacientes que já não podem mais se beneficiar de um transplante padrão por meio de doadores.
Ao longo da sua carreira de sete décadas em Harvard e no Schepens Eye Research Institute of Mass Eye and Ear, Dohlman também liderou as investigações da fisiologia da córnea que lançaram as bases para a prática clínica na doença do olho seco, queimaduras na córnea, cicatrização de feridas e transplante de córnea.
Mas o sueco não pararia por aí. Estima-se que mais de 700 dos maiores especialistas em córnea do mundo tenham sido formados por Dohlman. Ao contribuir com a educação médica continuada e difusão de seu conhecimento por todo o globo, expandiu os caminhos da investigação e tratamento das doenças da córnea e, pode-se afirmar com certeza, devolveu a visão a milhões de pessoas e impediu que tantas outras ficassem – e fiquem – cegas no futuro.
É o caso (e a sorte!) de Denise de Freitas, Newton Kara José, Lauro Augusto de Oliveira e Elcio Hideo Sato, brasileiros que tiveram a oportunidade de aprender e trabalhar ao lado de Dohlman.

Dohlman e o Brasil

Lauro Augusto de Oliveira, Professor Afiliado do Departamento de Oftalmologia e Ciências Visuais da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

“O Professor Claes Dohlman ensinou córnea para os maiores nomes da especialidade no mundo. E seus sucessores chefiam os mais renomados serviços de córnea nos Estados Unidos e no mundo. Ele é, sem dúvida, um dos principais nomes da oftalmologia mundial e com certeza da especialidade de córnea. Dedicou seis décadas da sua vida em busca de um projeto que foi aperfeiçoado ao longo dos anos com a finalidade de restabelecer a visão de pacientes com cegueira corneana. Tudo isso com muita dedicação e sempre com uma doutrina humanitária como prioridade. Sempre foi fascinado por levar a ceratoprótese aos que mais necessitavam e que de repente não teriam acesso ao dispositivo por motivos socioeconômicos”, comenta Lauro Augusto de Oliveira, Professor Afiliado do Departamento de Oftalmologia e Ciências Visuais da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), e que teve a oportunidade de idealizar e iniciar seu pós-doutorado em Harvard a convite de Dohlman entre os anos de 2008 e 2009″.“Terminado este ciclo no exterior realizamos várias cirurgias na UNIFESP dentro do projeto de pesquisa do meu pós-doutorado e sempre contando com doações dos dispositivos a serem implantados pelo Dr. Dohlman”, diz.
“Pode-se dizer que o Dr. Dohlman praticamente criou as subespecialidades da córnea, esse é um dos méritos dele. Até então a relação era muito mais professor-aluno, mas ele criou todo um sistema educacional, de formação de especialistas em córnea”, expõe Elcio H. Sato, Doutor pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e especialista em córnea pela Harvard University. “Em 1989 eu fui para lá fazer um fellowship e tive a oportunidade de atender com o Dr. Dohlman. E o que me chamou muita atenção na época é que, mesmo ele já sendo uma pessoa muito conhecida, me recebeu muito bem, sempre muito humano, muito tranquilo e agradável de se conviver e trabalhar; liderava pelo conhecimento e não pelo medo”, lembra. “Quando voltei ao Brasil em 1991, fiz algumas cirurgias e ele chegou até a me enviar as ceratopróteses”, relembra Sato.
Denise de Freitas, Docente de Oftalmologia na Escola Paulista de Medicina (UNIFESP) e membro do Grupo Vision One, também trabalhou com o Dr. Dohlman de 1989 a 1991. Ela resgata que, em uma das inúmeras reuniões de laureado e de honra ao mérito que o Dr. Dohlman foi agraciado, falou uma frase marcante para ela: “Ele disse aos presentes que você poderia focar em vários objetivos na sua carreira, mas que deveria ter principalmente um objetivo único, forte, que fizesse realmente a diferença para todos, quiçá para toda a humanidade… e ele cumpriu bravamente esse objetivo na sua excepcional carreira”.

A história e indicação da ceratoprótese
A ideia de desenvolvimento de uma córnea artificial tem mais de 200 anos. A primeira ceratoprótese foi descrita em 1789 durante a Revolução Francesa por Guillaume Pellier de Quengsy. Nas últimas décadas, várias córneas sintéticas foram desenvolvidas, embora apenas três sejam usadas na prática: a Boston Keratoprosthesis (KPro), a AlphaCor e a ceratoprótese osteo-odonto, também conhecida como ‘OOKP’.
A ceratoprótese de Boston evoluiu de seu conceito original nos últimos cinquenta anos sob a liderança de Claes H. Dohlman, tendo sido aprovada para comercialização em 1992 pelo FDA (Food and Drug Administration). Ela é produzida em PMMA (polimetilmetacrilato) com uma zona óptica central de 3.35 mm de diâmetro, uma plataforma posterior de 0.9 mm de espessura e 7.0 mm ou 8.5 mm de diâmetro. Um programa de pesquisa segue ativo para seu desenvolvimento em Boston – e em outros centros em todo o mundo – a fim de promover a inovação contínua do dispositivo.

Denise de Freitas, Docente de Oftalmologia na Escola Paulista de Medicina (UNIFESP) e membro do Grupo Vision One

“Ele (Dohlman) focou sua carreira em vários tópicos que já incluíam inovações usadas até hoje como aplicação de cola em córneas sem suporte tectônico, abordagem nos processos cicatriciais da superfície ocular, transplante de córnea e, sem dúvida, aquela que é reconhecida como a maior contribuição de todos os tempos para oftalmologia, seu trabalho em ceratoprótese”, detalha Denise.
“A ceratoprótese representa uma alternativa terapêutica e de reabilitação visual para pacientes com cegueira de causa corneana e que não são candidatos ao transplante de córnea convencional. Muitos pacientes desenganados com a impossibilidade de recuperação ou com baixo prognóstico considerando cirurgias convencionais de transplante de córnea poderiam recuperar alguma visão. Infelizmente esse cenário é mais prevalente em países subdesenvolvidos, demonstrando a distribuição global da cegueira corneana de forma desigual. A recuperação visual melhora a socialização e relações inter-humanas assim como permite reinserção socioeconômica”, explica Oliveira.
Com relação aos indivíduos que podem se beneficiar desse dispositivo sintético, Oliveira informa que poderiam se beneficiar todos aqueles pacientes (com cegueira corneana) considerados como caso de transplante de alto risco e com prognóstico reservado de sobrevida do enxerto em cirurgias convencionais. “Inclui-se nesta lista de forma categorizada em relação àqueles que podem obter melhores resultados: a) bom prognóstico: múltiplas falências de transplante de córnea prévios, distrofias corneanas, trauma e aniridia; b) prognóstico intermediário: opacidades corneanas após úlceras infecciosas (bactérias, fungos e virais), pacientes vítimas de queimaduras oculares e c) prognóstico mais reservado: pacientes com ceratoconjuntivite seca cicatricial associado a doenças autoimunes”, detalha.

Elcio H. Sato, Doutor pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e especialista em córnea pela Harvard University

Ainda segundo Oliveira, é importante dizer que o insucesso ou categorização do prognóstico se refere à sustentabilidade funcional e anatômica do dispositivo a ser implantado. A sobrevida anatômica e funcional varia com diferentes modelos e desenhos de ceratopróteses, sendo que cada modelo pode ter maior prevalência de uma ou outra complicação como, por exemplo, glaucoma, infecção/endoftalmite, membrana retroprostética, descolamento de retina, entre outras.
Atualmente a KPro é a córnea artificial mais utilizada no mundo, tendo restaurado, até agora, a visão de mais de 15 mil pacientes nos Estados Unidos e em outros 52 países. Foi um dos dispositivos sintéticos que mais evoluiu nos últimos anos, chegando a apresentar um índice de sucesso de 90% em casos de doenças não imunológicas, e de 50% em casos de doenças imunes de membranas mucosas, de acordo com os resultados apresentados em 2007 por Dohlman no ASCRS Meeting, em San Diego, nos Estados Unidos.
Segundo Denise, Dr. Dohlman sempre fez todos os esforços para que a Boston KPro fosse acessível a todos os países, desenvolvidos e em desenvolvimento, ensinado a vários grupos no mundo todo como implantar uma ceratoprótese e os cuidados de pós-operatório para esses pacientes. “Até hoje, com os seus cem anos de idade, Dr. Dohlman coordena anualmente uma reunião dos grupos que operam ceratoprótese no mundo todo e o nosso grupo aqui na Escola Paulista de Medicina/UNIFESP, chefiado na atualidade pelo Dr. Lauro Augusto Oliveira, participa e contribui com inúmeros dados”, reforça. “Dr. Dohlman e sua equipe, principalmente o Dr. James Chodosh, obtiveram nesses últimos anos a aprovação do FDA para a ceratoprótese Lucia, um dispositivo de baixo custo para tratar a cegueira da córnea, inclusive em países economicamente carentes. Esse é o excepcional legado que o Dr. Dohlman deixa para a oftalmologia e para o mundo”, conclui Denise.

 

Foto tirada durante fellowship no período 1989/1991 no MEEI/ Harvard em Boston

Jantar da Academia Americana de Oftalmologia, de 2002

E o futuro?
“Em um curto prazo, anseio por maior acessibilidade a esses dispositivos. Mesmo a ceratoprótese de Boston que é a mais implantada no mundo, e aprovada pelo FDA desde 1992, não tem registro na ANVISA. Isso impede a reabilitação de inúmeros pacientes com cegueira corneana no nosso país. Fica restrito àqueles com paciência e persistência para superar entraves burocráticos e que conseguem a autorização para importação pela via da excepcionalidade. Um pouco mais a médio e longo prazo creio que possam surgir dispositivos com materiais de melhor biocompatibilidade, menor imunogenicidade e com melhores propriedades ópticas e mecânicas. E, olhando um pouco mais à frente, há a expectativa de que estes pacientes possam se beneficiar de terapia gênica – a associada ou não a terapia celular – com objetivo de reverter ou controlar o cenário que os colocou como pacientes de alto risco para transplante convencional, a fim de que não precisem mais de dispositivos artificiais (córnea artificial)”, conclui Oliveira.

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