Tempo de leitura: 7 minutos

Desde o início da pandemia de COVID-19, há três anos, muito tem se falado sobre os avanços tecnológicos na área da saúde e inovações que foram “destravadas” devido ao estado de emergência no período. A agilidade para o desenvolvimento de novas vacinas, a aceleração de processos regulatórios e de aprovações, o estabelecimento da telemedicina como prática, estão entre os temas explorados pela classe médica, pacientes e a própria mídia. No entanto, sabemos que inovação em medicina não é um assunto novo; pelo contrário, é praticamente inerente à sua existência.

“A tecnologia é aquela que lhe dá tudo e logo, enquanto a ciência procede lentamente”, Humberto Eco, em ‘A passo de caranguejo’.

Ocorre que recentemente o surgimento e proliferação das plataformas de saúde vem ganhando destaque e, de acordo com o Gartner, 63% dos serviços de saúde estão enfrentando severas disrupções. Diversas iniciativas com base no uso da tecnologia vêm sendo desenvolvidas por empresas públicas e privadas a fim de melhorar a qualidade dos serviços prestados e contribuir com a democratização do acesso à saúde. Segundo a Distrito, de 2018 a 2021 o número de startups focadas no segmento de saúde praticamente triplicou, de 248 a 945 em setembro de 2021.

Healthtechs, como o dr. consulta, por exemplo, chegaram ao mercado com a proposta de oferecer consultas médicas, exames e serviços de saúde a preços acessíveis à população a partir do uso de tecnologias avançadas em gestão para entregar uma medicina de qualidade.

Para o médico neurologista Victor Gadelha, que é mestre em computação com foco em inteligência computacional e CEO da MEDXVR, a saúde digital é o ponto de convergência entre a tecnologia e a saúde. “Ela vai desde digitalizar processos que até então eram manuais e alternativas para o modelo de atendimento, como prescrição de medicamentos em receituários e telessaúde, até o uso de aplicativos e dispositivos vestíveis para promoção e monitoramento da saúde”, explica.

No caso do dr. consulta, a atuação acontece por meio de hubs de atendimentos presenciais e online. A rede atingiu a marca de mais de três milhões de pacientes atendidos, em uma estrutura que disponibiliza 60 especialidades médicas em 29 centros médicos localizados em São Paulo. Para suportar toda essa rede, anunciou recentemente um aporte de R$70 milhões para investimentos em tecnologia. O montante será utilizado nos próximos três anos e terá como foco soluções que aprimoram o atendimento ao paciente.

“Queremos levar a experiência de todos nossos colaboradores, corpo clínico e pacientes a um novo patamar. A partir do uso robusto de tecnologia de ponta, totalmente proprietária, que está sendo desenvolvida por nosso time, vamos oferecer soluções cada mais fáceis, intuitivas e que dão mais autonomia para quem a utiliza”, afirma Guilherme Kato, CTO do dr.consulta.

A rede conta ainda com dois projetos baseados em Inteligência Artificial: ambos utilizam algoritmos de Inteligência Artificial em sistemas que preveem e calculam as demandas de pacientes, serviços e especialidades e sugerem para os médicos, automaticamente, os melhores dias e horários para elaborar suas agendas. Em outra ponta, a segunda ferramenta foca em otimizar o time de atendimento e enfermagem dos Centros Médicos proporcionando redução de custos com foco em manter e aumentar a qualidade do atendimento.

O Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HCFMUSP), por exemplo, em parceria com um ecossistema diversificado de tecnologia, telecomunicações, agência de apoio ao desenvolvimento produtivo, universidade e instituição financeira, anunciou em setembro de 2022 o lançamento de sua rede privativa 5G para testes de conectividade avançada na saúde.  Numa iniciativa do InovaHC, núcleo de inovação desse que é maior complexo hospitalar da América Latina, o projeto OpenCare 5G é coordenado pela Deloitte e tem a participação do Itaú Unibanco, Siemens Healthineers, NEC, Telecom Infra Project (TIP), Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP).

Marco Bego, Diretor Executivo do InovaHC, destaca o caráter inovador do projeto e os ganhos para a sociedade. “Ao utilizar casos reais de atendimento à saúde, estamos entendendo como a conectividade do 5G em Open RAN poderá ser um habilitador de serviços em diversas áreas da medicina, colaborando para melhorar a jornada do paciente e prover mais qualidade e acesso aos serviços de saúde”, diz.

Os termos telemedicina e teleconsulta tiveram pico de popularidade de buscas em janeiro de 2022, segundo a plataforma de tendências de buscas do Google, o Google Trends.

Bego relembra ainda alguns quesitos de avaliação usados pelo InovaHC para um projeto de saúde digital dar certo:

  • Impacto na vida e jornada do paciente
  • Estrutura física e tecnológica
  • Protocolos de atendimento
  • Modelos integrados
  • Governança
  • Sustentabilidade
  • Regulação

Um olhar para a oftalmologia

De acordo com o médico oftalmologista Alexandre Taleb, que é professor de Telemedicina da UFG (Universidade Federal de Goiás), Secretário Geral da ABTms (Associação Brasileira de Telemedicina e Telessaúde) e Coordenador da Comissão de Telemedicina, Tecnologia e Inovação do CBO (Conselho Brasileiro de Oftalmologia), a oftalmologia é uma das especialidades que, historicamente, sempre utilizou, e de forma precoce e disseminada, as tecnologias digitais.

“A captura das imagens em oftalmologia, imagens de fundo de olho, como as retinografias e os OCTs, as imagens da frente de olho, seja por meio de captura de lâmpada de fenda, em exames como o Pentacam e topografia corneana, são imagens que já são adquiridas de forma digital, o que facilita muito o telediagnóstico nessa área. O telediagnóstico para o rastreio de doenças prevalentes de cegueira como a catarata, a retinopatia diabética, o glaucoma é uma realidade no brasil e no mundo todo. Então, a saúde digital na oftalmologia já vem permeando a prática dos oftalmologistas há muitos anos. Transformar isso em práticas de consultas virtuais é algo que já iniciou, eu mesmo faço isso rotineiramente desde março de 2020, mas ainda é algo que está incipiente do ponto de vista de disseminação junto à comunidade oftalmológica brasileira”, conta.

Tendências na saúde digital

Gadelha, que também ocupa o cargo de Head de Inovação Médica em Hospitais da Dasa, comenta que, para além da consulta por profissionais de saúde a distância, que já é uma realidade, no bloco de telessaúde uma grande tendência é o monitoramento remoto digital de pacientes. “Esse monitoramento faz uso de ferramentas digitais, como apps, combinados com dispositivos vestíveis e dispositivos conectados, que pode ou não contar com um time de saúde por trás, para personalizar o cuidado do paciente, além de melhorar desfechos. Isto já começa a ser uma realidade inclusive no Brasil”.

Para Taleb, a inteligência artificial está em primeiro lugar dentre as principais perspectivas para a área. “Hoje já existem empresas que oferecem serviços de análises de imagens usando a inteligência artificial, auxiliando o médico não só a reduzir sua carga de serviço, separando as imagens normais das não normais, como auxiliando na identificação de forma mais rápida de onde estão as lesões para que o médico possa fazer as avaliações e os laudos de forma mais ágil e assertiva. Os fluxos e automatização processos também se beneficiam da aplicação da inteligência artificial e são bastante factíveis”, explica.

O neurologista aposta também no biomarcador digital, que consiste no uso de dados coletados pela interação do indivíduo com os dispositivos digitais e que constantemente são processados por algoritmos de inteligência artificial para predizer doenças e até mesmo monitorar a progressão de forma mais objetiva em relação aos testes tradicionais. Por fim, segundo ele, o futuro acaba sempre caindo no gêmeo digital (digital twins) que seria o equivalente a coletar dados históricos de diversos pacientes e processá-los por meio de inteligência artificial para auxílio ao médico quanto ao melhor tratamento para os pacientes e predizer desfechos de forma individualizada antes mesmo de ele acontecer.

Taleb concorda e complementa: cada vez mais os pacientes vão poder se auto monitorar. “Recentemente a UFG conseguiu a patente de um sensor de glicose a partir da lágrima. E uma outra tendência é a utilização da realidade virtual e aumentada. Já faço em meu consultório exames de campo visual por meio de um aparelho de realidade virtual o que garante exames mais rápidos, confiáveis e fidedignos. A realidade aumentada durante cirurgias também já é uma realidade para permitir que o cirurgião tenha mais precisão no corte e no implante da lente”, observa.

Atenção à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)

Para Taleb, a LGPD é um avanço muito grande, visto que os pacientes podem ter maior controle de suas informações, cedendo ou não seus dados e a qualquer momento podendo também revogar essa autorização, por exemplo. “Garante a segurança da nossa vida phygital, esse mix de físico e digital em que vivemos”, expõe.

“A necessidade da LGPD é sem dúvida maior do que seu possível impacto no desenvolvimento de tecnologias. Dados de saúde são sensíveis e devem ser tratados como tal. Por isto acredito ser fundamental o profissional de saúde está perto de times de tecnologias que utilizam determinados tipos de dados para que tudo aconteça com a maior ética e com o foco na entrega de valor para os pacientes”, orienta Gadelha.

O que ainda precisa ser feito?

“O machine learning é básico para que tenhamos uma inteligência artificial robusta. Nós ainda não temos a cultura de fazer a inserção correta de dados nos prontuários eletrônicos ou ter prontuários que possam ser padronizados de tal forma que seja possível capturar as informações e transformar isso num aprendizado de máquina muito mais atuante. Muitos esforços têm sido feitos na questão de nomenclatura, coleta de dados, padronização e classificação, mas ainda vai passar por um desenvolvimento muito grande, mas não tenho dúvida que a interação home máquina com o auxílio da inteligência artificial vai nos liberar tempo para podermos nos dedicar para outras atividades”, detalha Taleb.

Segundo Gadelha, a interoperabilidade, no âmbito do open health, é algo a ser conquistado para melhorar como um todo a experiência do paciente. “Quanto a democratização, a longo prazo, os algoritmos de inteligência artificial, que depois de produzidos tem um custo baixo de operação, podem ser uma boa alternativa para o desenvolvimento e democratização do acesso à saúde”, pontua.

“A cirurgia robótica na oftalmologia já existe, ainda muito no campo da pesquisa, com a possibilidade de interações digitais mais rápidas em que praticamente elimina-se o delay, ou seja, já é possível pensar numa telecirurgia em oftalmologia. Ainda não é a realidade, mas esperamos que, se o paciente quiser que um médico que esteja numa outra localidade faça sua cirurgia isso seja possível de ser realizado num futuro próximo”, conclui o oftalmologista.

“Precisamos combater a medicina baseada em doença”, resgata Paulo Schor, médico cirurgião, professor associado e coordenador adjunto de inovação da Escola Paulista de Medicina (UNIFESP). “Hoje com os sistemas computadorizados e integrados é possível fazer predição. Se você tem os dados e consegue seguir linhas de tendência, redes neurais, todas as estatísticas avançadas para fazer predições, aí sim você consegue uma medicina preventiva e não curativa”, reforça.

Economia da saúde e Value-Based Healthcare (VBHC)

Também no sentido do uso de dados e medicina preventiva, “o VBHC é muito baseado em dados e na qualidade desses dados, como dados de desfecho. A saúde digital deve ser uma das principais alavancas, se não a principal, na entrega dados com maior qualidade para compor o cálculo da saúde baseada em valor e que possam ser auditados”, finaliza Gadelha.

Marco Bego, acredita que é necessário medir mais, mas que a implantação do modelo projetado por Michael Porter está mais próximo de ser mais bem implementado. “A partir do uso de tantas informações agora disponíveis, caminhamos para medir desfecho, eficiência e eficácia para, aí sim, dar valor para o que realmente tem valor para a saúde”, encerra.

Em 2020 o HCFMUSP traçou estratégias pós-pandemia e percebeu que, sem dúvida, uma frente de atuação com foco em saúde digital era necessária. Para conhecer mais sobre essas ações, acesse: https://www.youtube.com/watch?v=RGmlyoDePDw

Compartilhe esse post