O sonho de que qualquer hospital seja obrigado a compartilhar os dados clínicos do paciente com qualquer outra instituição sempre que o paciente assim autorizar está se tornando realidade, pelo menos. Em 5 de abril de 2021, entra em vigor no país o dispositivo da nova “21st Century Cures Act”, a mais rigorosa lei de acesso aos dados médicos do paciente, proibindo qualquer tipo de bloqueio a esses dados. Chamada carinhosamente de “Cures Act” (lei das curas), ela obriga todos os profissionais de saúde e empresas prestadoras de serviços médicos a fornecer acesso (gratuito) aos registros médicos eletrônicos (“without delay”). Obriga também que todas as empresas fornecedoras de sistemas de EHR – Electronic Health Records (nosso conhecido PEP, “prontuário eletrônico do paciente”) disponibilizem total interoperabilidade com diferentes plataformas digitais de saúde (medical-data-share). Assim, sob essa nova regra e na mesma data de vigência, os provedores de EHRs são obrigados a disponibilizar acesso as “anotações médicas digitais” dentro de parâmetros federais de interoperabilidade, cuja penalidade por não cumprimento pode chegar a US$ 1 milhão por infração. Todo os contratos entre “provedores de tecnologia médica” e “provedores de serviços médicos” que envolvem registros clínicos digitais (EHR) estão sendo revisados e reassinados dentro da nova regulação. Da mesma forma, a regra exige que o EHR disponibilize uma “interface de programação para aplicativos (API)”, que permita ao paciente obter suas informações de saúde por meio de um simples aplicativo de smartphone (mHealth).
“Bloqueio de informações” é quando um paciente solicita seus dados de saúde e o prestador pode compartilhá-los, mas não o faz. A nova lei dispõe que tal bloqueio não é mais permitido (quando, por exemplo, o médico não puder fornecer os dados eletrônicos, precisa imprimi-los e entregar sem atraso ao paciente). No fundo, passa a valer também um conjunto de “regras federais de interoperabilidade de dados em saúde”, que nada mais é do que um antigo projeto adiado por anos, mas tornado Lei e aprovado em 2016. Trata-se do mais duro golpe disparado “contra” médicos, hospitais e demais players da Cadeia de Saúde que evitam de todas as formas que os pacientes acessem seu prontuário médico, ou que estes sejam acessados por outros players autorizados pelo usuário. Assim, a medieval ideia de que o paciente internado no Hospital A não pode acessar seus dados clínicos que estão sob a guarda do Hospital B está sendo sepultada nos EUA. Qualquer bloqueio a esses dados passa a ser crime, não importando se ele está sendo realizado pelo profissional de saúde, ou pela empresa prestadora do serviço, ou por mecanismos de proteção instalados no EHR por seu fornecedor. Pela nova lei é mandatório o fornecimento dos dados médicos ao paciente de forma imediata e em formato digital. Ponto final.
Na realidade, o bloqueio é uma prática comum em quase todos os países que não contam com uma legislação específica e clara que proíba esse entrave na área de Saúde. A LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), vigente no Brasil, resvala no tema, impõe condições à guarda dos dados médicos por parte dos prestadores de serviços (segurança e privacidade), mas é tímida em estabelecer o direito inalienável do paciente acessar seus “dados-clínicos” sem qualquer condicionante, ou ao seu desejo de compartilhá-los com quem ele assim autorizar, ou simplesmente de armazená-los consigo mesmo sem qualquer acesso de terceiros. Nesse sentido, no Brasil, 99% do histórico clínico de cada um de nós está fora de nosso alcance, engavetado ou armazenado em servidores dos players do setor, que muitas vezes só o libera mediante ordem judicial. Existem exceções: as empresas do setor de Medicina Diagnóstica vêm ao longo dos anos disponibilizando cada vez mais os laudos e as imagens dos exames aos pacientes (através da Web).
Um exemplo claro e atual, que afetou os EUA e quase todos os países, é o bloqueio hiperbólico na Covid-19, com boa parte das instituições de saúde norte-americanas se negando a repassar os dados médicos ao próprio paciente (por diferentes e procrastinadores motivos) ou a qualquer outra entidade por ele autorizado (pessoa física, jurídica ou agência publica). Essa obstaculização tem uma motivação clara: o implacável sistema jurídico dos EUA. O medo de ter auditada suas contas, procedimentos, terapias ou qualquer outra ação-clínica regulada pelos órgãos controladores, faz com que os hospitais e seguradoras rejeitem disponibilizar os dados do paciente, mesmo que isso prejudique os foros públicos de controle epidemiológico, como o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA). A nova Lei, criada quatro anos antes da pandemia, estrangula as possibilidades de bloqueio clínico-informacional.
Assim, a partir de abril, se o Sistema de Prontuário Eletrônico da Organização X e o Sistema do Plano de Saúde Y “não se reconhecem, e, portanto, não trocam dados” serão penalizados pela nova Lei. Ambos deverão ser interoperáveis dentro do protocolo federal, que é regido pela HIPPA (Health Insurance Portability and Accountability), legislação de 1996 que regula o fluxo das informações de saúde no país. Alguns podem dizer: “mas isso é impor uma integração sistêmica por força de lei”, é verdade, mas o Department of Health and Human Services (HHS), principal órgão de controle tecnológico sanitário do país, foi precavido e criou várias regras de interoperabilidade que facilitam sobremaneira a integração sistêmica entre as instituições. O HHS tem agora condições de fazer cumprir a Lei, enquanto antes só acenava com pífias penalizações aos fornecedores de EHR. Essa é uma lição para o Brasil: sem uma legislação clara, específica e com deveres compulsórios a todos os partícipes da cadeia sanitária (incluindo o paciente) continuaremos estáticos, esporádicos e dispersos em medical-data-share. No compartilhamento de dados clínicos, prosseguiremos sendo um arquipélago de ilhas, ilhotas, morrotes, rochedos, fragmentos e entulhos boiando na superfície sem qualquer possibilidade de chegarmos a ser “terra firme”.
Na emergência sanitária da Covid-19, por exemplo, o HHS poderá agora garantir que os dados do paciente acompanhem todos os testes epidemiológicos, o que é vital no acompanhamento do surto e na rastreabilidade vacinal. A governo Biden sinaliza que vai acelerar ainda mais o cumprimento da nova legislação, oferecendo incentivos e reembolsos mais atrativos aos players que implementarem mais cedo os parâmetros tecnológicos. Essa “corrida contra o tempo” foi apressada também pelo amplo e inusual uso da Telemedicina (telehealth) na Covid-19. Ficou impraticável aos pacientes deter seus dados médicos fora do ambiente digital, o que mobilizou rapidamente um “exército de soluções” em Personal Health Records para atender a consulta à distância. Todos os países passarão a utilizar com intensidade o “rastreamento de dados clínicos para identificar riscos epidemiológicos”. Autoridades de saúde precisarão ter cada vez mais informações clínicas para identificar rapidamente e com antecedência os eventuais surtos de doenças contagiosas.
Nações com serviços públicos de saúde sofrem mais com a falta de compartilhamento de dados sanitários. Porém, manter o controle de dados médicos dos pacientes nunca foi algo tecnologicamente fácil, ou pior, algo que possa obter consenso entre todos os membros das Cadeias de Saúde. A falta desse acesso contínuo, seguro e rápido é um dos principais fatores da alta fragmentação dos Sistemas de Saúde. Quando as partes interessadas só podem trabalhar com fragmentos clínicos, financeiros e socioeconômicos do paciente, elas se obrigam a uma enorme quantidade de retrabalho e atualizações constantes que extraem da indústria de saúde a sua praticidade e urgência. Com a “21st Century Cures Act”, os EUA deram um passo gigantesco na direção de protocolos interoperáveis únicos, que podem até permitir no futuro o sonho de um “Prontuário Nacional Único de Saúde , que, da mesma forma que o sistema federal único de coleta de impostos, passaria a ser o principal eixo da atenção sanitária.
No Brasil, a falta de interoperabilidade entre o SUS e a Saúde Suplementar (e entre o SUS e outros sistemas do Ministério da Saúde) não permite o medical-data-share, ou seja, correlacionar os procedimentos médicos com elementos endógenos e exógenos de cada unidade de atendimento. O resultado é que o paciente e o Sistema perdem tempo, recursos, energia, funcionalidade e boas práticas, obrigando o paciente a “cirandear” ao longo da vida por dúzias de entidades sem armazenar o seu histórico médico numa instancia única e acessível. Houve avanços (TISS, TUSS, etc.), mas também retrocessos, e até hoje uma integração ampla e consistente de dados em saúde é uma tênue promessa. Quando durante a pandemia bradamos palavras de ordem em favor do SUS estamos sendo justos, corretos e verdadeiros. Mas quando não cobramos das lideranças e dos gestores do Sistema a sua transformação digital somos apenas mais um dos “bloqueios” que atrasam o SUS.
Fonte: Saúde Business